O que a performance vocal secular tem a ver com a música cristã contemporânea? Tudo. Os cantores evangélicos não inventaram nenhum modo de cantar. Mesmo ao escolher o padrão de voz ideal para cantar determinado estilo musical, suas interpretações também estão calcadas quase inevitavelmente nas performances dos cantores seculares. Se a influência vocal é inevitável, por outro lado temos que reconhecer que o artista cristão entra com suas particularidades vocais e interpretativas, moldando sua própria maneira de cantar. Embora todo mundo conheça alguém que faça cover gospel.
A cantora Elis Regina é considerada um paradigma vocal. Entretanto, apesar da alta qualidade de muitas de suas interpretações, Elis não raro enveredava pelo caminho do canto expansivo/excessivo, “colocando” a lágrima e o riso na voz, teatralizando a canção, pois tudo convinha ao seu modo interpretativo quase sempre transbordante. Seria o oposto da interpretação mais arejada de cantoras como Nara Leão e, atualmente, Roberta Sá ou Madeleyne Peyroux.
O estilo Elis Regina de interpretação com toda aquela entrega performática representa aqueles intérpretes que tendem a “cantar vivendo a letra da música”. As igrejas cristãs brasileiras não abdicaram dessa maneira de cantar. Para citar exemplos: Aline Barros e Leonardo Gonçalves são cantores cujo repertório muitas vezes demanda uma forma expansiva de cantar. Outros intérpretes, como João Alexandre e Regina Mota, tem a voz mais contida, como aquelas da MPB.
Fique entendido também que os cantores que apresentam esse contraste vocal entre si não são superiores uns aos outros, embora cada um tenha sua preferência pessoal. A personalidade de cada cantor, a percepção das exigências de cada canção e gênero musical, os registros de extensão de cada voz (se soprano, mezzo ou contralto, se tenor ou barítono), tudo isso faz parte da diversidade natural dos grupos religiosos.
Por outro lado, é difícil negar que, na igreja, há momentos no culto que requerem uma forma mais contida de cantar. O canto excessivamente teatral sobrecarrega a canção, a qual, geralmente, já apresenta elementos dramáticos na letra e na melodia. A atenção da congregação acaba sendo dirigida ao gestual, às expressões faciais exageradas, ao maneirismo vocal. Alguns precisam desenvolver a percepção de que há momentos na adoração em que o menos vale mais.
Atualmente, uma referência de muitos admiradores da voz são as cantoras norte-americanas. Não as cantoras do jazz, mas as estrelas do pop. As musas do momento são Mariah Carey e seus hiperagudos, Celine Dion e seus gorjeios apaixonados, Beyoncé e seus melismas dramáticos. Essas três cantoras, donas de um talento vocal insuspeito, são os rouxinóis inspiradores da filosofia “grito, logo existo”. As divas do american brega inspiram boa parte dos concorrentes anônimos dos concursos televisivos de cantoria.
Por mais divertidos que possam ser tais programas, e até mesmo reveladores de talentos genuínos, a insistência na fórmula agudo-melismático-meloso gera clones que satisfazem a audiência, mas produzem o mal do novo século: o maneirismo melodramático.
Não é difícil identificar o que é maneirismo vocal quando se percebe a diferença entre cantar “eu sei que vou te amar” e esgoelar “and I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I will always love you-U-U-U-U-U-U-U-U-U”. As novas gerações de espectadores se acostumaram a tal ponto com esse segundo modo de cantar que chegam a renegar os cantores que apresentam uma forma contida de interpretar.
Como já ressaltei, não quero dizer que só exista uma forma de cantar. No entanto, quando os fãs de música gospel assoviam e entram em histeria coletiva na hora em que seus cantores prediletos dão seus gritinhos apaixonados-por-Jesus é hora de repensar o quanto a interpretação excessivamente teatralizada tem contribuído para estimular um comportamento cada vez mais semelhante ao das plateias de espetáculos pop. Talvez as jovens congregações estejam criando expectativas de performance sacra com base em sua escuta de ídolos da música pop.
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