sexta-feira, 29 de abril de 2022

NÃO CONVERSE COM A SERPENTE

Ao ser iniciada a leitura de Gênesis 3, o destaque fica por conta da sagacidade da serpente em seu diálogo com a mulher. O animal em si era inofensivo. Porém, o autor do Gênesis descreve a malignidade do diabo ao se apossar de uma criatura com propósito bem definido: destruir a felicidade da família humana. O campo semântico utilizado na interlocução com a mulher gera uma narrativa diametralmente oposta à de Deus.

A ordem expressa do Criador era a seguinte: “De toda árvore do jardim você pode comer livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal você não deve comer; porque, no dia em que dela comer, você certamente morrerá” (Gn 2:16, 17). Imagine a cena no contexto de uma redação de notícias. O editor provavelmente iria retirar o pronome indefinido “toda” e orientar o repórter a evitar o excesso de generalização. Porém, o relato de Gênesis é bem completo. Nos diálogos da narrativa, a utilização de ótimos conectores forma perfeita coesão e coerência no texto para que a verdade de Deus possa ser notada.

O diálogo chama a atenção pela convicção da serpente. Ela opina de acordo com sua imoralidade. Utiliza-se de argumento pseudocientífico a partir do conhecimento que possuía para confrontar o caráter de Deus. Para Eva, talvez existisse um hiato entre opinião e argumento, mas não para a serpente, que conhecia o bem e o mal, fruto da narrativa que Lúcifer criou no Céu (Is 14:12-14; Ez 28:13-19; Ap 12:7-9).

Adão e Eva não estavam ilesos às possibilidades negativas. Ellen White comenta: “Mensageiros celestiais explicaram a eles a história da queda de Satanás, e suas tramas para destruí-los, expondo mais completamente a natureza do governo divino, que o príncipe do mal estava procurando subverter” (Patriarcas e Profetas [CPB, 2021], p. 28). Em outras palavras, Eva não precisava dialogar com a serpente. Sem perceber, ela foi entrevistada pelo maior inimigo de Deus. Adão e Eva creram no repórter errado e no relato distorcido.

Ellen White descreve a serpente desta forma: "A fim de realizar a sua obra sem que fosse percebido, Satanás preferiu fazer uso da serpente como médium, disfarce este bem adaptado ao seu propósito de enganar. A serpente era então uma das mais prudentes e belas criaturas da Terra. Tinha asas, e enquanto voava pelos ares apresentava uma aparência de brilho deslumbrante, tendo a cor e o brilho de ouro polido" (A Verdade sobre os Anjos, p. 53).

A serpente escolheu um único texto para distorcer a história (Gn 3:1). Com a tese “científica” da serpente comprovada, uma vez que Eva não morreu, a mulher compartilhou a nova descoberta com o esposo (Gn 3:6). A tragédia foi tão grande que, mesmo após milênios, a serpente continua seduzindo os descendentes da mulher em seus multifacetados disfarces.

A partir do ocorrido no Éden, o melhor é não dialogar com a serpente. O mundo dela é obscuro e enigmático. Um mundo de mistério fora dos mistérios de Deus. 

Ellen White diz: "Deus amaldiçoou a terra por causa do pecado de Adão e Eva em comer da árvore do conhecimento e declarou: 'Com dor comerás dela todos os dias da tua vida' (Gn 3:17). Deus tinha partilhado com eles o bem, mas retido o mal. Agora declara que comerão dele, isto é, devem ser relacionados com o mal todos os dias de sua vida. Daquele tempo em diante o gênero humano seria afligido pelas tentações de Satanás" (História da Redenção, p. 40).

Nessa guerra de narrativas que existe há milênios, o melhor é ficar com a verdade objetiva de Deus, pois ela permanece como a segurança em meio ao pragmatismo das muitas serpentes camufladas de pessoas e conceitos parecidos com a verdade. Cuidado! Se antes do pecado já havia riscos, imagine em nossos dias! 

O alerta de Ellen White é claro: “Agentes invisíveis estão em operação para fazer com que a falsidade se pareça com a verdade; erros estão revestidos com uma roupagem enganadora para que os homens sejam levados a ­aceitá-los como essenciais a uma educação superior” (Medicina e Salvação, p. 88).

Por ocasião do lançamento do filme A Paixão de Cristo, Mel Gibson esteve presente a uma grande concentração de pastores na cidade de Chicago. Perguntaram-lhe por que tinha colocado uma mulher com véu para representar o mal. “O mal toma a forma de beleza, é quase bonito... ele se disfarça e se mascara, mas se as antenas de vocês estiverem ligadas, vão identificá-lo.”

Pedro adverte: “Cuidado, há um gato predador pronto para saltar sobre a presa. Nada de cochilar!” Através do poder da graça de Deus, você experimentará vitória sobre a tentação. 

Ellen White nos aconselha: "Os que são participantes da natureza divina não cederão à tentação. 'Fiel é Deus, que vos não deixará tentar acima do que podeis, antes com a tentação dará também o escape, para que a possais suportar' (1Co 10:13). E nós temos também uma parte a fazer. Não nos devemos pôr, sem necessidade, no caminho da tentação. Deus diz: 'Saí do meio deles, e apartai-vos... e não toqueis nada imundo, e Eu vos receberei; e Eu serei para vós Pai e vós sereis para Mim filhos e filhas' (2Co 6:17 e 18). Se, associando-nos com pessoas do mundo em busca de prazeres, conformando-nos com as práticas mundanas, unindo os nossos interesses com incrédulos, colocamos os pés no caminho da tentação e do pecado, como poderemos esperar que Deus nos guarde de cair? Conservai-vos afastados da influência corruptora do mundo. Não vades, sem necessidade, a lugares onde as forças do inimigo se acham entrincheiradas fortemente. Não vades para onde sabeis que sereis tentados e desviados" (Mensagens aos Jovens, pp. 81-82).

Portanto, fuja das tentações para o Senhor. Não pense… corra! Não ande pelo penhasco para ver o quão perto você consegue chegar à beira dele. Apresse-se para afastar-se dele! Você não está apenas “fugindo”; está se protegendo. Portanto... não converse com a serpente!

quinta-feira, 28 de abril de 2022

FUNDAMENTALISMO

“Um retorno às raízes”, diriam os promotores deste movimento. Seu objetivo é o retorno aos que são considerados princípios fundamentais ou vigentes na fundação de seu grupo.

O Fundamentalismo surgiu como um movimento nos Estados Unidos, começando entre os teólogos conservadores presbiterianos no Seminário Teológico de Princeton no final do século XIX, logo se espalhando entre os conservadores batistas e de outras denominações entre os anos de 1910-1920. O propósito do movimento era de reafirmar antigas crenças dos cristãos protestantes que zelosamente as defendiam contra a teologia liberal, alto criticismo, o darwinismo, e outros movimentos que consideravam como ameaçadores ao cristianismo.

Dentre os fundamentos defendidos, nenhum se destacou tanto quando a inspiração da Bíblia pelo Espírito Santo, e sua inerrância e literalidade. A teoria da evolução era contrastada com a descrição da criação contida nos primeiros capítulos de Gênesis. Entre crer que o homem foi resultante de um longo processo de seleção natural ou crer que ele foi literalmente moldado do barro, os fundamentalistas preferiam crer no segundo caso. Em vez de crer que o universo teria cerca de 15 bilhões de anos, tendo sido iniciado com o big bang, preferiam crer que ele não teria mais do que seis mil anos e que teria sido criado em seis dias literais. Para o fundamentalista, sem que estes alicerces sejam garantidos, a fé cristã não se sustenta. Se Adão não foi um personagem real, logo, Jesus não poderia ser chamado de o último Adão.

O Fundamentalismo, portanto, é um movimento pelo qual os partidários tentam salvar a identidade religiosa da absorção pela cultura ocidental moderna, ainda que para isso, recorra à segregação em maior ou menor grau. Algo análogo ao proposto por alguns grupos sectários do tempo de Cristo, tais como os fariseus e os essênios, que tentavam impedir que os judeus cedessem ao processo de helenização de sua cultura. A diferença entre eles era que os fariseus eram uma resistência interna, recusando-se a se ausentar da sociedade, enquanto os essênios preferiram abandonar o convívio social com seus patrícios e formar comunidades à parte. Mesmo entre os cristãos primitivos, haviam os que poderíamos chamar de fundamentalistas, pois propunham um retorno à Lei de Moisés, rendendo-lhes a alcunha de judaizantes. Para estes, um gentio convertido à fé cristã, deveria cumprir as exigências da lei mosaica, tanto quanto um judeu.

Os fundamentalistas creem firmemente que a sua causa é de vital, grave e cósmica importância, vendo a si mesmos como protetores de uma única, reta e distinta doutrina, modo de vida e de salvação. O muro doutrinário erigido pelos fundamentalistas visa proteger a identidade do grupo, não só em oposição a religiões estranhas, mas também contra os modernizadores, os que aderem ao diálogo com outras tradições e com a ciência.

De fato, suas propostas exercem certo poder de atração sobre os que abraçam a fé no evangelho. Parece razoável lutar por sua pureza e pela preservação de sua identidade. Teme-se que a fé se dilua de tal maneira que acabe perdendo sua relevância e credibilidade. O liberalismo teológico e sua proposta de repensar o cristianismo a partir de lentes modernas tornou-se seu arqui-inimigo. O cenário atual das igrejas na Europa é usado como prova de que o liberalismo tende a matar o cristianismo, tornando-o obsoleto. Mas o que parecem desconhecer é que o que minou a credibilidade do cristianismo na Europa foi justamente o apoio dado por cristãos fundamentalistas às agendas políticas de exploração e opressão. Não foram os liberais que apoiaram Hitler, mas os fundamentalistas.

O único retorno que o Cristo pede de Seu povo é uma volta ao primeiro amor (Apocalipse 2:4-5). Não se trata de ter as mesmas opiniões dos cristãos primitivos acerca de tudo, mas de, conforme Paulo, “ter o mesmo sentimento que houve em Cristo” (Filipenses 2:5). Não é possível enxergar o mundo com as lentes pré-modernas. Seria um suicídio intelectual. Porém, como disse Jesus, se nossos olhos forem bons, todo o nosso corpo será luminoso. Deixaremos de ser propagadores de ódio e preconceito, e seremos propagadores da mais subversiva mensagem de Cristo: o amor. Eis o fundamento da nossa fé. Por isso, Paulo afirma que o que importa é a fé que opera pelo amor (Gálatas 5:6).

Em vez de nos fundamentar em dogmas passíveis de revisão, devemos estar ”arraigados e fundados em amor” (Efésios 3:17). Afinal, como concluiu o apóstolo, até mesmo as profecias passarão, mas o que deve permanecer até o fim são “a fé, a esperança e o amor, mas o maior deste é o amor” (1 Coríntios 13:13).

[via blog de Hermes C. Fernandes]

Nota do blog: "O adventismo pode ser considerado fundamentalista? A resposta pode ser sim ou não, dependendo dos parâmetros adotados. Se tomarmos o fundamentalismo em seu sentido histórico, então teremos um conteúdo doutrinário definido e características bem destacadas para uma avaliação objetiva. Mas se tomarmos fundamentalismo no sentido metafórico atual, como um fenômeno sociológico e não como um fenômeno doutrinal, a avaliação torna-se mais subjetiva e mais sujeita a equívocos. Atualmente, o termo fundamentalismo tem uma carga quase exclusivamente negativa e pejorativa. Fundamentalista é o fanático, o sectário, o intolerante, o conservador, o autoritário, o totalitário e sempre são os ‘outros’" (Trecho do artigo de Isaac Malheiros "Os Adventistas do Sétimo Dia e o fundamentalismo cristão: Uma avaliação histórica e teológica").

Com base nesse artigo, é possível concluir que, apesar de ter algumas afinidades com o conservadorismo teológico do fundamentalismo, o adventismo não sustenta algumas crenças centrais do fundamentalismo, como a inspiração verbal e a inerrância bíblica. Apesar disso, por causa da polarização entre fundamentalistas e liberais no início do século XX, os adventistas por vezes se identificaram como fundamentalistas, e tal identificação produziu efeitos que se fazem sentir até hoje dentro do adventismo.

Leia também o artigo da Revista Zelota "Adventistas, fundamentalismo e a Ku Klux Klan", onde ele aponta que mesmo fundada por pioneiros abolicionistas radicais, a igreja adventista se associou à Ku Klux Klan motivada por pautas fundamentalistas.

quarta-feira, 27 de abril de 2022

LÚCIFER FOI REGENTE DO CORO CELESTIAL?

O uso incorreto dos escritos de Ellen White tem dado origem a muitas lendas e mitos adventistas. A maneira como isso ocorre é semelhante à brincadeira do telefone sem fio. Você sabe como é o jogo, a simples frase “Maria foi nadar na piscina” torna-se no fim da roda em “Azarias não jogou nada na latrina”.

Tenho aprendido que o problema não está com certas declarações de Ellen White e sim com a maneira em que seus escritos são lidos, descontextualizados e abusados. Uma das interpretações que tem se tornado quase proverbial em nosso meio é a ideia de que Lúcifer era “regente do coro celeste”. A ideia é baseada na seguinte citação de Ellen White:

“Satanás tinha dirigido o coro celestial. Tinha ferido a primeira nota; então todo o exército angelical havia-se unido a ele, e gloriosos acordes musicais haviam ressoado através do Céu em honra a Deus e Seu amado Filho. Mas agora, em vez de suaves notas musicais, palavras de discórdia e ira caíam aos ouvidos do grande líder rebelde” (História da Redenção, p. 25).

Primeiramente, é importante ressaltar que a revelação bíblica, a luz maior, em nenhum momento retrata Lúcifer como regente do coro celeste. Isso já seria razão suficiente para sermos cautelosos ao fazer afirmações categóricas sobre as atividades de Lúcifer no céu antes de sua queda.

Mas alguns textos bíblicos são usados para provar a idéia de que Satanás era músico; veja Ezequiel 28:13-15:

“Estiveste no Éden, jardim de Deus; cobrias-te de toda pedra preciosa: a cornalina, o topázio, o ônix, a crisólita, o berilo, o jaspe, a safira, a granada, a esmeralda e o ouro. Em ti se faziam os teus tambores e os teus pífaros; no dia em que foste criado foram preparados. Eu te coloquei com o querubim da guarda; estiveste sobre o monte santo de Deus; andaste no meio das pedras afogueadas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que em ti se achou iniquidade.”

A passagem acima faz parte de um juízo proferido sobre o rei de Tiro, portanto, a intenção original de Ezequiel não é tratar de Lúcifer em seu estado não caído e por isso, precisamos respeitar o contexto. Mesmo que haja certos paralelos entre a altivez do rei de Tiro e Lúcifer, a linguagem não trata deles de forma literal. Por exemplo, porque o texto trata de instrumentos musicais, alguns concluem que isso se refere ao dom musical de Lúcifer no céu, enquanto outros até vêem aí uma prova de que havia “tambores” no céu. Mas a linguagem aqui é poética, simbólica e metafórica e o hebraico é de difícil tradução e inconclusivo ao falar de instrumentos, é necessária cautela.

Podemos, no entanto, aplicar os princípios da queda do rei de Tiro como símbolo da queda de Lúcifer, já que há alguns paralelos óbvios, tais como “eras o selo da perfeição, cheio de sabedoria e perfeito em formosura” (v. 12). Mas ao mesmo tempo em que há paralelos, há também disparidades entre os dois personagens que nos impedem de criar um paralelo literal entre cada elemento do texto de Ezequiel com Lúcifer. Assim, tentar literalizar a passagem de Ezequiel nos traz dificuldades já que se Lúcifer era músico e tocava “tambores e pífaros” (v. 13) no céu, então ele também era coberto de jóias preciosas literalmente, se engajou em “comércio” lá (v. 16, 18), profanou os seus próprios “santuários” (v. 18) e Deus o expulsou em direção à “terra” (que supostamente ainda não havia sido criada!) e o expôs perante “reis” (v. 16, 17). O disparate exegético deveria ser óbvio.

Concluir, portanto, que Lúcifer era regente do coro celestial ou até mesmo músico com base nos instrumentos citados na passagem de Ezequiel é forçar o texto bíblico. Isso não quer dizer necessariamente que Lúcifer não era músico no céu, a Bíblia contém muitas cenas de louvor oferecido pelos anjos a Deus. Mas querer precisar que função Lúcifer tinha no céu é ir além da revelação.

O outro texto citado é Jó 38:4-7, que mostra que fala do “coro celestial”:

“Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? ... quando juntas cantavam as estrelas da manhã, e todos os filhos de Deus bradavam de júbilo?”

O texto pode estar se referindo a um coro de anjos cantando nas eras sem fim da eternidade, mas não trata de Lúcifer em específico. Acima de tudo, assim como Ezequiel, o texto de Jó é poético e simbólico.

Pessoalmente, não tenho nenhum problema a priori com a idéia de que Lúcifer possa ter sido "regente do coro celestial", assim como não teria problema com a idéia de que ele possa ter sido compositor, pintor, escultor ou mesmo arquiteto das cortes celestiais. O problema é ter base escriturística para fundamentar tais afirmações.

É interessante notar que a idéia de que Lúcifer tivera posição de líder dos anjos não é original de Ellen White. Esse conceito parece ter se tornado parte da tradição cristã e era ideia comum para alguns autores no tempo de Ellen White.[1] Ela estaria apenas refletindo uma ideia periférica da sua época neste ponto (como fez em muitos outros[2]) para expressar um ponto mais importante sobre a atuação de Lúcifer.

Com esse breve pano de fundo bíblico e histórico, voltemos então à passagem de Ellen White. Uma leitura mais cuidadosa da passagem indica que Ellen White não pretendeu fazer uma declaração sobre a posição de regente musical de Lúcifer. Ela escreveu que “Satanás tinha dirigido o coro celestial. Tinha ferido a primeira nota,” o que expressa uma ação pontiliar num passado distante e não uma ação constante necessariamente. Note que a conclusão que Satanás tinha a posição estabelecida de “regente do coro” não está no texto. Essa nuance é importante para o entendimento da intenção de Ellen White.

Ela claramente não está fazendo uma declaração sobre a função de músico de Lúcifer ou como a música é executada nas cortes celestiais, mas está ressaltando sua posição em relação aos anjos: ele era o anjo mais exaltado, tinha primazia em termos de criação e função.

Lúcifer é retratado aqui como aquele que, dentre os anjos, primeiro sentiu em seu coração o desejo de louvar a Deus, ele iniciou o louvor, feriu a "primeira nota" e os anjos seguiram. Assim, a metáfora da música celestial é usada por Ellen White para criar um forte contraste entre a submissão de Lúcifer a Deus ao alçar louvores a Ele e a rebelião que começava a surgir em seu coração através da discórida e desarmonia. Veja que ela continua dizendo... “mas agora, em vez de suaves notas musicais, palavras de discórdia e ira caíam aos ouvidos do grande líder rebelde.” Aqui Lúcifer abandonara o desejo de louvar a Deus. Dessa forma, a metáfora musical é usada para fins primordialmente homiléticos, para expressar um ponto mais importante, a saber, a exaltação de Lúcifer perante os anjos e sua repentina queda.

O detalhe musical sobre Lúcifer é informação periférica, é como a moldura de um quadro, que se for retirada, não impacta a apreciação da arte. Em outras palavras, Ellen White poderia ter dito, "Lúcifer foi o primeiro anjo a apreciar a beleza do céu, seguido pelos outros anjos. Mas agora, em vez de apreciar a beleza do céu, ele começou a criticar tudo".

O ponto central é o mesmo: Lúcifer foi privilegiado, mas caiu pelo orgulho ou arrogância. O objetivo de Ellen White aqui não é descrever a posição musical de Lúcifer e sim traçar um contraste entre sua posição de fidelidade a Deus e sua subsequente atitude de rebelião.

Além da precariedade do argumento do ponto de vista bíblico e o fato de que Ellen White não disse que Satanás era "regente" do coro celeste, a ideia de que Lúcifer tinha esse função específica também esbarra em problemas lógicos. O primeiro deles é o tamanho do coro celeste; se houvesse mesmo a necessidade de um regente, deveria haver milhares de sub-regentes para um coro de milhares, milhões ou bilhões de anjos, como ocorre com grandes corais aqui. O problema é que a necessidade de um regente nos moldes de um diretor de coral terrestre fere o conceito bíblico de que os anjos são perfeitos em todos os sentidos e superiores ao homem (Salmo 8:5; Heb 2:7). Por quê?

Anjos perfeitos em poder não devem necessitar de um regente que indique o compasso, mudanças de dinâmica, cadência, rallentandos, pianissimos ou mezzo fortes, se é que a música celeste sequer pode ser descrita nos moldes terrestres!

Nem mesmo deve ser necessário que alguém lhes dê a “primeira nota” nos padrões de um regente terrestre, como se os anjos precisassem disso para se manterem no tom. Existem seres humanos que possuem o que chamamos de “ouvido absoluto”, ou seja, não precisam que ninguém lhes toque ao piano ou sopre num diapasão um Dó ou Fá, eles ouvem a nota automaticamente em seu ouvido e cantam no tom. Quanto mais os anjos que foram criados de forma superior ao homem! E até mesmo em nossa esfera decaída, há muito coral profissional por aí que não necessita de regente. Creio que deu para entender os problemas com uma leitura rígida da passagem em questão.

Em conclusão, nosso estudo revela que Ellen White se valeu de certa forma de uma ideia comum em seu tempo, a saber, de que Lúcifer era líder do anjos, inclusive nos louvores, para ilustrar um ponto mais importante, o da sua posição elevada e repentina queda. Também não há nada na passagem que indique que esse conceito fora parte de uma revelação especial a Ellen White.

Se Lúcifer era ou não "regente do coro celestial" é irrelevante, já que ele não caiu de sua elevada posição por rebelião ao governo de Deus em questões musicais. Assim, devemos ler a passagem sobre Lúcifer e o coro celeste mais por sua força retórica sobre a exaltação e subsequente queda de Lúcifer, e não como uma declaração de qual função musical ele exercia no céu ou como é realizada a música celeste

Cabe aqui também uma palavra de exortação. Infelizmente, a intenção de muitos que usam a passagem de Satanás como suposto “regente do coro celeste” é quase sempre demonizar (literalmente) a música sacra contemporânea. Ouvem-se afirmações do tipo “Satanás é músico, temos que ter cuidado com avanços na música adventista.” Assim, cria-se um espantalho ao redor da música adventista para coibir, oprimir e ostracizar músicos. Nossos músicos não têm liberdade para trabalhar porque sempre correm o risco de se tornar culpados por associação com Lúcifer, o músico par excellence, o “regente do coro celeste”.

Com certeza Satanás deve ter um vasto conhecimento da música celeste e bem como da terrestre, mas ele não foi originador da música, Deus o é. Não entreguemos a Satanás algo que pertence a Deus, o dom da música, e não façamos os músicos da Igreja culpados por associação porque um suposto “regente do coro celeste” caiu em rebelião.

E, ironicamente, Satanás sempre alcança seu objetivo de espalhar desarmonia na igreja quando, no afã de evitar o complexo do “regente Lúcifer”, caímos em extremos na questão da música sacra, julgando a intenção dos nossos irmãos, impondo nossas ideias pessoais do que Deus aceita ou não ("Se eu não gosto, Deus não gosta também"), criticando e condenando.

No fim das contas, o maior problema dos músicos e adoradores adventistas não é tanto “musical” e sim “relacional”, seja no relacionamento com Deus ou com nosso próximo, como foi para Lúcifer. Cultive relacionamentos saudáveis na questão da música sacra para não cair no mesmo problema daquele anjo caído.

André Reis (via Adventismo Hoje)

[1] Veja, por exemplo, John Milton, Paradise Lost (Londres: 1674), Livro IV, 600-605; ibid., Livro VII, 130; Daniel Defoe, The Political History of the Devil (1726), p. 49, ibid., The Life and Adventures of Robinson Crusoe (1800), p. 119, Emily Percival, The Token of Friendship (1852), que usa linguagem bem semelhante à de Ellen White: “Lúcifer pode haver sido o líder daquele coro celeste” (p. 26).

[2] Como por exemplo, 6.000 anos para a idade da terra, ideia comum no século 19 hoje questionada por cientistas criacionistas e arqueólogos adventistas. A história da civilização humana tem pouco mais de 6 mil anos, talvez 10 mil. Ellen White nunca procurou estabelecer a idade da terra, ela usou o cômputo para ressaltar um ponto mais importante, a saber, a longa odisséia do pecado na terra.

EVIDÊNCIAS DO DILÚVIO

Fóssil da perna do dinossauro encontrado no sítio paleontológico de Tanis. (Fonte: BBC)
A única forma de conhecer animais que foram extintos é por meio dos registros fósseis. Estudando esses elementos, podemos ter pistas de como essas criaturas viviam, se alimentavam, se reproduziam e até mesmo como morreram. Os fósseis são motivo de fascínio para muitos, e dão asas à imaginação de crianças e adultos, especialmente quando o assunto são os dinossauros.

Para a maioria dos cientistas, que adotam a cosmovisão evolucionista, o início da extinção dos dinossauros começou há cerca de 66 milhões de anos, quando um grande asteroide, de 12 km de largura, atingiu a região que hoje conhecemos como Península de Yucatán, no México. Já para os pesquisadores que consideram a cosmovisão criacionista, as evidências científicas apontam para um dilúvio universal como sendo o principal evento responsável pela extinção de grande parte das espécies que viveram há muito tempo, e pela formação dos seus fósseis.

Sítio de Tanis
Um achado recente tem enchido pesquisadores de expectativa. Em uma região conhecida como Tanis, no Estado de Dakota do Norte, nos Estados Unidos, foram encontrados fósseis reveladores: uma perna completamente preservada, um embrião de pterossauro ainda dentro do ovo e outros fósseis de peixes.

O mais interessante a respeito desse fóssil é que cientistas afirmam ser possível que ele tenha morrido, instantaneamente, no dia do impacto do asteroide que teria dizimado os dinossauros. Isso é totalmente novo, já que pouquíssimos fósseis de alguns milhares de anos antes do impacto foram encontrados, mas não do mesmo período. Daí a importância desse achado. [1]

Mais curioso ainda é a localização em que esses fósseis foram encontrados: a cerca de três mil quilômetros do local atingido pelo asteroide. Isso mostra a monstruosidade desse impacto e suas consequências, que foram sentidas em proporções globais.
Distância entre o local do impacto (Yucatán, Chicxulub, México) e o sítio paleontológico de Tanis, Estados Unidos. (Fonte: BBC One)
Mas você pode se perguntar: como os paleontólogos sabem que esses animais morreram imediatamente após a colisão desse asteroide? É certo que um impacto dessa magnitude teria provocado tsunamis, terremotos, erupções vulcânicas, além de levantar uma grande nuvem de poeira que continha, inclusive, partículas do próprio asteroide. De acordo com os pesquisadores envolvidos no estudo dos fósseis em Tanis, “os restos dos animais e plantas parecem ter sido rolados juntos com sedimentos por ondas do rio provocadas por inimagináveis tremores. Organismos aquáticos foram misturados com criaturas terrestres. [...] Parece que esse animal teve a perna arrancada muito rapidamente. Não há evidência do contrário. Então, a melhor explicação que temos é que esse animal morreu rapidamente”. [2]

Análises químicas e físicas mostraram pequenas partículas de vidro preservadas em resinas de árvores e em peixes que, provavelmente, respiraram essas partículas junto com a água do rio. Elas possuem a mesma composição e características extraterrestres que aquelas identificadas na região do impacto, no México. Ainda são necessárias mais pesquisas e artigos para confirmar essas observações. Elas ainda não são consenso, havendo alguns cientistas céticos a respeito do momento da morte desses animais. [1][2]

Os efeitos do dilúvio, como conhecemos a partir da Bíblia, se parecem muito com as descrições feitas por esses especialistas. No capítulo 7 de Gênesis, a descrição é assustadora: “(...) romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as comportas dos céus se abriram, e caiu chuva sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites” (versos 11 e 12). Termos bem conhecidos hoje, como tsunamis, meteoros e placas tectônicas, não existiam na época em que o Gênesis foi escrito, mas as evidências científicas mostram que é possível que esses tipos de eventos tenham acontecido durante o dilúvio, inclusive impactos de grandes asteroides, mudando a geografia e o clima do planeta Terra.

Também é possível perceber, pelas afirmações dos pesquisadores, que os eventos responsáveis pela morte desses animais foram instantâneos, matando-os rapidamente. Mais uma vez, há coerência com as condições do dilúvio bíblico.

Referências:

[via ASN]

segunda-feira, 25 de abril de 2022

EVANGELHO DO MEU JEITO

O maior problema dos cristãos na atualidade não é a superficialidade, como muitos apregoam, é, isto sim, viver de modo extremamente diferente do que a Bíblia diz. Funciona mais ou menos assim: Deus nos converte, lemos a Bíblia, aprendemos a ser crentes e, a partir daí, formamos uma ideia mental do que é ser cristão. O problema é que passamos a pôr o foco em uma dúzia de temas da Escritura e nos esquecemos de todo o restante.

Em dias de polarização ideológica e teológica, isso está mais claro do que nunca. Conservadores passam a agir como se a Bíblia só falasse de aborto, homoafetividade e liberalismo econômico. Progressistas passam a agir como se a Bíblia só falasse dos pobres e do racismo. Pentecostais passam a agir como se a Bíblia só falasse de poder e vitória. Calvinistas passam a agir como se a Bíblia só falasse dos cinco pontos. Neopentecostais passam a agir como se a Bíblia só falasse de prosperidade e cura. E assim por diante.

(Se você ficou incomodado com o que falei no parágrafo anterior, possivelmente, este texto é para você).

O evangelho jamais pode ser vivido de forma fracionada. Ele não menospreza nem inferioriza nenhum tema que é importante para Deus. O coração de Deus se preocupa com os pobres, pretos e favelados tanto quanto com as crianças assassinadas no ventre e os que pecam em sua sexualidade. O olhar de Deus é amplo, geral e irrestrito.

O Criador fala na Palavra sobre justiça social e fala sobre moralidade. Ele põe o adultério e o assassinato no mesmo decálogo que a desonra a pai e mãe e a cobiça ao que é do outro. Deus valoriza os cinco pontos, mas também valoriza outros 600. Nós é que complicamos, parcelando e fragmentando a boa nova de Cristo.

Não é pecado você dar mais atenção a certas temáticas bíblicas que a outras. O pecado está em menosprezar as demais e, pior, desqualificar os irmãos que atentam para as demais, como se evangelho fosse só o que te interessa.

Que vivamos o evangelho pleno, amando-o e valorizando-o em sua integralidade. Fora disso, só resta um outro evangelho, feito à imagem e semelhança de si próprio e não do Salvador, Jesus.

Maurício Zágari (via facebook)

"Devemos procurar viver o evangelho em todos os seus ângulos, a fim de que suas bênçãos temporais e espirituais sejam sentidas ao redor de nós" (Beneficência Social, p. 199).

"O Evangelho que apresentamos para a salvação das almas deve ser o Evangelho pelo qual nós mesmos sejamos salvos. Só por uma fé viva em Cristo como Salvador pessoal é que se torna possível fazer sentir nossa influência num mundo incrédulo. Se queremos retirar os pecadores da impetuosa corrente, devemos firmar os pés sobre a Rocha, Jesus Cristo" (A Ciência do Bom Viver, p. 208).

sábado, 23 de abril de 2022

A VERDADEIRA HISTÓRIA DE SÃO JORGE

Talvez poucos saibam, mas dia 23 de Abril é dia dedicado a São Jorge. Famoso por matar o dragão e por ter seu retrato estampado na lua, São Jorge é personagem singular dentro do sincretismo religioso brasileiro e consegue unir cristãos, espiritualistas e até amantes de futebol (é santo padroeiro de um clube de futebol brasileiro). Mas o mais que sabemos sobre ele é apenas fruto de lendas e crendices. Rejeitado pelos cristãos ditos evangélicos tradicionais, São Jorge é uma figura até certo ponto desconhecida. Com o objetivo de ajudar a resgatar a verdadeira história do insigne personagem escondida debaixo das lendas e superstições populares, confira o texto abaixo de Hermes C. Fernandes.

Em torno do século III d.C., quando Diocleciano era imperador de Roma, havia nos domínios do seu vasto Império um jovem soldado chamado Jorge de Anicii. Filho de pais cristãos, converteu-se à fé cristã ainda na infância, quando passou a temer a Deus e a crer em Jesus como o salvador do mundo. Nascido na antiga Capadócia, região que atualmente pertence à Turquia, Jorge mudou-se para a Palestina com sua mãe, após a morte de seu pai. Tendo ingressado para o serviço militar, distinguiu-se por sua inteligência, coragem, capacidade organizativa, força física e porte nobre. Foi promovido a capitão do exército romano devido a sua dedicação e habilidade.

Tantas qualidades chamaram a atenção do próprio Imperador, que decidiu lhe conferir o título de Conde. Com a idade de 23 anos passou a residir na corte imperial em Roma, exercendo altas funções. Nessa mesma época, o Imperador Diocleciano traçou planos para exterminar os cristãos. No dia marcado para o senado confirmar o decreto imperial, Jorge levantou-se no meio da reunião declarando-se espantado com aquela decisão, e, afirmando sua total lealdade a Cristo, recusou-se a prestar culto a qualquer outra divindade . Todos ficaram atônitos ao ouvirem estas palavras de um membro da suprema corte romana, defendendo com grande coragem sua fé.

Indagado por um cônsul sobre a origem desta ousadia, Jorge prontamente respondeu-lhe que era por causa da Verdade. O tal cônsul, não satisfeito, quis saber: "O que é a verdade?". Jorge respondeu: "A verdade é o meu Senhor Jesus Cristo, a quem vós perseguis, e eu sou servo de meu redentor Jesus Cristo, e n'Ele confiando, pus-me no meio de vós para dar testemunho da Verdade." Como Jorge mantinha-se fiel a Jesus, o Imperador tentou fazê-lo desistir da fé torturando-o de vários modos. E, após cada tortura, era levado perante o Imperador, que lhe perguntava se renegaria a Jesus para adorar aos deuses romanos. Porém, este santo homem de Deus jamais abriu mão de suas convicções e de seu amor a Jesus. Todas as vezes em que foi interrogado, sempre declarou-se servo do Deus Vivo, mantendo seu firme posicionamento de somente a Ele prestar culto.

Em seu coração, Jorge de Capadócia discernia claramente o propósito de tudo o que lhe ocorria, lembrando-se das palavras de Jesus aos Seus discípulos: “...vos hão de prender e perseguir, entregando-vos às sinagogas e aos cárceres, e conduzindo-vos à presença de reis e governadores, por causa do meu nome. Isso vos acontecerá para que deis testemunho”. (Lucas 21:12:13). A fé deste jovem soldado era tamanha que muitas pessoas passaram a crer em Jesus e confessá-lo como Senhor por intermédio do seu testemunho. Durante seu martírio, Jorge mostrou-se tão confiante em Cristo e em Sua obra redentora na cruz, que a própria Imperatriz alcançou a Graça da salvação eterna, rendendo sua vida a Cristo. Sua fidelidade e amor a Deus contagiaram o coração de toda uma geração de romanos.

Por fim, Diocleciano mandou degolar o jovem e fiel discípulo de Jesus em 23 de abril de 303. Em pouco tempo, a devoção a São Jorge se popularizou. Celebrações e petições às imagens que o representavam se espalharam pelo Oriente e, depois das Cruzadas, tiveram grande aceitação no Ocidente. Como se não bastasse, muitas lendas foram se somando à sua história, inclusive a que diz que ele teria enfrentado e amansado um dragão que atormentava uma cidade.

Em 494, a devoção era tamanha que a Igreja Católica o canonizou, estabelecendo cultos e rituais a serem prestados em homenagem à sua memória. Assim, confirmou-se a devoção a Jorge, até hoje largamente difundida, inclusive em grandes centros urbanos, como a cidade do Rio de Janeiro, onde desde 2002 faz-se feriado municipal na data comemorativa de sua morte.

Jorge é cultuado através de imagens produzidas em esculturas, medalhas e cartazes, onde se vê um homem vestindo uma capa vermelha, montado sobre um cavalo branco, atacando um dragão com uma lança. Ironicamente, o que motivou o martírio deste santo homem foi justamente sua batalha contra a adoração e veneração de imagens fartamente adotadas pelos romanos.

Apesar de tudo, o fato é que Jorge de Capadócia obteve um testemunho reto e santo, que causou impacto e conduziu muitas vidas a Cristo. Por amor ao Evangelho, ele não se preocupou em preservar a sua própria vida; em seu íntimo, guardava a Palavra: “ ...Cristo será, tanto agora como sempre, engrandecido no meu corpo, seja pela vida, seja pela morte” (Filipenses 1:20). Deste modo, cumpriu integralmente o propósito eterno para o qual havia nascido: manifestou o caráter do seu Senhor e atraiu homens e mulheres ao reino de Cristo.

Se você é devoto deste celebrado mártir da fé cristã, faça como ele e atribua toda honra, glória e louvor exclusivamente a Jesus Cristo, por quem Jorge de Capadócia viveu e morreu. Para além das lendas que envolvem seu nome, o grande dragão combatido por ele foi a idolatria que infelizmente hoje impera em torno de seu nome, e até mesmo em torno do nome do Cristo a quem Ele dedicou sua existência. A melhor maneira de honrá-lo e prestigiá-lo não é com fogos de artifício, promessas e festa, mas imitando-o em sua fé e devoção a Cristo.

Idolatria não se resume a prostrar-se ante uma escultura qualquer, mas estabelecer uma relação supersticiosa, onde o santo ou o próprio Deus é visto apenas como alguém a quem recorrer na busca de solução para os seus problemas. Cristo, o Deus que Se humanizou para habitar entre nós, é muito mais do que alguém pronto a atender nossos pedidos. Ele é o Salvador dos homens, o Senhor do Mundo, o Mestre do Amor. Homens e mulheres que o serviram e hoje são considerados santos pela tradição podem ser imitados em sua fé, ter sua memória celebrada, mas jamais considerados semi-deuses prontos a atender nossas solicitações. De acordo com os ensinamentos encontrados nos evangelhos, nossos pedidos devem ser dirigidos ao Pai em nome de Seu Filho Jesus. E Ele tem prazer em nos atender, não com a intenção de mostrar o quão poderoso é, mas simplesmente por nos amar e se importar com cada um de Seus filhos.

A pior idolatria denunciada por Jesus ocorre quando nos devotamos ao dinheiro e a aquisição de bens materiais. Façamos deles um meio para socorrer aos necessitados e não um fim em si mesmos. Nada nesta vida pode tomar o lugar de Deus. Esta foi a grande lição que Jorge da Capadócia nos deixou. O dragão que devemos vencer é o do egoísmo, da ganância, do ódio, do preconceito e de tudo o que nos afasta de Deus e do nosso próximo.

Ilustração de Johann König - Saint George Defeating the Dragon (c.1630)

quinta-feira, 14 de abril de 2022

QUANTO MAIS SANTO, MAIS IMPERFEITO

Ninguém que pretenda ser santo é realmente santo. […] Quanto mais se aproximam de Cristo, mais lamentam suas imperfeições em comparação com Ele, pois sua consciência se torna mais sensível, e percebem melhor o pecado, assim como Deus o percebe.1

À medida que você avança na vida cristã, estará constantemente crescendo rumo à medida da estatura da plenitude de Cristo. Em sua experiência, você provará a largura e o comprimento, a profundidade e a altura do amor de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento. Você sentirá sua indignidade. Não terá nenhuma disposição de reivindicar perfeição de caráter, mas somente de exaltar a perfeição de seu Redentor. Quanto maior e mais rica for sua experiência no conhecimento de Jesus, mais humilde você será aos seus próprios olhos. Quanto menor você se sentir ao pé da cruz, mais clara e mais exaltada será sua concepção de seu Redentor. […]

Assim, quando o servo de Deus contempla a glória do Deus do Céu, tal como Ele é revelado à humanidade, e percebe, mesmo que em pequeno grau, a pureza do Santo de Israel, confessará intensamente a corrupção de sua alma, em vez de se orgulhar de sua santidade. […]

Eu me assusto e me sinto indignada quando ouço um pobre e caído mortal exclamar: “Eu sou santo; estou sem pecado!”. Ninguém a quem Deus concedeu uma extraordinária visão de Sua grandeza e majestade jamais declarou algo semelhante. Ao contrário, eles se sentiam afundados na mais profunda humilhação da alma quando viam a pureza de Deus e, em contraste com ela, as imperfeições de sua própria vida e caráter. Apenas um raio da glória de Deus, um vislumbre da pureza de Cristo, penetrando na alma, torna cada mancha de corrupção dolorosamente distinta, e põe a descoberta a deformidade e os defeitos do caráter humano. Como pode alguém que é trazido perante o santo padrão da lei de Deus, a qual revela as intenções malignas, os desejos não santificados, a infidelidade do coração, a impureza dos lábios, e desnuda a vida – como pode tal pessoa ter qualquer pretensão de santidade? Seus atos de deslealdade ao quebrantar a lei de Deus, são expostos à sua vista, e seu espírito é quebrantado e afligido sob a perscrutadora influência do Espírito de Deus. Ele repugna a si mesmo, à medida que vê a grandeza, a majestade, a pureza e o imaculado caráter de Jesus Cristo.

Quando o Espírito de Cristo alcança o coração com seu maravilhoso poder renovador, há um senso de deficiência na alma, que leva à contrição de mente e a humilhação própria, em vez do orgulhoso alarde do que a pessoa tem alcançado ou feito. […]

Quem foi tocado por Deus desse modo jamais se encobrirá com justiça própria ou com uma pretensa veste de santidade; mas detestará seu egoísmo, abominará seu egocentrismo, e buscará constantemente, por meio da justiça de Cristo, aquela pureza de coração que está em harmonia com a lei de Deus e o caráter de Cristo.2 

Enquanto durar a vida não haverá ocasião de repouso, nenhum ponto a que possamos atingir e dizer: “Alcancei tudo completamente”. A santificação é o resultado de uma obediência que dura a vida toda. […] Quanto mais nos aproximarmos de Jesus, e quanto mais claramente distinguirmos a pureza de Seu caráter, tanto mais claro veremos a excessiva malignidade do pecado, e tanto menos nutriremos o desejo de nos exaltar. […] A cada passo para a frente em nossa experiência cristã, nosso arrependimento se aprofundará. Saberemos que nossa suficiência está em Cristo unicamente, e faremos nossa a confissão do apóstolo: “Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Romanos 7:18).3 (grifo nosso).

Referências

1. Ellen White, Reavivamento Verdadeiro, p. 49.

2. Ellen White, Review and Herald, 16 de outubro de 1888.

3. Ellen White, Atos dos Apóstolos, p. 314.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

EM DEFESA DA SAÚDE

Imagine ser levado perante um tribunal para responder a acusações, não por guardar o sábado, mas por viver e ensinar a mensagem adventista de saúde. O que você diria se um juiz, olhando nos seus olhos, perguntasse: “Por que os adventistas do sétimo dia priorizam tanto a promoção da saúde?” E, batendo o martelo, o juiz exigisse: “Defenda-se!” Se eu estivesse nessa situação, responderia o seguinte:

NOSSA FILOSOFIA
Meritíssimo, se me permite, o trabalho de cuidado com a saúde e de cura é o cerne da Igreja Adventista. Nossa declaração de missão diz, entre outras coisas, que “defendemos os princípios bíblicos do bem-estar do ser humano como um todo, priorizamos a vida saudável e a cura dos doentes e, por meio do nosso ministério com os pobres e oprimidos, cooperamos com o Criador em Seu trabalho compassivo de restauração”.

Além disso, meritíssimo, declaramos em nossas crenças fundamentais que, “sendo nosso corpo o templo do Espírito Santo, devemos cuidar dele de maneira inteligente. Junto com adequado exercício e repouso, devemos adotar a alimentação mais saudável possível e nos abster dos alimentos imundos identificados nas Escrituras. Visto que as bebidas alcoólicas, o fumo e o consumo irresponsável de medicamentos e narcóticos são prejudiciais ao nosso corpo, também devemos nos abster dessas coisas. Em vez disso, devemos nos empenhar em tudo que submeta nossos pensamentos e nosso corpo à disciplina de Cristo, o qual deseja nossa integridade, alegria e bem-estar” (Nisto Cremos, CPB, 2018, p. 351).

Por essa razão, senhor juiz, os adventistas não consomem fumo, álcool, drogas recreativas, nem narcóticos. Nossa denominação incentiva uma dieta vegetariana equilibrada, evitando alimentos impuros, conforme listados no Antigo Testamento. Desde o início, a promoção da saúde, integridade e bem-estar humanos fazem parte do DNA da organização.

Em 1863, por exemplo, Ellen White, cofundadora da denominação, ajudou a moldar nossa filosofia de saúde. Muito antes de a evidência médica surgir, ela já falava com veemência sobre os perigos do fumo e do álcool e alertava a respeito dos riscos de medicamentos venenosos, que tinham como base o arsênico e o mercúrio.

Ela também condenou fortemente o consumo de chá-preto, café e o uso de estimulantes, bem como a ingestão de alimentos cárneos. A pioneira adventista defendeu o cardápio vegetariano equilibrado como a melhor dieta. Além disso, incentivou o uso de água pura e limpa (por dentro e por fora), ar puro, exercícios físicos regulares, descanso, fé, exposição apropriada ao sol, integridade e apoio social. Até hoje esses princípios são a base da nossa educação e prática de saúde.

PROMOÇÃO DA TEMPERANÇA
Senhor juiz, no fim dos anos 1950 e início da década de 1960, a Igreja Adventista liderou, nos Estados Unidos, as iniciativas contra o tabagismo, desenvolvendo o famoso Plano de Como Deixar de Fumar em Cinco Dias. Esse programa foi posteriormente revisado duas vezes e agora é chamado de BreatheFree 2.0 (Respire Livre 2.0). Essa abordagem continua a ser usada pelos adventistas em várias partes do mundo.

De fato, nossa denominação tem uma longa história de promoção da temperança. Realiza constantemente esse trabalho com o apoio de organismos como a Associação Internacional de Saúde e Temperança e da Comissão Internacional para a Prevenção do Alcoolismo e da Toxicodependência, entidade fundada em 1953 e que tem atuação em mais de 120 países.

A VANTAGEM ADVENTISTA
Meritíssimo, se me permite, gostaria de acrescentar que outros já reconheceram as vantagens para a saúde que resultam do estilo de vida promovido pelos adventistas. Por exemplo, a revista Time (28 de outubro de 1966) relatou o resultado positivo do primeiro Estudo de Saúde Adventista, descrevendo os resultados como a “vantagem adventista”. Nessa pesquisa observou-se que os adventistas apresentaram redução significativa no índice de câncer e cirrose hepática.

Estudos posteriores têm mostrado um aumento expressivo na longevidade entre os que vivem o estilo de vida adventista. Os resultados das meta-análises têm sido tão convincentes que o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos alocou 19 milhões de dólares para realizar o Estudo Adventista de Saúde II, com ênfase especial nas diferenças de doenças malignas entre os adventistas e a população em geral.

Nossos princípios de saúde receberam maior visibilidade internacional após uma reportagem da revista National Geographic de novembro de 2005 classificar a comunidade adventista de Loma Linda, no sul da Califórnia (EUA), como uma das populações mais longevas e saudáveis do planeta. A matéria, que procurou investigar os segredos para se viver mais tempo, acabou resultando depois no livro Zonas Azuis: A Solução para Comer e Viver como os Povos Mais Saudáveis do Planeta (nVersos, 2018). Na obra, o jornalista Dan Buettner mostrou lugares em que as pessoas vivem saudavelmente aos 80, 90 e até 100 anos de idade.

Em 20 de fevereiro de 2009, foi a vez do portal de notícias U.S. News and World Report publicar uma matéria sobre os onze hábitos que podem levar as pessoas a viver até um século. O oitavo hábito apresentado na reportagem era: “Viva como os adventistas do sétimo dia. Os americanos que se definem como adventistas do sétimo dia têm uma expectativa média de vida de 89 anos, cerca de uma década acima da média dos americanos. [...] Os fiéis normalmente seguem uma dieta vegetariana com base em frutas, vegetais, feijões, nozes e praticam exercícios físicos diariamente.”

MINISTÉRIO DE CURA
Contudo, por melhor que tudo isso pareça, meritíssimo, mais importante do que viver alguns anos a mais é a decisão de realizar o trabalho Daquele que nos enviou (Jo 9:4). Nós, adventistas, acreditamos que Deus nos muniu de orientações importantes de como ser saudáveis, felizes e santos.

E essa mensagem nos foi confiada para ser canalizada em benefício do próximo, a fim de aliviar o sofrimento do mundo. É por isso que nossa denominação mantém sete cursos de Medicina, mais de 70 de Enfermagem, além de 783 hospitais, clínicas e ambulatórios em todo o mundo. Mais de 250 mil funcionários trabalham nos sistemas de saúde adventistas, que operam sem fins lucrativos.

Nessas unidades de saúde são atendidos anualmente mais de 22 milhões de pacientes ambulatoriais e 1,5 milhão de internos. Somente nos Estados Unidos, a rede hospitalar adventista oferece por ano mais de 1,1 bilhão de dólares em serviços médicos gratuitos.

Portanto, estou diante do senhor, acusado de ensinar, promover e me entusiasmar com a mensagem de saúde adventista, que tem como base a Bíblia, os escritos de Ellen White e pesquisas científicas sólidas. Logo, meritíssimo, declaro-me culpado!

Peter N. Landless (via Revista Adventista)

DIA INTERNACIONAL DO BEIJO

Nesta quarta-feira (13) é comemorado o Dia Internacional do Beijo. É difícil saber, ao certo, o que motivou a criação da data comemorativa, mas diz a história - verdadeira ou não - que o italiano Enrique Porchelo beijava todas as mulheres que encontrava na vila em que vivia, casadas ou não. Em 13 de abril de 1882, o padre local teria oferecido um prêmio em moedas de ouro às mulheres que não haviam sido beijadas pelo "Don Juan". Conta a lenda que nenhuma apareceu e que o tesouro está escondido em algum lugar da Itália até hoje. 

No Antigo Testamento, o substantivo beijo, do hebraico neshîqâ, procede de uma raiz primitiva (nashaq) cujo significado básico é pegar fogo, queimar, acender, com a ideia de fixar, amarrar. No hebraico, o verbo beijar significa literalmente tocar levemente. No grego do Novo Testamento, o vocábulo para beijo deriva-se de phileo, amor, amizade, afeição.

Na Bíblia estão representados todos os motivos do beijo. Seus simples significados se recolhem em muitos textos distribuídos pelas páginas sagradas.

Beijo de amor
O beijo de amor, dado nos lábios, parece ser o mais efusivo que se conhece na Bíblia, especialmente em sua literatura poética. Ct 1:2 o evoca com palavras da protagonista: “Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o seu amor do que o vinho”. Em Pv 24:26, o autor do texto anterior, Salomão, vale-se do amor profundo que supõe o beijo nos lábios para o pôr como exemplo da boa resposta: “Beija com os lábios o que responde com palavras retas”. O primeiro beijo de amor entre Jacó e sua prima Raquel, ao encontrá-la pela primeira vez, foi um beijo de saudação de duas pessoas parentes: "E Jacó beijou a Raquel, e levantou a sua voz, e chorou” (Gn 29:11).

Beijo de amigo
Desde que se conheceram, “…a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi: e Jônatas o amou, como à sua própria alma” (1Sm 18:1). Quando ambos os jovens se vêem forçados a se separarem, as lágrimas e os beijos exteriorizam a forte amizade que os unia: “E, indo-se o moço, levantou-se Davi da banda do sul, e lançou-se sobre o seu rosto em terra, e inclinou-se três vezes: e beijaram-se um ao outro, e choraram juntos, até que Davi chorou muito mais” (1Sm 20:41).

Beijo paternal
Absalão não era precisamente um modelo de filho. Suas ambições pessoais o levaram s sublevar-se contra seu pai Davi e teve um final trágico. Porém Davi o amava. Levado à sua presença, depois de um período de afastamento, o rei pai beija o filho: “Então entrou Joabe ao rei, e assim lho disse. Então chamou a Absalão, e ele entrou ao rei, e se inclinou sobre o seu rosto em terra diante do rei: e o rei beijou Absalão” (2Sm 14:33). Em outra cena ingrata, Labão se queixa contra Jacó de não lhe haver permitido beijar suas filhas e netos (Gn 31:28). Em plena dúvida e num diálogo cordial, Labão beija e abençoa a todos: “E levantou-se Labão pela manhã de madrugada, e beijou seus filhos, e suas filhas, e abençoou-os, e partiu; e voltou Labão ao seu lugar” (Gn 31:55).

Beijo filial
O homem judeu manifestava seu amor filial por meio do beijo. Quando Elias pede a Eliseu que o siga, este lhe responde: “Deixa-me beijar a meu pai e a minha mãe, e então te seguirei” (1Rs 19:20). Jacó usava o beijo para agradar a vontade do pai acerca dos seus próprios interesses. Perto da morte, cego e acamado, Isaque confunde Jacó com Esaú e lhe diz: “Ora chega-te, e beija-me, filho meu. E chegou-se, e beijou-o; então cheirou o cheiro dos seus vestidos, e abençoou-o” (Gn 27:26-27).

Beijo fraternal
O beijo fraternal está representado em Moisés e Aarão. “E disse também o Senhor a Aarão: Vai ao encontro de Moisés ao deserto. E ele foi, encontrou-o no monte de Deus e beijou-o” (Êx 4:27). Quando o apóstolo Paulo estava prestes a partir de Mileto, os anciãos da Igreja de Éfeso ficaram tão comovidos, que “lançaram-se ao pescoço de Paulo e o beijaram ternamente” (At 20:17, 37).

Beijo entre genro e sogro
Moisés recebe a visita de seu sogro Jetro, que chega acompanhado de sua filha, mulher de Moisés, e netos. Os dois homens se saúdam com um beijo: “Então saiu Moisés ao encontro de seu sogro, e inclinou-se, e beijou-o, e perguntaram um ao outro como estavam, e entraram na tenda” (Êx 18:7).

Beijo entre sogra e nora
Muitas sogras e noras protagonizam a vida do VT. Porém não temos notícias de mulheres tão unidas como Noemi (a sogra) e Rute (sua nora). O amor que Rute tinha por Noemi tinha mais valor que sete filhos (Rt 4:15). Noemi enviuvou e morreram seus dois únicos filhos varões. Rute permanece junto a ela. Sua outra nora, Orfa, se despede de Noemi com lágrimas e beijos: “Então levantaram a sua voz, e tornaram a chamar: e Orfa beijou a sua sogra, porém Rute se apegou a ela” (Rt 1:14).

Beijo de perdão
José, tipo de Cristo no Velho Testamento, dá provas de seu grande coração. Desprezado e invejado por seus irmãos, vendido a mercadores que o revenderam como escravo, quando se encontra de novo com seus irmãos enche seus rostos com beijos de perdão. A dignidade de seu rasgo não impede a espontânea explosão sentimental: “E beijou a todos os seus irmãos, e chorou sobre eles; e depois seus irmãos falaram com ele” (Gn 45:15).

Beijo de reconciliação
Esta variante do beijo está representada no NT entre um pai perdoador e um filho pródigo e, no VT, por Esaú e Jacó. Estes dois irmãos andavam em disputas contínuas e Esaú toma a iniciativa do reencontro com um beijo reconciliador: “Então Esaú correu-lhe ao encontro, e abraçou-o, e lançou-se sobre o seu pescoço, e beijou-o; e choraram” (Gn 33:4). Mais conhecida é a parábola do filho pródigo. Diz Lucas: “E, levantando-se, foi para seu pai; e, quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se moveu de íntima compaixão, e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou” (Lc 15:20).

Beijo assassino
Joabe, chefe do exército de Davi, assassina seu primo Amasa com uma adaga que levava escondida. Antes de a cravar nas suas costas, o beija. Triste prelúdio de aliança entre a traição e o beijo, tão repetida na história: “E disse Joabe a Amasa: Vai contigo bem, meu irmão? E Joabe, com a mão direita, pegou da barba de Amasa, para o beijar. E Amasa não se resguardou da espada que estava na mão de Joabe, de sorte que este o feriu com ela na quinta costela, e lhe derramou por terra as entranhas; e não o feriou segunda vez, e morreu” (2Sm 20:9-10).

Beijo hipócrita
Absalão beijava seus interlocutores com beijos superficiais, interesseiros, hipócritas. Beijos que conseguiam os resultados propostos: “Dizia mais Absalão: Ah! Quem me dera ser juiz na terra! Para que viesse a mim todo o homem que tivesse demanda ou questão, para que lhe fizesse justiça. Sucedia também que, quando alguém se chegava a ele para se inclinar diante dele, ele estendia a sua mão, e pegava nela, e o beijava. E desta maneira fazia Absalão a todo o Israel que vinha ao rei para juízo: assim furtava Absalão o coração dos homens de Israel” (2Sm 15:4-6).

Beijo de morte
O beijo do vivo ao morto, beijo frio, beijo de dor e de impotência, se encontra no último capítulo de Gênesis. Quando Jacó morre, José beija seu cadáver: “Então José se lançou sobre o rosto de seu pai; e chorou sobre ele, e o beijou. E José ordenou aos seus servos, os médicos, que embalsamassem a seu pai; e os médicos embalsamaram a Israel” (Gn 50:1-2).

Beijo de mulher sedutora
O autor de Provérbios apresenta mui graficamente, com circunstâncias concretas e imagens reais, o caso de uma sedutora (adúltera ou prostituta) que com carícias, meiguice e astúcias consegue atrair um jovem inexperiente (Pv 7:6-23). A descrição do beijo se encontra no versículo 13.

Beijo idólatra
Beijar, como ato de adoração para com os deuses falsos, que os pagãos devam às suas imagens religiosas, está registado em 1Rs 19:18: “Também eu fiz ficar em Israel sete mil; todos os joelhos que se não dobraram a Baal, e toda a boca que o não beijou”. E em Os 13:2: “E agora multiplicaram pecados, e da sua prata fizeram imagem de fundição, ídolos segundo o seu entendimento, todos obra de artífices, dos quais dizem: Os homens que sacrificam beijem os bezerros”.

Beijo traidor
O beijo mais famoso nas páginas do NT e, possivelmente em toda a Bíblia, é o beijo traidor dado por Judas a Cristo. Pv 27:6, diz que “fiéis são as feridas feitas pelos que ama, mas os beijos do que aborrece são enganosos”. Dos quatro Evangelistas, três deles mencionam a cena do beijo traidor. João a silencia. O texto de Lucas o conta assim: “E, estando ele ainda a falar, surgiu uma multidão; e um dos doze, que se chamava Judas, ia adiante dela, e chegou-se a Jesus para o beijar. E Jesus lhe disse: Judas, com um beijo trais o Filho do homem?” (Lc 22:47-48).

Beijo de adoração
Lucas conta a cena: “E rogou-lhe um dos fariseus que comesse com ele; e, entrando em casa do fariseu, assentou-se à mesa. E eis que uma mulher da cidade, uma pecadora, sabendo que ele estava à mesa em casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com unguento; e, estando por detrás, aos seus pés, chorando, começou a regar-lhe os pés com lágrimas, e enxugava-lhos com os cabelos da sua cabeça; e beijava-lhe os pés, e ungia-lhos com o unguento” (Lc 7:36-38).

Beijo santo
Na Igreja primitiva era corrente o beijo da paz, chamado também beijo santo, que se praticava indistintamente entre pessoas de ambos os sexos. Paulo mostrava tal sinceridade e amor santo que se lembrou deste costume íntimo e fraternal nos seus escritos. Em Rm 16:16, vemos que os irmãos se saudavam com um beijo no rosto em sinal de cordialidade e cumprimento: “Saudai-vos uns aos outros com santo ósculo. As Igrejas de Cristo vos saúdam”. Vemos também em 1Co 16:20, em 2Co 13:12, em 1Ts 5:26 e Pedro também o menciona: “Saudai-vos uns aos outros com ósculo de caridade. Paz seja com todos vós que estais em Cristo Jesus. Amém” (1Pe 5:14).

terça-feira, 12 de abril de 2022

PÚLPITO NÃO É LUGAR DE POLÍTICA

Como disse Hermes C. Fernandes, conferencista, autor, psicólogo e doutor em Ciência da Religião em seu blog, "uma igreja que converteu seu púlpito em palanque político precisa se desconverter. 
Um pastor que se converteu em cabo eleitoral tem que se desconverter ou abandonar o ministério".

Política é o palco do poder. E poder é a imposição de uma vontade sobre a outra. Sempre que a vontade de alguém é substituída pela de outra pessoa estamos diante de uma manifestação de poder e, portanto, de algum nível de política. Geralmente, as discussões políticas giram em torno da busca por um mundo melhor construído pelo homem. Entretanto, de acordo com a cosmovisão bíblica, isso é impossível. Como reflexo de nossa realidade, as discussões sobre ideologias políticas também alcançaram os líderes religiosos. Contudo, parece que esse assunto não deveria ocupar o tempo dos ministros do evangelho. Ellen White escreveu: “O Senhor quer que Seu povo enterre as questões políticas. Sobre esses assuntos, o silêncio é eloquência. Cristo convida Seus seguidores a chegar à unidade nos puros princípios evangélicos que são positivamente revelados na Palavra de Deus.”1

Líderes cristãos podem defender plenamente algum posicionamento político? O uso do púlpito para a promoção de veículos de propaganda política não está de acordo com o documento oficial que instrui a respeito da postura dos adventistas em relação à política. De acordo com o documento, a IASD “não autoriza o uso do espaço físico de seus templos, sedes administrativas e instituições para qualquer tipo de propaganda político-partidária-eleitoral”; e alerta que pastores “devem ter constante cuidado para não dar declarações que demonstrem preferências por ideologias, candidatos ou partidos.”

Poucas questões políticas são verdadeiramente espirituais. A liberdade religiosa é uma delas; possivelmente, a de maior relevância. É também a mais recorrente na história. A Bíblia mostra casos de violência e de perseguição gerados simplesmente contra a liberdade que as pessoas têm de adorar a Deus. As histórias de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, Daniel, Estevão e Paulo dão testemunho disso. Mesmo que os cristãos reconheçam o papel da autoridade temporal (Mc 12:13-17; At 26:9-12; Rm 13:1-7; 1Tm 2:1, 2; Tt 3:1, 2; 1Pe 2:13-17), continuam sendo alvo de perseguição por parte de outros indivíduos por causa da liberdade religiosa. 

Um segundo aspecto também merece atenção. Quando alguém se torna cristão, ele admite a cosmovisão bíblica como normativa para si. A Bíblia se torna o critério pelo qual a realidade é julgada, incluindo as ideologias políticas, filosóficas, científicas ou de qualquer outra natureza que se apresentem. Assim, caso o cristão queira adotar uma ideologia para viver, ela competirá com a autoridade da Palavra de Deus, e o resultado desse embate mostrará o que é mais importante para ele: se as Sagradas Escrituras ou as ideologias humanas. Ainda, se o reino de Deus não é deste mundo (Jo 18:36), e se os filhos de Deus também não são (Jo 17:14, 16, 18), por que adotar uma ideologia do mundo? Por acaso, querem viver no mundo para sempre? A admoestação de Paulo parece ser apropriada nesse sentido: “Tenham cuidado para que ninguém os escravize a filosofias vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo, e não em Cristo” (Cl 2:8, NVI).

Independentemente das condições de vida de um país, a Bíblia chama as pessoas a se arrepender e crer no evangelho, proclamando que o reino de Deus está próximo. Essa é a essência da mensagem divina do Antigo ao Novo Testamento. Esse é o cerne da pregação dos reformadores do século 16, dos mileritas do século 19 e dos adventistas até a segunda vinda de Jesus. Todos os mensageiros evangélicos da história viveram em cidades com melhores ou piores condições de vida, com gente brigando por poder, mas não colocaram sua atenção no sistema nem nas circunstâncias. Em vez disso, pregaram a mensagem de juízo e de salvação, levando os ouvintes a decidir sobre seu destino eterno.

Se não pregarmos a Bíblia, quem pregará? Se misturarmos a Bíblia e a política, a Palavra de Deus será rebaixada à condição humana. Se os ministros de Deus se concentrarem nas coisas deste mundo, quem serão os pregadores do evangelho de Jesus? Quem anunciará a esperança da vida eterna? A quem as pessoas recorrerão quando quiserem aprender as Escrituras? “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão Aquele em quem não creram? E como crerão Naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?” (Rm 10:13, 14). “Vós sois o sal da Terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens” (Mt 5:13).

Se um pastor acha que prestaria um serviço melhor à humanidade por meio da política, não deveria ser coerente e deixar o ministério pastoral, dedicando-se à carreira política integralmente? Ellen White foi muito contundente quanto a esse assunto, ao escrever que “todo mestre, ministro ou dirigente em nossas fileiras que é agitado pelo desejo de ventilar suas opiniões sobre questões políticas, deve converter-se pela crença na verdade ou renunciar à sua obra”,2 afinal, “o dízimo não deve ser empregado para pagar ninguém para discursar sobre questões políticas”.3 Em vez disso, cada ministro deve se lembrar de que a “cada dia o tempo de graça de alguém se encerra. Cada hora alguns passam para além do alcance da misericórdia. E onde estão as vozes de aviso e rogo, mandando o pecador fugir desta condenação terrível? Onde estão as mãos estendidas para o fazer retroceder do caminho da morte? Onde estão os que com humildade e fé perseverante intercedem junto a Deus por ele?”4 Como disse o apóstolo Paulo, “importa que os homens nos considerem como ministros de Deus” (1Co 4:1).

Ellen G. White adverte: "Queremos nós saber a melhor maneira de podermos agradar ao Salvador? Não é empenhando-nos em polêmicas políticas, seja no púlpito ou fora dele. É considerando com temor e tremor toda a palavra que proferimos. No lugar em que o povo se reúne para adorar a Deus não seja pronunciada nenhuma palavra que desvie a mente do grande interesse central - Jesus Cristo, e Este crucificado".5 

E conclui: "Quando o orador, de maneira descuidada se intromete em qualquer parte, tomado pela fantasia, quando fala de política ao povo, está misturando fogo comum com o sagrado. Ele desonra a Deus. Não tem verdadeira evidência de Deus de que esteja falando a verdade. Comete para com seus ouvintes um grave mal. Pode plantar sementes que poderão lançar bem fundo suas fibrosas raízes, e elas brotam dando um fruto venenoso. Como ousam os homens fazer isso? Como ousam adiantar idéias quando não sabem com certeza de onde vieram, ou se são a verdade? [...] Sejam os discursos curtos, espirituais e elevados. Esteja o pregador cheio da Palavra do Senhor. Saiba cada homem que vai ao púlpito que tem anjos do Céu em seu auditório. Alguns dos que ficam no púlpito fazem com que os mensageiros celestiais que estão no auditório deles se envergonhem".6

Referências
1. Ellen G. White, Fundamentos da Educação Cristã, p. 475.
2. Ellen G. White, Fundamentos da Educação Cristã, p. 477.
3. Ibid.
4. Ellen G. White, Patriarcas e Profetas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 92.
5. Ellen G. White, Testemunhos para Ministros e Obreiros Evangélicos, p. 331.
6. Ellen G. White, Testemunhos para Ministros e Obreiros Evangélicos, p. 337.

OS CRISTÃOS E OS PETS

O mundo passa por uma crise ecológica sem precedentes que ameaça a vida no planeta. Enquanto cresce a quantidade de reuniões entre cientistas, políticos e líderes religiosos visando à preservação da nossa “casa comum”, há o aumento da emissão de gases de efeito estufa, do consumo de animais e, é claro, da ganância do ser humano. Um volume considerável de livros, artigos e documentários tem sido produzido nas últimas décadas alertando a população sobre a sustentabilidade e a preservação do meio ambiente.

Anualmente, desaparecem cerca de cinco mil espécies de organismos no planeta, e com eles se perdem informações fundamentais para o futuro da vida. Não apenas a extinção dos animais tem despertado a atenção dos cientistas, mas também a velocidade com que ela ocorre.

Em meio a tantas preocupações com o meio ambiente, emerge uma questão importante: qual deve ser a postura do ser humano no trato com os animais? Veremos que os extremos devem ser evitados: a desvalorização e a supervalorização dos animais.

Desvalorização dos animais

Em 2019, foram mortos no Brasil 32,4 milhões de cabeças de bovinos, 5,8 bilhões de aves e 46,3 milhões de porcos (para saber mais, clique aqui). O abate geralmente ocorre em matadouros, onde os animais são submetidos a asfixia, tiros na cabeça, choques elétricos, golpes de marreta e escaldagem, entre outros procedimentos brutais.

Ao longo dos séculos, pessoas têm se posicionado contra essa atividade exploratória (ver Lília M. V. A. P. Cadavez, “Crueldade contra os animais: uma leitura transdisciplinar à luz do sistema jurídico brasileiro”, Direito & Justiça 34 [2008], p. 88-120). No antigo Egito, o papiro de Kahoun revela preocupação com o cuidado e a cura dos animais. No Código de Hamurabi, são encontradas normas que preveem obrigações dos humanos em relação à saúde dos animais. O filósofo grego Pitágoras, o primeiro a falar sobre o direito dos animais, questionou o consumo desenfreado de carne e a matança excessiva dos seres vivos. Outras personalidades como Francisco de Assis, Jeremy Bentham, Peter Singer e Tom Regan também se opuseram ao “especismo” (discriminação humana com as outras espécies) e defenderam a causa animal. A própria Constituição brasileira, promulgada em 1988, é considerada “ambientalista”.

A Bíblia, por sua vez, afirma que Deus valoriza os animais (Sl 36:6; 104:10-12; 26-30) e aponta que os seres humanos devem ser bondosos com eles (Nm 22:27-32; Pv 12:10). Na lei mosaica, Deus incluiu regras relacionadas ao tratamento dos animais. Deuteronômio 25:4 diz: “Não amarrem a boca do boi quando estiver pisando o trigo”. Segundo o Comentário Bíblico Adventista, “este preceito mosaico não só protegia o animal de um tratamento cruel, mas tinha o propósito de inculcar a bondade – traço incomum entre os pagãos” (CPB, 2013, v. 1, p. 1145).

No livro Beneficência Social, Ellen White concorda com essa prescrição divina: “Embora a lei de Deus requeira supremo amor a Deus e amor imparcial ao próximo, o vasto alcance dos seus reclamos toca também às criaturas mudas que não podem expressar em palavras suas necessidades e sofrimentos. […] Aquele que ama a Deus não somente amará o seu semelhante, mas considerará com terna compaixão as criaturas que Deus fez” (p. 48).

A autora inspirada demonstrou cuidado pelos animais não somente em seus escritos, mas também na vida prática. James Nix afirma que, “quando criança, Ellen usava as pequeninas mãos para ajudar a irmã gêmea, Elizabeth, a passar por cima de troncos ou desatolar a vaca leiteira da família” (Alberto Timm e Dwain Esmond [eds.], Quando Deus Fala [CPB, 2017], p. 419). Ela não suportava “ver animais sendo maltratados porque, como dizia, ‘eles não podem nos contar seus sofrimentos’” (p. 426).

Enquanto morou na Austrália, Ellen White teve um cachorro chamado Tiglate-Pileser (nome do rei Assírio). Embora o mantivesse fora dos cômodos de sua casa, Ellen White dispensava ­carinho especial a ele, a quem carinhosamente chamava de “Tig”.

No entanto, Ellen White alertou quanto ao amor excessivo aos animais em detrimento da valorização do ser humano: “Há nas grandes cidades multidões que recebem menos cuidado e consideração do que os que são concedidos a mudos animais” (A Ciência do Bom Viver, p. 189). Sobre essa tendência, observa-se na sociedade atual um estranho e perigoso paradoxo, como declarou Richard Klein (“The power of pets”, The New Republic, 10 de julho de 1995): a animalização dos seres humanos e a humanização dos animais. Ambos os extremos são perigosos.

Supervalorização dos animais

Os brasileiros amam os pets. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação, o Brasil tem a segunda maior população de cães, gatos e aves ornamentais do mundo e é o terceiro maior país em população total de animais de estimação. O país tem mais cães e gatos do que crianças em seus lares. Em 2019, o Brasil se tornou o quarto maior mercado pet do mundo, cujo setor faturou 22,3 bilhões de reais. Atualmente, ele representa 0,36% do PIB brasileiro.

Há algumas décadas, essa “explosão pet” não era uma realidade na cultura ocidental. No início da modernidade, a ideia de família era exclusivamente humana. As relações de proximidade com animais eram proibidas. A presença de animais de estimação provocava suspeita moral, principalmente se fossem admitidos à mesa ou no quarto. Entretanto, hoje se fala em “famílias multiespécies”. Nessa nova configuração, cães, gatos e até ratos passam por um processo civilizatório: recebem nome próprio, ganham roupas, brinquedos, cama confortável (ou dormem na cama dos donos), têm página nas redes sociais, passeiam em shoppings, frequentam spas e hotéis, recebem herança dos donos e até são “estrelas” em filmes de Hollywood. É a onda pet ­friendly, uma espécie de fetiche da sociedade urbana contemporânea.

Embora demonstrar afeto pelos animais seja uma iniciativa bela e elogiável, vários estudos advertem quanto ao perigo de colocá-los no mesmo patamar dos seres humanos, considerando-os “filhos” ou “amigos”. Segundo Fernando Delarissa, “percebemos que muitas das vezes os animais são utilizados como uma alternativa para se esquivar dos contatos humanos, tidos como traumáticos e angustiantes” (“Animais de estimação e objetos transicionais”, dissertação de Mestrado em Psicologia, Unesp, 2003, p. 50). É mais fácil amar os pets do que os seres humanos, pois não há crítica, confronto de ideias nem adaptação de gostos e personalidades.

No âmbito espiritual, existe outra questão ainda mais crucial: Será que o amor aos pets (atenção, cuidado, tempo e dinheiro investidos) tem superado o amor a Deus e ao próximo (Mt 22:36-40)? Nas palavras de George Knight, “pecado é amor direcionado para a coisa errada. É amar mais a criatura do que o Criador” (Pecado e Salvação [CPB, 2016], p. 40). Não estariam os cristãos errando ao devotarem aos seus animais uma atenção exagerada? Pode-se também argumentar que essa seja uma inversão de valores: em vez de exercer domínio, o ser humano passa a ser “dominado” pelos animais. Para entender essa questão, precisamos voltar às origens.

Domínio equilibrado

Após ter criado o ser humano à Sua imagem (Gn 1:27), Deus ordenou que ele “sujeitasse” e “dominasse” a Terra (Gn 1:28), além de “cultivar” e “guardar” o Jardim do Éden (Gn 2:15). Essas ordens, como visto pelo uso dos próprios verbos, carregam uma função real, como se o homem fosse um suserano sobre a Terra ou um tipo de sacerdote servindo num santuário. Deus é o Dono (Sl 24:1); o ser humano é um administrador. Laurence Turner destaca que o verbo radah (“dominar”) aparece apenas em Gênesis 1:26-28 e “trata-se de um verbo usado para descrever o relacionamento de superiores com inferiores, tais como senhores com seus servos, e chefes com trabalhadores” (­Anúncios de Enredo em Gênesis [TMR, 2017], p. 20).

A relação entre as pessoas e os pets deve ser de proteção e cuidado. Deus não criou os seres vivos para serem explorados pelo homem. Animais não são coisas, mas também não são seres humanos. Nosso dever é cuidar do planeta com equilíbrio e responsabilidade, como se estivéssemos cuidando de nós mesmos.

Milton Andrade (Artigo publicado na Revista Adventista de abril de 2022)