quinta-feira, 27 de maio de 2021

ADVENTISTAS FANÁTICOS

Já dizia um ex-professor meu no seminário que o fanatismo é uma parte da verdade que ficou louca. Esse aforismo consegue expressar com genialidade duas ideias-chaves sobre o fanatismo: 

1. Sua identificação com a verdade: se o fanatismo é uma parte da verdade, ele se opõe, a princípio, e na maior parte dos casos, à heresia, que consiste em uma – ou mais – doutrina espúria, a qual concorre com a verdade. O fanático nasce a partir de uma motivação antagônica: o herético odeia a verdade; o fanático ama tanto a verdade que idealiza, segmenta e, por fim, distorce. 

2. Sua peculiaridade perniciosa: o fanatismo se sobressai em relação ao conjunto doutrinal de que se origina pela tendência de manter certas ênfases, em detrimento do conjunto. Eis a peculiaridade do fanatismo. Também não podemos igualar fanatismo a uma mera excentricidade religiosa, já que ele toma certa carga de virulência, infectando tudo e todos ao redor, implícita ou explicitamente. Eis sua perniciosidade. 

Embora o fanatismo não esteja restrito ao Cristianismo, é relevante o número de cristãos fanáticos. Geralmente, o fanático inverte o zelo autêntico do testemunho cristão – enquanto um genuíno servo de Deus estaria disposto a morrer pela verdade, o fanático, em contrapartida, dispõe-se a matar por aquilo que considera como a vontade divina. Dessa forma, o fanático abandona o posto de súdito do Reino do Céu, condição na qual se acata a legislação do Evangelho, e se torna, ele próprio, o legislador agindo coercivamente sobre outros, a fim de acatarem seu dogmatismo. 

Entre os adventistas do sétimo dia, o fanatismo achou um campo vasto. E por uma razão bem simples: sendo o Adventismo uma fé abrangente, reunindo sob os auspício de “Verdade Presente” um conjunto bem concatenado de postulados bíblicos, não se torna difícil o surgimento daqueles que se apaixonem loucamente por umas poucas dessas verdades. Levando em conta que se o aforismo inicial reza ser o fanatismo uma parte enlouquecida da verdade, pode-se definir um fanático como aquele que se apaixona loucamente por uma parte da verdade.

Passo a expor algumas ideias a respeito do fanatismo no Adventismo (em muitos aspectos, bem similar ao dos fanáticos de outros arraiais). Não proponho que todos os fanáticos entre nós sejam iguais – uns se revelam mais apaixonados, outros menos, mas sempre existe a equivalência entre a paixão deles com a loucura que desenvolvem a curto, médio ou longo prazo. Dito isso: 

1. Adventistas fanáticos assumem o posto de pilares da ortodoxia: em meio às marés de relativismo, a ilha-igreja quer se sentir segura. Os fanáticos surgem como indivíduos capazes de sustentar a verdade, às vezes sob os próprios ombros, tal qual Atlas na mitologia. Entretanto, sua atitude de resistência, na maioria das situações, exclui as vozes que divergem da deles em assuntos secundários, como se as opiniões contrárias representassem um desvio da fé correta. Fique claro que admito discordâncias em questões de somenos importância. Uma coisa é afirmar que existe verdade absoluta; outra, bem diferente, é pretender acesso a toda verdade absoluta, em todos os detalhes – conhecimento que apenas Deus, em última instância, é capaz de alcançar. A verdade é absoluta, não os que creem nela, havendo espaço para a atitude inquiridora, a pesquisa e o crescimento de compreensão acerca do que é verdadeiro. Logo, mesmo a ortodoxia saudável não exclui a liberdade de diálogo sobre pontos da verdade que ainda não foram completamente compreendidos, e isso dentro de um espírito largo e humilde. Quando assumo que somente eu esteja certo, e em todos os aspectos, está assassinada a possibilidade para qualquer diálogo e até, por que não dizer, de aprendizado concreto (essência do verdadeiro diálogo humano). Temos que advogar uma ortodoxia sólida, apta intelectualmente para defender e expor os principais artigos da fé adventista. Ninguém se ache autorizado a ter a palavra final sobre a interpretação dos 144 mil ou de Daniel 11, para sacar dois exemplos. Por vezes, o “ortodoxismo” – algo distinto da ortodoxia viável – não passa de uma forma mais sutil do “achismo”, acrescida de intolerância desproporcional e autoritária. 

2. Adventistas fanáticos preterem a pesquisa teológica às interpretações pessoais: o fanático é, por natureza, um profundo teimoso! Não espero que ninguém conclua com isso que todo teimoso seja um fanático, sequer potencialmente; mas pensemos: o fanatismo dos escribas e fariseus os levava a fechar os ouvidos para a presença da verdade, ou seja, do próprio Jesus. No colóquio de Marburg (1529), Lutero debateu com Zuínglio acerca da presença de Jesus no pão da ceia. A despeito dos argumentos diversos usados pelo reformador suíço com o fito de convencer o alemão, a teimosia de Lutero impediu-o de aceitar que o pão apenas simboliza a carne de Jesus. “Este é o meu corpo”, repetia Lutero à exaustão, a tal ponto que Zuínglio asseverou que a discussão não estava mais em um plano racional. O fanático não quer provas, não importa quão qualificadas se apresentem. Em parte, a ênfase na interpretação pessoal da Bíblia legada pelo protestantismo abriu as portas para abusos, o que, em parte, foi equilibrado pela elaboração de credos – os protestantes davam liberdade individual de interpretar livremente a Bíblia, mas dentro de certos limites, procurando respeitar, inclusive, a própria Bíblia. Atualmente, a livre interpretação dentro do Adventismo constitui um problema. Um dos fatores que contribui para uma falta de limites quanta às interpretações é a confusão em nosso meio entre conhecimento bíblico e conhecimento teológico. Não importa o quanto uma pessoa conheça a Bíblia, sem treinamento teológico ela não pode discutir teologia. Que ninguém pense, pelo que disse, que acredito na salvação pela teologia. Em verdade, Deus não tornou necessário o conhecimento teológico essencial à salvação. Aliás, muitos renomados teólogos profissionais não são verdadeiros crentes – independe da boa qualidade de sua teologia. Ao mesmo tempo, para alguém ser teólogo precisa de muitas competências para além da mera habilidade de fazer ligação temática entre textos bíblicos (o que se aprende dando estudos bíblicos). Para ilustrar: recentemente vi um panfleto criticando um artigo do Pr. Marcos De Benedicto sobre a Trindade. O autor zombava o fato de Benedicto citar teólogos afamados, à semelhança de Karl Barth, o qual admitia sequer ter ouvido falar! Em virtude disso, alcunhou o articulista de “Marcos De Eruditos”. Ora, veja! Como discutir Teologia sem conhecer o suíço Karl Barth, um dos maiores nomes da teologia do século XX? Seria como tratar de Pedagogia sem mencionar Piaget ou discorrer sobre Psicologia, sem Freud. Embora um psicólogo discorde de pontos da teoria freudiana, ou um pedagogo recuse-se a seguir a linha que propôs Piaget, não podem ignorá-los por completo. Os adventistas – bem como cristãos tradicionais – têm muito a questionar nos trabalhos de Barth e dos seus seguidores, neo-ortodoxos, mas não se pode fazer teologia no vácuo. Como área do conhecimento, a teologia possui grandes nomes e importantes contribuições. Um teólogo adventista age a partir da Verdade Presente, da qual extrai sua teologia e avalia as demais. Um leigo adventista necessita estudar a Bíblia e conhecer a Verdade Presente. Também não pode minimizar ou desprezar o auxílio disponível através dos escritos com certo conteúdo teológico (encontrados na lição da Escola Sabatina e alguns livros) produzidos pela denominação adventista.

3. Adventistas fanáticos são mais propensos à infecção de heresias: Observamos anteriormente a distinção entre hereges e fanáticos. Sucede, no entanto, desse converter-se naquele, para o pasmo geral. Frequentei uma igreja adventista na Penha (SP) na qual um dos anciãos, uma diaconisa e a diretora de Ministério Pessoal se desligaram da igreja para formar um grupo antitrinitrariano. Por que cada vez mais líderes abonam as fileiras adventistas para aderirem a grupos heréticos? Uma das possíveis razões é que esses ex-membros já haviam aderido a posicionamentos fanáticos. O fanatismo se inaugura nas percepções sobre o disfarce de um zelo pelo correto; desenvolve-se com um apego a verdades específicas; passa a advogar uma atitude legalista, que transparece em ações discriminatórias contra os que não concordam ou não compreendem as verdades enfatizadas pelo fanático; e, finalmente, o desequilíbrio do próprio fanático põe tudo a perder, uma vez que desperta nele o desejo de reformar aquilo que se considera como apostatado. Nesse ponto, o farisaísmo pode conduzir à assimilação de heresias, e até as verdades antes admiradas são rejeitadas diante da nova concepção de crenças. 

4. Adventistas fanáticos são fortes candidatos à apostasia: outro caminho para o fanático que não o da heresia passa a ser o abandono da fé. Por que fanáticos apostatam? Por não fruírem da plenitude do evangelho da Graça, presos que se acham em concepções legalistas e infrutíferas. Lutar contra velhos hábitos de caráter pela fé nunca foi desafio leve. Lutar contra hábitos errados apenas da perspectiva do esforço pessoal não se trata de algo inviável – é impossível, com todas as letras! Em seu empenho pela doutrina pura, o fanático acaba sozinho no final das contas, e percebe-se até mesmo sem Deus. E, quando se abandona a comunhão com o Senhor, uma religião árida dificilmente manterá alguém no convívio com outros cristãos. As críticas que o fanático desferiu contra os cristãos “menos zelosos e pios” do que ele, acabam se tornando as setas que ferem seu próprio coração de Saul, suspenso entre o Céu e Terra, parado justamente no meio do caminho entre os dois. 

Contra o fanatismo, a solução começo por buscar a “multidão de conselhos”, na qual há sabedoria. Ninguém se isole, como se fosse o único Elias injustiçado que Jezabel persegue pelos quatro cantos da Terra. Uma vida comunitária sadia é um bom passo contra uma postura desequilibrada. Uma devoção sólida pode igualmente favorecer o crescimento simétrico da espiritualidade, desde que a Bíblia seja estudada ponto a ponto, sem a atenção demorar-se apenas naquilo que é de preferência pessoal (cada um tenha a sua, o que é legítimo, a partir do momento em que nossas passagens ou doutrinas favoritas nos impeçam de ver o todo da mensagem). O estudo da história da igreja também favorece uma análise de como certas tendências se mostraram danosas e precisam ser evitadas. Enfim, todos podemos amar a verdade lucidamente e de forma integral.

Douglas Reis (via Questão de Confiança)

Nota do blog: Os textos a seguir foram extraídos dos livros de Ellen G. White, Obreiros Evangélicos e Mente, Caráter e Personalidade 1:

À medida que o fim se aproxima, o inimigo há de trabalhar com todas as suas forças para introduzir entre nós o fanatismo. Ele se regozijaria em ver adventistas do sétimo dia indo a tais extremos que fossem considerados pelo mundo como um bando de fanáticos. Vivemos num tempo em que todo aspecto de fanatismo se insinuará entre os crentes e descrentes. Satanás forçará entrada, falando mentiras, hipocritamente. Apresentará tudo que possa inventar, para enganar homens e mulheres. Temos visto, em nossa experiência, que, se Satanás não consegue prender as pessoas no gelo da indiferença, ele procurará impeli-las para o fogo do fanatismo.

Quando o Espírito do Senhor Se faz notar entre o Seu povo, o inimigo aproveita a oportunidade para também atuar sobre várias mentes, levando-as a misturar seus próprios peculiares traços de caráter com a obra de Deus. Assim, sempre há o perigo de que eles permitam que suas próprias idéias se misturem com a obra e assim se tomem resoluções imprudentes. Muitos se empenham numa obra por eles mesmos ideada, e que não é inspirada por Deus. Por eles são pervertidos princípios, erguidas normas falsas, formam-se critérios que não trazem a assinatura do Céu.

Há muitos, muitos, que confiam em sua própria justiça. Estabelecem uma norma para si mesmos, e não se submetem à vontade de Cristo, nem permitem que Ele os envolva nas vestes de Sua justiça. Formam um caráter de acordo com a sua vontade. Satanás se agrada de sua religião. Representam falsamente o caráter perfeito - a justiça - de Cristo. Enganados eles mesmos, por sua vez enganam outros. Não são aceitos por Deus. São capazes de levar outras pessoas por falsos caminhos. Receberão afinal sua recompensa, juntamente com o grande enganador Satanás.

Há os que são combativos por natureza. Pouco se lhes dá concordarem ou não com os seus irmãos. Têm prazer em entrar em polêmicas, gostam de lutar em defesa de suas singulares idéias; devem, porém, pôr de lado isso, pois não contribui para promover as graças cristãs. Nenhum de nós está em segurança, a menos que diariamente aprendamos de Cristo Sua mansidão e humildade.

Deus convoca Seus servos a que estudem Seu desejo e vontade. Então, quando se apresentam homens com teorias forjadas curiosamente, não discutam com eles, mas afirmem o que sabem. "Está escrito" deve ser vossa arma.

Os que são atentos estudantes da Palavra, seguindo a Cristo com humildade de alma, não irão a extremos. O Salvador nunca foi a extremos, nunca perdeu o domínio de Si mesmo, nunca violou as leis do bom gosto. Sabia quando convinha falar, e quando guardar silêncio. Estava sempre na posse de Si mesmo. Nunca errou no ajuizar os homens ou a verdade. Nunca foi enganado pelas aparências. Nunca levantou uma pergunta que não fosse perfeitamente apropriada, nunca deu uma resposta que não fosse bem apropriada ao caso. Fez calar os cavilosos sacerdotes, penetrando para além da superfície, e atingindo o coração, fazendo a luz no espírito e despertando a consciência.

Os que seguem o exemplo de Cristo não serão extremistas. Cultivarão a calma e a posse de si mesmos. A paz que se manifestava na vida de Cristo se patenteará na deles.

Um comentário:

  1. Os que seguem o exemplo de Cristo não serão extremistas. Cultivarão a calma e a posse de si mesmos. A paz que se manifestava na vida de Cristo se patenteará na deles. Gostei deste final do artigo. Penso que julgamos como fanáticos, pessoas que apenas desejam fazer a vontade de Deus: ir para o campo para permitir que o Senhor prepare um caráter mais semelhante ao de Cristo.

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