quinta-feira, 29 de junho de 2023

A MUTILAÇÃO DA CONCUBINA E O EVANGELHO

Juízes 19:22-30 é um dos textos mais terríveis de toda Bíblia. Uma pesquisa no Google mostra que ele é usado por muitos dos detratores da fé como exemplo do horror e da implausibilidade da Bíblia. A passagem realmente revela algo horrível. Se você não está familiarizado com ele, dedique um minuto para lê-lo:

"Quando estavam entretidos, alguns vadios da cidade cercaram a casa. Esmurrando a porta, gritaram para o homem idoso, dono da casa: 'Traga para fora o homem que entrou na sua casa para que tenhamos relações com ele!' O dono da casa saiu e lhes disse: 'Não sejam tão perversos, meus amigos. Já que esse homem é meu hóspede, não cometam essa loucura. Vejam, aqui está minha filha virgem e a concubina do meu hóspede. Eu as trarei para vocês, e vocês poderão usá-las e fazer com elas o que quiserem. Mas, nada façam com esse homem, não cometam tal loucura!'

(Esta proposta, feita pelo velho anfitrião, é terrível aos leitores modernos, que fariam qualquer coisa para proteger mulheres. Devemos lembrar que Juízes está simplesmente relatando o que aconteceu dentro do contexto de outra cultura, que foi desenvolvida por homens, não por Deus. A Bíblia não apresenta aquela cultura como nosso padrão. Apesar de se apreciar o desejo dele em manter o código de hospitalidade, a natureza da oferta causa horror. Reflete o baixo conceito da mulher na Antiguidade. Para se manter uma lei ética, quebra-se outra que, no moderno sistema de valores, seria infinitamente mais importante). 

Mas os homens não quiseram ouvi-lo. Então o levita pegou sua concubina e a mandou para fora, e eles a violentaram e abusaram dela a noite toda. 

(O verbo traduzido como “pegou” é hazaq. Significa “agarrar” ou “pegar à força”. O esposo agarrou a indefesa mulher e forçou-a a sair. Naturalmente a concubina resistiu a um ato tão estúpido. A atitude do levita foi de extrema covardia).

Ao alvorecer a deixaram. Ao romper do dia a mulher voltou para a casa onde o seu senhor estava hospedado, caiu junto à porta e ali ficou até o dia clarear. Quando o seu senhor se levantou de manhã, abriu a porta da casa e saiu para prosseguir viagem, lá estava a sua concubina, caída à entrada da casa, com as mãos na soleira da porta. 

(Num último alento, ela voltou para casa onde estava o homem que deveria protegê-la, mas que a desamparou na hora da ameaça. Ela teve forças para se arrastar até a porta, mas não conseguiu bater para entrar. Caiu morta ali).

Ele lhe disse: 'Levante-se, vamos!' Não houve resposta. Então o homem a pôs em seu jumento e foi para casa. Quando chegou em casa, apanhou uma faca e cortou o corpo da sua concubina em doze partes, e as enviou a todas as regiões de Israel. Todos os que viram isso disseram: 'Nunca se viu nem se fez uma coisa dessas desde o dia em que os israelitas saíram do Egito. Pensem! Reflitam! Digam o que se deve fazer!'"

(O levita havia calculado bem. A história desse feito despertou a indignação moral de todos os hebreus na Palestina. Eles reconheceram que fora um crime tão tremendo que nem mesmo a época tão agitada em que viviam e a falta de um governo central poderiam servir como excusa para a impunidade).

Repugnante, não? O que fazemos com algo assim?

A primeira coisa que precisamos dizer é que a Bíblia contém muitas passagens que são descritivas, e isso não as torna prescritivas. Ao contrário do que muitos dos oponentes online da autoridade bíblica gostariam que pensássemos, não há aprovação de Deus na bárbara barganha do homem de Gibeá ou no subsequente estupro, assassinato e mutilação da concubina. O Levita entrega sua própria filha virgem e sua concubina em algum tipo de troca por autoproteção. E o desmembramento da concubina e envio de seu corpo por Israel causa a reação que deveria causar: note que a reação das pessoas é de choque. “Nunca se viu nem se fez uma coisa dessas desde o dia em que os israelitas saíram do Egito”, disseram.

Esta passagem da Bíblia é, na verdade, uma consequência de todos fazerem o que era certo aos seus olhos (Jz 17:6; 21:25), e uma consequência de não haver rei sobre Israel (19:1). Juízes 19:22-30 mostra que a Bíblia é honesta e realista sobre a depravação do homem quando este é deixado aos seus próprios desejos. Neste sentido, não se coloca uma maquiagem no que os homens são capazes de fazer. E, embora enojados pelas imagens, também devemos aprovar a honestidade brutal da Bíblia. Não se pode ler Juízes 19 sem estremecer.

Apesar do objetivo principal da chocante história de Jz 19 seja revelar as raízes da guerra civil de Jz 20, dos benjamitas contra o restante dos israelitas, não deixa de ressaltar no texto a falta generalizada de valor da mulher na cultura da época (revelada desde a experiência de Ló em Sodoma) e a insensibilidade e brutalidade do levita, que deveria ser um exemplo, enquanto líder religioso. A violência doméstica ou mesmo o silêncio quanto ao conhecimento dele são consideradas como sendo feitas ao próprio Jesus (”A Mim me fizeste…” Mt 25:40) e devem ser veemente combatidos por aqueles que se dizem cristãos.

Mas, há um brilho do Evangelho subentendido nesse texto também. Quando não havia rei em Israel, um homem trai suas mulheres, e uma mulher é abandonada e entregue para que o inimigo faça o que quiser com ela. E então, ela é feita de exemplo, de uma maneira mortal, para as doze tribos.

Porém, quando Jesus é Rei sobre Israel, Ele protege sua noiva; Ele não a entrega para que o inimigo faça o que quiser com ela. E Ele mesmo deixa a casa e oferece Seu próprio corpo, substituindo Sua noiva para ser dilacerado pelas doze tribos de Israel. Ao invés de nos entregar em algum tipo de barganha cruel, Ele mesmo se entrega. E Seu corpo agredido é o sinal para Seu povo de que Ele não os trairá.

Ellen G. White conclui: "Cristo 'amou a igreja e a Si mesmo Se entregou por ela' (Efésios 5:25). É a aquisição de Seu sangue. Jesus amou a igreja, por ela Se entregou, para a aperfeiçoar, refinar, enobrecer e elevar, de maneira que ela fique firme em meio das corruptoras influências deste mundo. Às vezes pode parecer que o Senhor esqueceu os perigos de Sua igreja, e o dano a ela feito por seus inimigos. Mas Deus não esqueceu. Nada neste mundo é tão caro ao coração de Deus como Sua igreja. Não é Sua vontade que métodos mundanos corrompam o seu registro. Ele não deixa que Seu povo seja vencido pelas tentações de Satanás. Deus declara que ainda que uma mãe possa esquecer-se de seu filho, 'Eu, todavia, Me não esquecerei de ti' (Is 49:15, 16). Deus pensa em Seus filhos com a mais terna solicitude e mantém um memorial escrito diante dEle, para que jamais possa esquecer-Se dos filhos dos quais cuida" (A Fé Pela Qual Eu Vivo, p. 279).

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