E quem seria capaz de contestar esta afirmação de Kierkegaard? Há, de fato, um Cristianismo que não existe. Mas antes de afirmar a não-existência de um Cristianismo aparentemente existente, faz-se necessário explorar o que a própria Bíblia diz a respeito desta palavra.
Em que lugar da Bíblia algum autor inspirado cita a palavra Cristianismo? Em nenhum lugar.
Peter Leithart nota que na Bíblia ninguém é convidado a proclamar o Cristianismo, a ensinar o Cristianismo, ou sequer a aceitar o Cristianismo. Ainda assim, a palavra existe no nosso vocabulário. Os Evangelhos falam de Cristo e de seus seguidores que eventualmente passaram a ser chamados de Cristãos. Mas a base, a visão, o fundamento da palavra “Cristão” se centrava em Cristo, Suas palavras, Sua vida, e a missão por Ele deixada.
Na Bíblia não encontramos a palavra nem o conceito de Cristianismo. Mas após inúmeras expansões territoriais e evangelísticas o “Cristianismo” invadiu o mundo. No entanto, em algum momento desta milenar jornada, o Cristianismo parece ter perdido sua ligação com os Evangelhos. Se tornou um corpo de doutrinas professado por Cristãos, ou uma maneira de adorar o Cristo ressurreto. Tudo muito objetivo e cognitivo. Cristianismo é “isso” e se você aceitar “isso” você se torna um Cristão. Mortes e guerras encontraram suas justificativas no palavra (e no conceito) Cristianismo, riquezas foram acumuladas em nome do Cristianismo e povos foram oprimidos em nome da cruz. Ao se distanciar dos Evangelhos, o Cristianismo –que já não é um conceito Bíblico per se– se tornou algo que, quando muito, remotamente se assemelha à religião bíblica descrita nos Evangelhos.
Dostoiévski no capítulo “O Grande Inquisidor” de seu livro Irmãos Karamazov descreve o problema da seguinte maneira: a tentação que o homem Jesus divinamente rejeitou –de poder, honras e glória– foram aceitos pela Igreja Cristã através de seus líderes falhos e humanos. Desta maneira, ao longo de séculos e milênios, a religião Cristã se tornou uma antítese dos ensinamento e da vida de Cristo. Por isto a afirmativa de Kierkegaard: afinal, os atos, a postura e a religião de Jesus nos Evangelhos, era irreconhecível no Cristianismo de sua época.
Hoje em dia a situação não é diferente. Por mais que muitas pessoas ainda de fato vivam um novo tipo de existência ao se decidirem por seguir a Cristo, ainda existe muito charlatão, muito líder religioso corrupto, muito fiel egoísta em busca apenas de riquezas, bênçãos e realizações pessoais, além da evidente ausência de ética tanto na esfera pública como religiosa; e isto debaixo da bandeira do Cristianismo e em países que se denominam Cristãos. E se “Cristianismo” é tudo isto, ele não é nada; porque uma palavra que pode significar tantas coisas diferentes –e até opostas– perde seu significado.
As palavras de Cristo, o texto Bíblico através do qual Ele ainda hoje se quer fazer entender nos interessam de forma parcial nos dias de reuniões de nossas comunidades religiosas, quando muito. Nos púlpitos ao redor do mundo somos dificilmente confrontados com a realidade do texto. São poucos os pregadores que estão dispostos a deixar suas agendas particulares (ou de suas instituições religiosas) de lado para, em contrição, simplesmente buscar transmitir o que o texto disse e ainda diz. Há poucos profetas.
Para preencher o tempo e desviar a atenção da nossa indisposição de estudar o texto a fundo, costumamos dar ênfase a discussões menores, menos relevantes e paralelas. Define-se um comportamento padrão e discute-se uma infinidade de variações ou “desvios” deste comportamento denominado “padrão”. Discute-se a relação entre fé e evidências (no caso, evidências extra-bíblicas). Discute-se a relação entre fé e ciência. Como o texto não é interessante, fazemos apologética. Procuramos –às vezes até inventamos– um inimigo em comum do qual precisamos nos defender, ou melhor: defender a fé. Aliás, preferimos defender a fé do que viver a fé, debater a fé do que entender que fé é esta. E esta busca incessante por discussões paralelas e menores apenas confirma uma triste realidade: o texto bíblico não é interessante o suficiente. Damos prioridade a discussões de “fatos” externos (científicos/arqueológicos/metafísicos) sem perceber que tais discussões são no máximo secundárias. O desafio deixado por Kierkegaard continua até hoje: desenvolver a honestidade e a coragem de dizer que o “Cristianismo” nos nossos dias (junto com suas discussões, ética, e prioridades estranhas) não existe.
Que esta confissão nos conduza de volta ao texto Bíblico, aos Evangelhos de Gênesis, Êxodo e João. Precisamos redescobrir o que significa Cristianismo, pois, atualmente, ele simplesmente não existe.
(via Terceira Margem do Rio)
Assista também ao sermão do pastor Tiago Arrais durante a Semana de Oração Universitária no Unasp.
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