terça-feira, 9 de maio de 2023

CENAS VIOLENTAS DO AT

"Se Deus é amor, por que Ele mandou matar algumas pessoas?" 

As cenas ruins que aparecem em alguns relatos do Antigo Testamento são o motivo de perguntas como esta. No entanto, essa não é uma dúvida recente. Muitas pessoas foram levadas a pensar que existe até mesmo uma diferença entre o Deus do Antigo Testamento e o do Novo Testamento. No 2º século, Marcion de Sinope divulgou a ideia de que se poderia descartar todo o Antigo Testamento. Segundo ele, o Deus dessa parte da Bíblia é injusto e raivoso. Embora esse conceito tenha sido combatido, ele permanece na concepção de muitas pessoas. Elas tendem a ver o Antigo Testamento como o lado obscuro de um Deus irado, que julga, castiga, manda matar e quase chega a assumir as formas do demiurgo sugerido por Marcion. Outros são levados a desconsiderar o Antigo Testamento como se nele não houvesse graça.

Além de levar à desconsideração dessa parte das Escrituras, essa perspectiva tem reflexos na teologia e prática das pessoas. Por exemplo, no livro Adolescentes em Conflito, Les Parrott aponta a teologia incompleta e uma ideia equivocada sobre Deus como fatores que provocam o complexo de inferioridade nos adolescentes. Na obra Em Defesa da Fé, Lee Strobel coloca essa compreensão errada a respeito de Deus como uma das oito objeções ao cristianismo. Contudo, uma leitura atenta do Antigo Testamento em busca de expressões da graça divina proporciona uma nova perspectiva acerca dessa parte das Escrituras.

CONCEITO DE GRAÇA
O Novo Testamento emprega o termo charis (“graça”) 155 vezes, na sua maior parte nas epístolas de Paulo. Para o apóstolo, charis é a essência do ato salvífico de Deus por meio de Jesus Cristo. Frequentemente definida mediante um contraste com a tentativa de justificação pelas obras, graça não é apenas um desejo de boa vontade a respeito da salvação (cf. 2Co 13:13); é um dom gracioso de Deus. Esse conceito (com exceção de uma ocorrência em 1 Pedro) é exclusivamente paulino. A morte como salário e consequência natural do pecado é cancelada para dar lugar à vida eterna como dom gratuito de Deus (Rm 6:23). Na compreensão paulina, a dinâmica da salvação na vida cristã, do início ao fim, depende e provém da graça.

Isso está de acordo com o emprego de charis pela Septuaginta, versão grega do Antigo Testamento, para a tradução do equivalente hebraico hen. Das 190 vezes que a Septuaginta se vale do termo charis, apenas 75 têm equivalente em hebraico. Mas esse uso é importante e nos ajuda a esclarecer o sentido de graça. De acordo com o Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, hen denota “o mais forte que vem em socorro do mais fraco” e “que precisa de socorro por causa de suas circunstâncias ou da sua fraqueza natural”.

Embora o Antigo Testamento não tenha uma palavra própria para designar o conceito cristão da palavra “graça”, esse conceito foi preparado antes da cruz. O verbo hanan (“ser gracioso”, “compadecer-se”, “suplicar”, “implorar”), usado 73 vezes, descreve “uma reação sincera de alguém que tem algo a dar para alguém com necessidade”, a “ação que parte de um superior na direção de um inferior que não tem nenhum direito a um tratamento clemente”. A ideia de que Deus é amor é um reflexo do conceito expresso por hesed, importante palavra do Antigo Testamento.

EPISÓDIOS SANGRENTOS
Apesar disso, pode-se ver um Deus bondoso nas cenas ruins do Antigo Testamento? Afinal, alguns relatos parecem confrontar essas evidências. Pode existir graça quando Deus manda matar, por exemplo?

Os episódios sangrentos do Antigo Testamento têm levado a afirmações como as de Charles Templeton, autor de Farewell to God (Adeus a Deus) e que deixou de ser cristão ao questionar o caráter do Senhor. Ele disse: “O Deus do Antigo Testamento é totalmente diferente do Deus em que acredita a maior parte dos cristãos praticantes. [...] Sua justiça é, segundo os padrões modernos, detestável. [...] Ele é preconceituoso, queixoso, vingativo e cioso de suas prerrogativas.” Afirmações como essas podem ser resultado da leitura de cenas encontradas em Deuteronômio, Josué e 1 Samuel. Será que essas passagens realmente amparam a conclusão de Templeton?

Em Deuteronômio 7:1 e 2, Deus ordena matar todos os povos que habitavam na terra que o povo de Israel iria herdar. À primeira vista, essa ordem parece ser uma atitude cruel e arbitrária. Mas uma leitura correta desse texto poderá demonstrar o contrário. Como pondera o comentário bíblico de Jamieson, Fausset e Brown, esse extermínio não se harmoniza com o caráter de Deus apresentado nas Escrituras, “exceto pelo pressuposto de que a idolatria brutal dos cananeus e sua enorme maldade não tenham deixado nenhuma esperança razoável de arrependimento e mudança”. Dessa forma, o juízo imposto sobre eles é semelhante ao que foi aplicado aos antediluvianos e aos habitantes de Sodoma e Gomorra, pois já haviam enchido a medida de suas iniquidades e estavam numa condição incorrigível.

Além disso, essa ocupação não foi uma usurpação do território daqueles povos estrangeiros. O oposto é que é verdadeiro. Essa terra havia sido prometida por Deus a seu povo. No entanto, havia sido ocupada pelas nações estrangeiras que se espalharam por aquela terra por ocasião da migração da família de Jacó para o Egito. Logo, a expulsão dos cananeus de um território sobre a qual eles não tinham direito foi justa e adequada.

Em Josué 6:17 e 21, Deus ordenou que tudo o que estava em Jericó fosse destruído, inclusive mulheres, crianças, idosos e animais. O relato não é confortável para se ler. No entanto, a mesma consideração feita para o texto anterior pode ser lembrada aqui. A condenação é de um povo que havia enchido sua taça de iniquidades. Os cananeus são lembrados como idólatras incorrigíveis e possuidores dos mais horríveis vícios. Eles rejeitaram a luz do surpreendente milagre da travessia do Jordão, o que fez com que Raabe aceitasse o Deus de Israel (Js 2:8-14; 6:22, 23), e resolveram defender Jericó e o país por meio de reforço militar (Js 24:11). O julgamento foi misturado com misericórdia e chance de arrependimento.

Em 1 Samuel 15:2 e 3, Deus ordenou ao rei Saul destruir totalmente os amalequitas, incluindo mulheres, criancinhas de peito e animais. A aniquilação deles se deveu ao fato de serem destacados inimigos de Israel (Nm 14:45; Jz 3:13; 6:3) e não terem se arrependido (1Sm 14:48). Ela não se fundamentou apenas em algo que seus antepassados haviam feito, mas em sua própria perversidade.

Acerca de Agague, rei dos amalequitas, Samuel disse: “Assim como a tua espada desfilhou as mulheres, assim ficará desfilhada a tua mãe entre as mulheres” (1Sm 15:33). Deus havia lidado com misericórdia com esse povo, apesar de sua pecaminosidade (Gn 15:16; 1Sm 15:18). Como lembra Warren Wiersbe em seu Comentário Bíblico Expositivo, “povos como os amalequitas que desejavam exterminar os israelitas não estavam apenas declarando guerra contra Israel, mas também se opondo ao Deus Todo-poderoso e a seu grande plano de redenção para o mundo inteiro”.

Essa breve análise indica que a graça aparece no Antigo Testamento. O exame de algumas ocorrências que aparentemente levantam suspeita sobre o caráter de Deus revela haver graça mesmo em cenas ruins. Deus foi gracioso e longânimo com aqueles que Ele precisou destruir e com os que preservou, pois deles dependia a salvação de outros. A graça não é apenas uma nota, mas a melodia que conduz toda a história da salvação, permeando o Antigo e o Novo Testamento, unindo ambos sob a regência de um Deus de amor.

Paulo Alberto Barros Leite (via Revista Adventista)

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