A teologia de Levítico 16, que trata do Dia da Expiação, é fundamental para entendermos o plano da redenção da humanidade. O capítulo é precedido por uma série de orientações cerimoniais sobre o processo de purificação. No capítulo 16, ele apresenta a solução de Deus para a mais profunda das impurezas, o pecado. Por meio do ritual da expiação, Deus oferece ao Seu povo um retrato de Sua santidade, do alcance do pecado, de Sua graça provedora e da remoção final do pecado, tipificada no envio do bode Azazel para o deserto. Deus não apenas perdoa, mas também está disposto a purificar os israelitas. Sem dúvida, o centro da teologia do livro se encontra nesse capítulo.
O relato inicia localizando o momento em que as orientações para esse cerimonial são dadas, isto é, “depois que morreram os dois filhos de Arão” (Lv 16:1). Nota-se, portanto, que era intenção do autor que o leitor conectasse esses dois momentos. A razão da morte dos filhos de Arão não foi o fato de terem se aproximado do Senhor (Lv 16:1), mas terem oferecido “fogo estranho” (Lv 10:1), não santificando a Deus (cf. Lv 10:3).
As orientações para o Dia da Expiação, portanto, exigiam que o povo fizesse a diferença entre aquilo que era santo e profano, entre aquilo que Deus ordenara e aquilo que Ele não ordenara (Lv 16:2; cf. 10:1). Deus iria apresentar a solução para o pecado no contexto da purificação do santuário, mas era necessário que o povo entendesse a gravidade do mesmo. Os israelitas somente estariam aptos a valorizar a cura à medida que entendessem a gravidade da doença.
A IMPORTÂNCIA DA SANTIDADE
Embora a palavra “santidade” não apareça no texto, ao se iniciar a leitura do mesmo é possível perceber a presença de seu conceito em toda a cerimônia. Na verdade, não somente no capítulo 16, mas em todo o livro de Levítico “Yahweh repetidas vezes atua como um Deus santo que espera e ordena a santidade de Israel”, conforme enfatiza Paul R. House (Teologia do Antigo Testamento [Vida, 2005], p. 160). “Nada menos do que santidade intencional por parte do povo é digno do Deus santo”, ele complementa.
Esse Deus santo Se fazia presente no santuário, o que mostra que Ele está inserido no tempo. O teólogo Fernando Canale assinala: “A presença histórica de Deus, mencionada na Bíblia, torna-se a ‘imanência’ divina na teologia. A palavra imanência significa basicamente algo que é inerente, residente ou existente dentro de outro sujeito ou substância. Afirmar a imanência de Deus, portanto, significa acreditar que, de alguma forma, Deus existe dentro do mundo” (O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã [Unaspress, 2011], p. 134).
Levítico 16 menciona a presença do Senhor sete vezes. Essas manifestações da presença divina ocorrem no passado e no futuro, e em mais de um lugar, como mostra o quadro.
TEXTO TEMPO LUGAR
Lv 16:1 Passado Altar de incenso
Lv 16:2 Futuro Sobre o propiciatório (Santíssimo)
Lv 16:7 Futuro Pátio
Lv 16:12 Futuro Altar de incenso
Lv 16:13 Futuro Altar de incenso
Lv 16:18 Futuro Altar de sacrifício
Lv 16:30 Futuro Congregação/santuário
Observando o quadro, podemos concluir que de fato Deus estaria presente durante todo o processo da expiação. Assim, nesse ritual, vê-se um Deus imanente, que está perto e que Se encontra com o sumo sacerdote e com o povo em Seu santuário (v. 30). Esse santuário também é chamado de tenda do encontro, termo que aparece 142 vezes no Antigo Testamento, sendo 131 somente no Pentateuco.
Há também informações no texto que sugerem a transcendência de Deus. Ele não estava limitado no espaço. Observa-se isso na manifestação da presença divina na tenda e em cada um dos compartimentos. O Senhor não estava limitado ao Santíssimo, nem mesmo ao santuário. Ele é maior que todas as coisas criadas por Ele ou por homens.
A certeza da imanência e da transcendência divina explica a quantidade de detalhes em todo o ritual, ou seja, a santidade requerida. É interessante notar que a presença de Deus normalmente gera um misto de sentimentos: alegria, porque é um Deus próximo, interessado em Suas criaturas, e ao mesmo tempo temor, porque é um Deus santo e que espera de Seus adoradores a santidade.
O tema da santidade de Deus está intimamente ligado à Sua presença e emerge em três momentos no texto: (1) o lembrete da morte de Nadabe e Abiú, (2) as exigências ritualísticas e (3) a resposta esperada em toda a assembleia. No versículo 2, a mensagem é que não se podia entrar no Santíssimo em qualquer momento, pois a presença de Deus estaria sobre o propiciatório. Todos aqueles que se aproximam da presença de Deus precisam fazê-lo sabendo que Ele é santo.
O texto bíblico menciona que a assembleia devia “afligir a alma” porque nesse dia o povo seria purificado. E isso aconteceria “diante do Senhor”. O povo era conclamado a abandonar suas tarefas comuns para se santificar ao Senhor (Lv 16:29, 30). Nesse sentido, o cerimonial do Dia da Expiação possibilitava uma compreensão mais ampla da abrangência do pecado. Era momento de juízo, e o povo sabia da solenidade desse dia e da gravidade do pecado, reconhecendo a necessidade de arrependimento e confissão.
A impureza alcançava proporção nacional, invadindo o recinto mais sagrado – o santuário. Os pecados causavam a separação entre a nação e Deus. Os israelitas entendiam nitidamente que aquele era um dia solene e de muita reflexão.
GRAÇA PROVEDORA
Embora o assunto de Levítico 16 seja o ciclo anual do Dia da Expiação, ele não pode ser separado das cerimônias dos sacrifícios diários e dos sacrifícios pelos pecados que eram oferecidos ao longo do ano, nos quais o animal inocente substituía o pecador. “O Dia da Expiação (yom hakkippurim) é o grande clímax do ritual anual do antigo Israel, que envolvia a limpeza/purificação do santuário/ templo”, explica Gerhard F. Hasel num artigo no livro The Sanctuary and the Atonement (Biblical Research Institute, 1989, p. 107).
Nesse dia, Arão deveria comparecer diante de Deus com as ofertas pelo pecado. A expressão chatta’ah (Lv 16:6) indica pecado ou oferta pelo pecado. Essa forma substantiva é a mais extensamente usada no Antigo Testamento e ocorre quase 290 vezes. É valido lembrar que, embora fosse Arão que oficiasse como sumo sacerdote, a solução para o pecado vinha de Deus, que toma a iniciativa e provê um modo de solucionar o problema da impureza do pecado humano.
Algo que chama a atenção é que a palavra “expiação” também é usada para se referir ao bode emissário ou Azazel, escolhido por sorte para permanecer vivo e ser enviado ao deserto (v. 10). Alguns comentaristas veem nele uma figura da obra realizada por Cristo em Seu sacrifício e também em Sua jornada no deserto. Essa interpretação surgiu especialmente pela influência do livro deuterocanônico de Barnabé (7:7-11), datado do fim do 1º ou início do 2º século da era cristã.
Em seu livro O Sacerdócio Expiatório de Jesus Cristo (Casa Publicadora Brasileira, 2012), Frank B. Holbrook defende que existem sólidas razões para rejeitar o ponto de vista de que os dois bodes representem diferentes aspectos da morte única de Cristo. Ele argumenta que Azazel está em oposição ao Senhor, que no sistema sacrifical jamais se utilizavam dois animais para representar um único sacrifício e que, embora dois bodes fossem apresentados para oferta pelo pecado, apenas um deles era selecionado para o Senhor (Lv 16:9).
É importante lembrar que, quando Arão saía para confessar sobre o bode emissário todas as iniquidades, rebeldias e pecados, fazendo-os assim cair sobre a cabeça do bode (v. 21; cf. v. 16), a purificação do santuário já havia sido terminada. Além disso, Holbrook lembra que “o termo ‘expiação’ é usado com mais de uma acepção nas Escrituras” (p. 143). Ele pode ser usado no sentido redentor (cf. Lv 4:35), no qual o pecado é “apagado” pelo sacrifício do substituto, mas também com um sentido punitivo (Nm 25:13; 35:33). Esse segundo sentido parece ser o caso da expiação realizada por Azazel.
Além dos cerimoniais diários, Deus lembrava a Seu povo por meio do Dia da Expiação que Ele tinha criado uma solução definitiva para o pecado. O ritual desse dia era uma repetição da promessa de que um dia Seu povo estaria livre para sempre do poder e do alcance do pecado. Enquanto esse dia não chegasse, Sua Graça seria suficiente para purificá-lo e consagrá-lo para uma vida inteiramente dedicada a Ele. Não por acaso, o capítulo inicia com desobediência, mas termina com obediência; inicia com impureza, mas termina com pureza; inicia com tragédia e pecado, mas termina com graça e consagração.
A ELIMINAÇÃO DO PECADO
O grande Dia da Expiação, como descrito no capítulo 16 de Levítico, é extraordinariamente belo pela riqueza dos muitos detalhes que compõem todo o cerimonial. Nesse dia, o povo de Israel vivenciava aquele que podia ser considerado o maior dentre todos os dias do ano, em razão do rito que nele se processava, indicando a eliminação do pecado. O maior dom religioso (a perdoadora misericórdia de Deus) era oferecido nesse dia a todos os filhos de Israel.
A cerimônia descrita e prescrita nesse capítulo tem papel central em todo o sistema de sacrifícios estabelecidos no santuário mosaico/ terrestre. Isso se deve ao fato de que todos os sacrifícios e ofertas pelo pecado que diariamente eram apresentados pelos sacerdotes e pelos pecadores dependiam das cerimônias do Dia da Expiação para que tivessem sua eficácia completa.
Entre as orientações dadas a Arão, existe um aspecto que gera muita especulação entre os estudiosos. Trata-se dos dois bodes, sendo um para o Senhor e outro para Azazel (Lv 16:5, 8), conforme já mencionamos. O bode para o Senhor era oferecido como oferta pelo pecado. No serviço realizado com a aspersão de seu sangue, era promovida a purificação do santuário, em função dos pecados do povo de Israel. A discussão, no entanto, se refere ao significado de Azazel. Afinal, quem ou o que é ele?
A palavra “Azazel” tem sido interpretada de várias maneiras. Alguns estudiosos veem na oposição do bode Azazel ao bode do Senhor uma conotação de sua personalidade. A explicação mais popular entre os comentaristas é a de que este seja o nome de um demônio que vivia no deserto. Outras interpretações desse raro termo hebraico incluem o sentido de completa destruição. Talvez a resposta mais adequada venha do próprio texto bíblico (Lv 16:8), em que ele aparece em oposição ao Senhor. Isso poderia indicar que se trata de um ser pessoal, ou seja, alguém em confrontação direta ao Senhor.
A imagem descrita na Bíblia é bem clara. Azazel aparece carregando toda a culpa, ou seja, os pecados que os filhos de Israel haviam cometido durante o ano, mas que agora estavam sendo colocados sobre ele. Essa totalidade dos pecados é enfatizada pelo uso de três termos diferentes que aparecem juntos ao se referir aos pecados de Israel: “iniquidades”, “transgressões” e “pecados”. Esta tríplice referência abrange todas as dimensões da violação da lei de Deus pelos seres humanos.
A transferência de pecados para o santuário em seus serviços diários e regulares iniciava-se com a imposição de mãos sobre a vítima, o que implicava a transferência da culpa do penitente para a vítima. No entanto, um registro desse pecado ainda permanecia no santuário até o Dia da Expiação. Assim, quando o sumo sacerdote impunha as mãos sobre a cabeça do bode vivo e confessava sobre ele os pecados de Israel registrados no santuário, estava transferindoos a esse bode, que, por sua vez, carregava sobre si todos os pecados que haviam sido confessados e perdoados.
Esse ato de carregar não era o mesmo que o ato de suportar. Logo, esse bode não era responsável pela substituição, nem derramava seu sangue; ele simplesmente estava recebendo os pecados sobre si e levando-os ao deserto. Dessa forma, o pecado estava voltando à sua fonte de origem. “A expulsão do bode vivo fala do retorno dos pecados para sua primeira causa”, afirma Alberto R. Treiyer (The Day of Atonement and the Heavenly Judgment [Creation Enterprises International, 1992], p. 63).
Azazel simbolizava um ser pessoal que se encontrava em oposição ao Senhor, ou seja, Satanás. Uma vez que o bode era conduzido por uma pessoa ao deserto, tinha-se a certeza de que não mais voltaria. Assim, estava de uma vez por todas removida a presença do pecado. O significado dessa cerimônia é amplo e inspirador. O pecado não teria mais efeito, pois seu poder sobre o povo de Deus havia sido quebrado.
O santuário terrestre era uma cópia ou tipo do verdadeiro santuário, apontando para o ministério de Cristo no santuário celestial. Ele funcionava como uma ferramenta educativa/ilustrativa. Assim, não havia valor redentivo em seus ritos propriamente ditos. A salvação vem pela morte de Cristo. O quadro do Dia da Expiação aponta tipologicamente para o juízo divino, como descrito em Apocalipse 20, em que a completa destruição do pecado e de todos os inimigos de Cristo se dará no lago de fogo.
Nesta breve análise do ritual do Dia da Expiação em Levítico 16, observa-se que ele incluía elementos teológicos relevantes. O Deus eterno e transcendente Se fazia presente no meio do Seu povo. Todo o ritual visava a uma melhor compreensão da natureza do pecado e do plano da salvação.
O Dia da Expiação, portanto, evidenciava a graça divina na provisão de um plano para purificar o santuário e o povo de Deus. Esse ritual anual era o clímax do ritual diário. Ele permitia um novo começo. Hoje, conhecendo o ministério sacrifical e intercessor de Cristo, precisamos também confiar que Ele pode nos purificar de todo pecado e nos oferecer a chance de um novo começo.
ALAN JOHNYS LOPES DOS SANTOS, CELIO BARCELLOS DOS SANTOS, PAULO ALBERTO BARROS LEITE e ROGER DIORRAN BECALI (via Revista Adventista)
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