quinta-feira, 26 de outubro de 2023

DEUS DO VELHO TESTAMENTO VS JESUS DO NOVO TESTAMENTO

Muitos cristãos evitam o Velho Testamento. Comparado com a meiguice de Jesus, Deus ali aparece violento e com uma mão tão pesada. 
Outros racionalizam, tentando rearranjar os relatos e torná-los ideais, apresentando uma edição revista e melhorada de eventos que você nunca permitiria que seus filhos vissem na televisão. Outros até o idolatram, argumentando que a nossa era sem lei precisa de um Deus que tem poder para abrir os céus e arrancar as montanhas de suas bases.

Neste artigo vamos explorar uma quarta possibilidade — olhando o Deus do Velho Testamento como ele realmente é. Está claro que essa tarefa é impossível, porque nunca podemos estar certos de que não estamos racionalizando ou idolatrando. Mais ainda, o realismo de uma pessoa pode ser o idealismo de outra.

De qualquer maneira, tentar conhecer o Velho Testamento com seriedade é uma tarefa que vale a pena. Lembre-se de que ele era a Bíblia de Jesus e dos apóstolos. Mais do que isso, Jesus não somente declarou que o Deus do Velho Testamento era seu Pai, mas reivindicou para si a encarnação deste Deus: "Antes que Abraão existisse, Eu sou," disse ele (João 8:59)1 Esse testemunho os cristãos aceitam.

Se os dois Testamentos são inseparáveis, até que ponto poderemos sublinhar diferenças entre eles e ao mesmo tempo preservar sua unidade? Poderíamos até nos perguntar se seria apropriado para os cristãos tratar de "diferenças" entre o Deus do Velho Testamento e o Deus do Novo? Em nossos ouvidos ainda soam ecos de Malaquias 3:6: "Porque eu, o Senhor, não mudo".

Tanto o Sermão da Montanha como a epístola aos Hebreus são claros sobre esse assunto. Em Mateus 5 Jesus indicou claramente os contrastes entre o Velho e o Novo: "Ouvistes o que foi dito aos antigos, eu porém vos digo ... " Jesus está estabelecendo contrastes, não negando. A epístola aos Hebreus reivindica Jesus como uma revelação "melhor". Esse é o objetivo do livro inteiro, começando com o primeiro verso: "Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho" (Hebreus 1:1, 2). É importante notar que o contraste não é entre pior e melhor mas sim entre bom e melhor — uma diferença importante.

A despeito de certas evidências sobre as diferenças entre os Testamentos, ainda existe uma forte tendência de racionalizar e conciliar elementos dissonantes. Duas anedotas usadas no meu livro Who Is Afraid of lhe Old Testament God? ilustram esse ponto.2

Com referência ao Novo Testamento, lembro-me de um professor de renome do Velho Testamento que prometia escrever um livro intitulado "As Palavras Não Cristãs do Novo Testamento". Ele estava cansado, dizia com naturalidade, de ouvir seus colegas do Novo Testamento reivindicar esse Testamento como o Testamento da bondade e do amor, quando lá também está revelada a justiceira mão de Deus. Jesus falou de afogar uma pessoa no mar com uma pedra amarrada ao pescoço (Mateus 18:6); um súbito julgamento caíu sobre Ananias e Safira (Atos 5:1-11); Paulo sugeriu entregar um irmão a Satanás para a destruição da carne (1 Coríntios 5:5). Essas são palavras duras.

Um outro incidente relacionado com o Velho Testamento aconteceu num curso de hebreu de nível universitário, no qual se encontravam vários teologandos finalistas. Num dos exercícios do manual de gramática (se traduzido corretamente) lia: "Samuel degolou o rei". Porque os exercícios eram baseados em passagens bíblicas, os estudantes imperceptivelmente criam estar ouvindo a Bíblia ao trabalharem nos exercícios. Nesse caso, muitos trouxeram para a classe traduções mutiladas. Depois de trabalharmos nelas, um deles admitiu humildemente: "Nós pensávamos que isto é o que está dito, mas não poderíamos admitir que Samuel faria uma tal coisa".

Abrimos então nossas Bíblias em 1 Samuel 15:33 e lemos em nossa língua de hoje: "Samuel despedaçou Agag diante do SENHOR". A imagem do pequeno e inocente Samuel no templo, bem limpinho e obediente, tinha enterrado a espada ensanguentada de Samuel.

Resumindo, nosso desafio é este: se quisermos formar um todo coerente, em que tipo de moldura poderemos integrar as imagens contrastantes de Deus: o Deus amoroso com criancinhas no colo e o Deus violento, usando uma espada ensanguentada? Eu creio que o contraste entre os Testamentos é válido, mesmo se a mão justiceira de Deus apareça no Novo. Não importa se estamos lidando com as tensões entre os Testamentos ou com o contraste entre a mão amorosa e a mão justiceira de Deus, a mesma explicação básica se aplica, aquela que está intimamente relacionada com o conflito cósmico entre o bem e o mal.

O Conflito Cósmico
Os evangélicos esperam um mundo perfeito, um mundo melhor. Mas nós não estamos lá ainda. As perguntas clássicas da teodicéia aparecem quando os crentes confessam que Deus é bom e todo-poderoso e também o Senhor de um mundo como o nosso. Será que o poder e a bondade de Deus têm limites? Esse é o dilema.

A teodicéia do livre arbítrio, conhecida entre os adventistas pela "grande controvérsia entre o bem e o mal" é a que eu considero a mais irresistível. Segundo ela, o amor espontâneo, não forçado, livre, é o melhor. Rebeldia sem a ameaça de extinção imediata deve que ser uma opção. Então Deus escolhe temporariamente não demonstrar seu poder a fim de assegurar o bem supremo.

Essa teodicéia advoga a necessidade de demonstrar aos seres inteligentes que o bem escolhido voluntariamente é superior à bondade impingida. Mais do que isso, essa bondade impingida seria no fim o maior dos males, a antítese da bondade, pois ela requereria o uso arbritário do poder de um ser sobre o outro. A "grande controvérsia" é então a dramática batalha entre o bem (amor recíproco, espontaneamente escolhido e outorgado) e o mal (egoísmo, uma "bondade" impingida sobre outrem pelo uso arbitrário do poder).

O livro de Jó é o modelo bíblico clássico para essa teodicéia. Um ser maléfico (Satanás) confronta-se com o Ser Supremo, caracterizado pela bondade, com essas perguntas: Será que Jó realmente ama a Deus e o bem por amor à bondade? Deus permitiu que Satanás assediasse Jó, mas com limites. Saindo vitorioso nesta prova, Jó vindicou Deus e o bem. Deus então demonstra seu poder pondo fim às provações de Jó, um julgamento agora evidentemente justo pois que o amor e o egoísmo estiveram presentes na corte.

Neste conflito, o papel da autoridade é a chave para se compreender a tensão existente entre um Deus amoroso e um violento. Qual é a essência da autoridade: poder ou bondade?

Por causa do pecado, os seres criados vêem a autoridade em termos de poder, não de bondade. Ordens são dadas, convites não. O medo é a consequência natural e o motivo interior. Em contraste, a autoridade no mundo perfeito é definida em termos de bondade, não de poder. A alegria é sua consequência primária e sua força motora. Convites, não ordens, são emitidos. A resposta é aceita naturalmente, espontaneamente, não porque a autoridade possa impor sua aceitação, mas porque ela é vista como sendo boa.

Na Bíblia, esse ideal é descrito na promessa do Novo Concerto de Jeremias 31. Porque a lei está escrita no coração, ordens desnecessárias. " E não ensinará alguém mais a seu próximo, nem alguém a seu irmão, dizendo: 'Conhecei ao Senhor,' porque todos me conhecerão, desde o menor até ao maior." (Jeremias 31:34). A descrição que ElIen G. White fez do céu antes da rebelião de Lúficer reflete esse ideal: "Quando Satanás se revoltou contra a lei de Jeová, o pensamento de que uma lei existia veio aos anjos quase como o despertar de algo antes jamais pensado”.3

Em presença do pecado, Deus está pronto a usar sua autoridade como poder. Numa emergência, ele vai apelar para o temor. A revelação no Sinai foi violenta porque ele não poderia ter atingido o povo de outra maneira. Os senhores que escravizaram os Israelitas tinham exercido o poder da autoridade. Levaria muito tempo até que eles pudessem ver isso em termos de bondade. Jesus, a incarnação da lei de Deus, ilustrou a autoridade como "bondade". Mas o Israel do Sinai não estava preparado para uma revelação desta natureza.

Deus ainda recorre ao uso do poder e ainda utiliza o temor. Emergências às vezes ainda exigem isto num mundo pecaminoso. Mas o seu objetivo supremo é um reino onde reine o amor, escolhido voluntária e livremente. As Escrituras retratam a história de seus esforços neste sentido.

Dentro do escopo da grande controvérsia entre o bem e o mal, ao se organizar o material bíblico, a visualização de dois quadros é muito útil. A imagem do "escorregador" ilustra a perspectiva histórica, e a "pirâmide" a perspectiva sistemática.

O Escorregador
Mesmo se suas implicações não são totalmente compreendias, os primeiros capítulos de Gênesis descrevem um mundo em luta contra o egoísmo. Como no caso de Jó, Deus permite que o egoísmo tome o seu curso. O resultado é uma sucessão de desastres: o pecado de Eva e de Adão, o assassinato de Caim contra Abel, a vanglória de Lameque por ter-se tomado mais violento do que Caim, o dilúvio, a embriaguez de Noé e a torre de Babel. Em Josué 24:2 lemos que a própria família de Abraão "servia outros deuses". Gênesis revela a chocante realidade de que o sacrifício de crianças e a poligamia eram "aceitáveis" dentro da família da fé.

Muitos cristãos devotos tendem a passar por cima deste "escorregador" que levou à depravação, colocando inconscientemente uma capa bonita nos atos de Deus e de seu povo. Essa maneira de encarar os fatos da Bíblia sob o prisma da "estrada elevada" põe ênfase na continuidade da verdade de Deus. Um exemplo clássico encontra-se em Hebreus 11, que transforma os pecadores do Velho Testamento nos santos do Novo. Se você quiser ouvir Sara rir cinicamente, vá ao Gênesis. Você não vai ouvir isto em Hebreus 11.

As histórias do Velho Testamento, entretanto, sugerem uma "estrada baixa", aquela que reconhece o efeito do pecado no mundo perfeito de Deus. A "estrada baixa" mostra quão longe de Deus a criação caíu, e como Deus tem sido paciente para trazê-la de volta. Ele usará a violência para atingir os violentos. Mas ele pacientemente mostra sua meta — um reino de amor.

A gradativa perda do conhecimento de Deus requer uma volta ascendente degrau por degrau. Essa maneira de ver não só permite, mas exige meios de reconhecer percepções diferentes da verdade. O conceito "uma vez verdadeiro, sempre verdadeiro" não pode explicar tudo o que encontramos no Velho Testamento. O conhecimento da verdade se desenvolve sob a orientação de Deus. Não é uma evolução natural, mas uma jornada guiada por Deus.

Essa perspectiva também exige que usemos "textos chaves" mais cuidadosamente, porque eles serão melhor compreendidos dentro do contexto histórico. Mas, se é verdade que Deus falou num certo lugar para um determinado tempo, como vamos, saber o que se aplica a nossos dias? E aqui que a lei da "pirâmide" providencia o princípio primordial de organização.

A Pirâmide
O efeito "escorregador" do pecado na história da humanidade tem suscitado questões provocantes: será que a Bíblia toda pode ser vista de repente como "caindo do pedestal"? Não. O princípio número um do amor, definido primeiramente pelos dois grandes mandamentos (amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo) assim como pelo decálogo, nos dá a imagem de uma pirâmide que nunca se move. Tudo mais nas Escrituras não passa de comentários sobre o tempo e o lugar. Portanto o princípio número um e os dois grandes mandamentos juntamente com o decálogo formam uma pirâmide que se assemelha a um livro de código. O resto das Escrituras é como o classificador repleto de notas.

A imagem do "escorregador" é desconfortável, pois cristãos devotos têm a tendência de pensar nas Escrituras como um livro de código, mas inconscientemente a tratam como um classificador de notas. "Quem amaldiçoar a seu pai ou a sua mãe, certamente morrerá" (Exodo 21: 17). É um mandamento de Deus. Mas será que nós o praticamos? Não. Sejamos honestos e coloquemos a teoria e a prática em harmonia. Fortaleceremos, se o fizermos.

A perspectiva do "classificador" nos permite integrar a revelação, a razão, e o trabalho do Espírito Santo num sistema harmonioso. A revelação nos providencia casos concretos que a razão pode avaliar. A oração convida o Espírito a nos assegurar que a razão é guiada pelo amor e não pelo egoísmo. Assim a Bíblia inteira permanece normativa porque providencia ilustrações concretas dos cuidados de Deus por seu povo no passado. Mas a aplicação de tais ilustrações para nossos dias não é clara nem absoluta. Desenvolvi esse tema em meu livro Inspiration: Hard Questions, Honest Answers, destinado especialmente ao público adventista.4

Sumário e Conclusão

O conflito cósmico entre o bem e o mal provê uma base sobre a qual é possível compreender por que um Deus amoroso tem que usar a violência. Devido as diferenças radicais existentes entre povos e culturas, um Deus de amor constante, ou seja, um Deus que não muda, tem que adaptar esse amor usando maneiras radicais, se ele realmente tiver que ser visto por todos como um Deus de amor. Da mesma maneira que pais sábios se adaptam às diferenças de seus filhos para que seu amor por eles seja coerente, Deus também adapta seu amor à compreensão daqueles que ele está tentando alcançar. Um artigo recente tratando das diferenças entre os gêneros, resume assim esse assunto: "tratando as pessoas da mesma maneira não é um tratamento justo, pois as pessoas não são todas iguais”.5

Jesus nos permitiu ver o Deus encarnado — uma revelação fantástica e perdurável. Ele também indicou os princípios organizadores (os dois grandes mandamentos) mais claramente do que eles aparecem no Velho Testamento. O Velho Testamento é mais autoritário. O conflito cósmico entre o bem e o mal nos explica a razão. Por isso a idéia do livro de código predomina nele, porque num sistema autoritário ninguém precisa de pensar: basta obedecer!

Se formos mais além em direção ao ideal do Novo Concerto, uma relação de amor recíproco com Deus torna-se mais e mais importante. Isso exige uma resposta profunda. Quando o processo se completar, Deus não será mais violento, nem mesmo em emergências, porque não vão existir mais emergências.

Para assegurar essa lei de amor, Deus quer que façamos a diferença entre o egoísmo e o amor antes de tomarmos nossa decisão final. O Velho Testamento é uma parte essencial do drama. À luz do Novo, isso faz realmente sentido. Todavia, espero que nunca percamos de vista os horrores trazidos pelo pecado. O relato de Samuel e Agag é horrível, e o será sempre. É por isso que quero seguir a Jesus e viver num mundo onde isso não vai mais acontecer, porque todos os que lá estiverem já fizeram a escolha de seguir a Jesus e sua lei de amor.

Alden Thompson (via Diálogo)

NOTAS

    1. A menos que haja indicação diferente, todas as citações bíblicas são da tradução de João Ferreira de Almeida.
    2. Alden Thompson, Who's Afraid of the Old Testament God? (Exeter, UK: Pater Noster Press, 1988; Grand Rapids, Mich.: Zondervan Publishing House, 1989), pp. 13, 21.
    3. Ellen G. White, Thoughts From the Mount of Blessing (Mountain View, California: Pacific Press Publishing Assoe., 1956), p. 109.
    4. Alden Thompson, Inspiration: Hard Questions, Honest Answers (Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing Assoe., 1991), especialmente capítulo 7, "God's Word: Casebook or Codebook?" (págs. 98-109) e capítulo 8: "God's Law: The One, the Two, the Ten, the Many" (pp. 110-136).
    5. Deborah Tannen, "Teachers' Classroom Strategies Should Recognize That Men and Women use Language Differently", The Chronicle of Higher Education, June 19, 1991, p. B3.

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