quarta-feira, 18 de setembro de 2024

ARMADILHAS DO ÓDIO

 
O debate da TV Cultura, ocorrido no domingo, 15 de setembro, marcou um novo e preocupante capítulo na deterioração do discurso político brasileiro. O confronto físico entre o apresentador José Luiz Datena e o ex-coach Pablo Marçal não foi apenas um evento isolado, mas um reflexo claro da escalada da polarização e da crescente normalização da violência política no país. O lançamento de uma cadeira por Datena em resposta às acusações de assédio sexual feitas por Marçal simboliza o estado alarmante de degradação do debate público, onde o confronto de ideias é cada vez mais substituído por agressões e insultos.

Cultura do ódio
E se tem algo que precisa ser observado com atenção pela sociedade é a explosão da violência e as motivações para esse grave contexto social. Há um sentimento em curso capaz de enfraquecer os esforços pela cultura de paz. O ódio parece despontar como sentimento dominante, e basta participar das redes e mídias sociais para chegar a esta conclusão. Da política à cultura, do comportamento à ciência, da educação à religião, não resta dúvida: o ódio prevaleceu.

Uma reflexão pertinente sobre esse assunto foi feita pelo antropólogo e crítico literário francês René Girard, de quem li um ensaio que me sensibilizou – o livro Eu via Satanás cair como um relâmpago – em que ele faz uma leitura da violência a partir da antropologia bíblica. Segundo Girard, o homem está marcado por um desejo de imitação, ao qual se refere como desejo mimético, e por esse motivo está envolvido em um circuito de comparações e rivalidades com o outro. O caráter violento desse comportamento seria um fenômeno metaforicamente “oculto desde a fundação do mundo”, daí o fato de Caim ter usado de violência contra seu irmão Abel.

Para Girard, como o ser humano não sabe o que desejar, imita o que os outros desejam. Uma tese simples e de angustiantes consequências. Primeiro, descobrimos que não somos indivíduos autossuficientes como quer nos fazer crer a mídia e a cultura do consumo. Segundo, nossa inveja por um objeto, pessoa ou ideia do outro acarreta em conflitos que resultam em ódio capaz de levar a sacrifícios, como o assassinato de Abel. Por trás desse pensamento está a cultura do narcisismo contemporâneo, baseada na imitação de estereótipos variados que nos levam à busca pela felicidade permanente ou pelo corpo perfeito ou pela prosperidade fácil ou pela celebridade instantânea. As pressões que resultam daí explicam o crescimento de ansiedades, depressões, suicídios, violências recorrentes manifestadas por meio do ódio político, religioso, ideológico, sexual, social e racial.

Armadilhas do ódio
A igreja precisa ser o contraponto a essa explosão de sentimentos ruins que se manifesta em forma de ódio físico e virtual extremo, contra o semelhante ou contra instituições. É um esforço que precisa ser institucional e pessoal. Existem formas de levar esta ideia adiante. Basta as igrejas dedicarem tempo a criar uma cultura de paz, no bairro onde estão inseridas, com representantes participando ativamente do debate com governos e sociedades e com fiéis evitando a cultura de ódio que prolifera nas redes sociais.

Essa é a grande responsabilidade do cristianismo, inspirar os cristãos a não incorrerem neste mapa de ódio, mas apregoar o amor pelo outro, subverter as cadeias da violência, oferecer a outra face como um ato de contracultura e demonstrar a pessoas esmagadas por opressões diversas que é possível, sim, viver em paz e com esperança. 

Assim que notarmos que estamos na mira das “armadilhas” do ódio, a melhor coisa é afastar-se firmemente. Temos a escolha entre a vida e a morte, bem como a capacidade de perceber que essa é uma realidade insana, que gera transtorno físico e desequilíbrio psíquico e espiritual.

Enfim, não devemos nos acostumar com o ódio, porque deixam dolorosas cicatrizes na mente e no coração das pessoas, como alertou Salomão: “Não se junte com pessoas odiosas, nem frequente a casa de gente raivosa. Você poderia acostumar-se como o modo delas e criar armadilhas para si mesmo” (Pv 22:24, 25).

Fique com alguns conselhos de Ellen G. White encontrados na Meditação Matinal - Nossa Alta Vocação (p. 231) e no livro O Lar Adventista (p. 437) para que possamos evitar as "armadilhas" do ódio:

1. Cumpre submetermos um temperamento impulsivo, e dominar nossas palavras; e a esse respeito conseguiremos grandes vitórias. A menos que controlemos nossas palavras e nosso temperamento, somos escravos de Satanás. Achamo-nos sujeitos a ele. Ele nos leva cativos. Todas as palavras de altercação, palavras desagradáveis, impacientes, irritadas, são uma oferta feita a sua satânica majestade. E é uma custosa oferta, mais custosa do que qualquer sacrifício que possamos fazer a Deus; pois ela destrói a paz e a felicidade de famílias inteiras, destrói a saúde, e é afinal causa de perder-se uma vida eterna de felicidade.

2. Como Satanás exulta quando é capaz de pôr a alma no máximo calor da ira! Um relance de olhos, um gesto, uma entonação, podem ser apanhados e empregados, como a seta de Satanás, para ferir e envenenar o coração aberto para recebê-la. Dando a pessoa uma vez lugar ao espírito irado, fica tão intoxicada como aquele que levou o copo à boca.

3. Cristo trata a ira como homicídio. Palavras impetuosas são um cheiro de morte para morte. Aquele que as profere não está cooperando com Deus para salvar seus semelhantes. No Céu esse ímpio injuriar é posto na mesma lista do praguejar comum. Enquanto for acariciado o ódio no coração, não há aí um jota do amor de Deus.

4. Ao sentirdes surgir um espírito irado, apoderai-vos firmemente de Jesus Cristo pela fé. Não profirais uma palavra. O perigo jaz na emissão de uma só palavra quando estais irados, pois seguir-se-á uma sequência de frases impetuosas.

5. O homem que dá lugar à loucura proferindo palavras de paixão, dá um falso testemunho; pois nunca ele é justo. Exagera todo defeito que julga ver; é demasiado cego e irrazoável para se convencer de sua loucura. Transgride os mandamentos de Deus, e sua imaginação é pervertida pela inspiração de Satanás. Não sabe o que está fazendo. Cego e surdo, permite que Satanás tome o leme e o guie aonde lhe aprouver. Abre-se então a porta à malevolência, à inveja, e às ruins suspeitas, e a pobre vítima é desamparadamente levada. Há, porém, esperança enquanto duram as horas da graça, mediante a graça de nosso Senhor Jesus Cristo.

6. Não devemos nunca perder o controle sobre nós mesmos. Tenhamos sempre presente o Modelo perfeito. É pecado falar impacientemente, com irritação, ou sentir ira mesmo que não a expressemos. Devemos andar dignamente, dando uma justa representação de Cristo. O pronunciar uma palavra irada é como um seixo atritando outro: imediatamente promove sentimentos de raiva. Não sejais nunca um ouriço de castanheiro.

7. Procurai que dEle sejais achados imaculados e irrepreensíveis em paz” (2 Pedro 3:14). Esta é a norma pela qual todo cristão se deve esforçar, não em sua própria capacidade, mas pela graça que lhe é dada por Jesus Cristo. Lutemos pelo domínio sobre todo pecado, e sejamos capazes de controlar toda expressão impaciente, irritada.

Conclusão
O cristianismo é a religião da graça, do amor e da paz. Logo, é totalmente incompatível com essa fé que qualquer cristão defenda ou pratique a violência, a agressividade, o ódio – seja no que faz, seja no que fala, seja no que escreve. Qualquer cristão que proponha como primeiro recurso com relação a pessoas que agem ou pensam de modo diferente revidar, agredir, ironizar e retaliar, em vez de usar um tom gentil e de conduzir quem incorre no erro para a restauração… simplesmente não entende o evangelho. Afinal, é o evangelho de Jesus Cristo de Nazaré que nos dá o mandamento: “O servo do Senhor não deve viver brigando, mas ser amável com todos, apto a ensinar e paciente. Instrua com mansidão aqueles que se opõem, na esperança de que Deus os leve ao arrependimento e, assim, conheçam a verdade. Então voltarão ao perfeito juízo e escaparão da armadilha do diabo, que os prendeu para fazerem o que ele quer” (2Tm 2:24‭-‬26).

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