sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

A MORTE DA VIDA PRIVADA

A ideia de privacidade surgiu na Inglaterra no século XIX, como afirma o historiador Georges Duby em sua obra A história da vida privada (A history of private life, em inglês). A palavra “privacidade” tem sua origem no termo francês priver, que significa “domar”, “domesticar”. O termo similar em latim, privatum, também se refere ao que acontece dentro de casa ou dentro do círculo familiar.

A morte da vida privada ainda vai matar nossa vida social
Os limites do que precisa ser exposto não existem mais. Basta andar pelas ruas para perceber que o celular se tornou quase uma extensão do corpo. O hábito de estar conectado o tempo todo tem relação direta com o uso intenso das redes sociais, que passaram a ocupar um espaço central na rotina das pessoas. Em poucos segundos, é possível descobrir a rotina, os hábitos e até os problemas pessoais de muita gente. Fotos, vídeos, desabafos e reclamações formam uma avalanche de informações compartilhadas diariamente. Mas até que ponto essa relação com o mundo digital é saudável?

Para a psicóloga Monica Braz, a exposição exagerada pode ser um sinal de alerta. “Todo excesso mostra uma falta. É preciso pensar como estão as emoções e o equilíbrio de quem se expõe demais. Muitas vezes, isso também impede a criação de limites em relação às questões pessoais”, afirma. Não nos preocupamos em preservar nossos queridos que estão acamados, nem nos atentamos que as crianças também precisam ser preservadas, e nem todos os olhos precisam vê-las. Precisamos tanto compartilhar nossas passagens pelo céu e pelo inferno que nem paramos para notar que se apenas Deus e o Diabo soubessem já estaria suficiente.

Conquistas que poderiam ficar no privado pra não deixar nossa carência por auto-afirmação tão evidente acabam sendo alardearas desnecessariamente. Transformamos internações, luto, algumas horas tomando soro, um acidente automobilístico em eventos similares a um martírio. Se não podemos ser protagonistas heróis que sejamos protagonistas vitimizados.

Parece que estamos todo tempo em busca de um recorte extraordinário, de ser manchete, mesmo que isso tire de nós o direito de sofrer ou rir apenas com as pessoas que amamos, e que de fato se importam. Quando que o amor dos que temos por perto se tornou tão insuficiente? Quando foi que passamos a precisar tanto de que quase desconhecidos comentem com e nos acolham por 5 segundos?

Expomos tudo, e os mais cristãos ainda o fazem como se fosse um pedido de oração; e talvez seja mesmo. Talvez seja um clamor desesperado por livramento, mas em certa medida há um clamor desesperado por ser notado, para que minha dor seja vista. Afinal, cada vez mais, em um mundo caótico, somos apenas mais um sangrando. O problema ainda se torna maior porque ao deixar de ter vida privada perdemos o direto a limitar a intromissão, pois não existe mais intromissão, tudo da minha vida é de todos.

E há ainda aqueles que entendem que ninguém pode ter vida privada, que nada pode ficar vetado a necessidade humana de saber por saber; entram, stalkeiam, vasculham a vida alheia, pegam alguns sinais e criam notícias da vida alheia pra que nada fique encoberto; somos ratos entrando em espaços proibidos querendo estragar o pouco que alguém deixou guardado pra si na dispensa da alma.

Cada manhã o circo é montado. A platéia de hoje ficará indignada por ser o palhaço amanhã. O que se coloca no centro do picadeiro falará de tudo, se humilhará, não deixará nada guardado em busca de alguns poucos aplausos esquecendo que as luzes se apagam, e a plateia se esquece do palhaço, do mágico e de todo o espetáculo, porque eles querem apenas entretenimento.

Vamos assim matando a vida privada achando que isso é rede social, sem notar que se matarmos a vida privada, mataremos a vida social; pois ninguém saberá lidar com tudo sendo acessível a todos, sem nenhum espaço para ser meu.

Não somos artigos públicos e de livre acesso, então por que tantas vezes nos colocamos nessa condição? A Bíblia diz que “o mexeriqueiro espalha segredos, mas a pessoa séria é discreta” (Provérbios‬ ‭11:13‬). O texto se refere às pessoas que gastam tempo falando da vida dos outros, mas esse princípio nos leva também a refletir sobre guardar os nossos próprios segredos, atentar pela nossa própria segurança e preservar a nossa própria identidade.

Por favor, encarecidamente, preserve as pessoas que você ame, entre na vida apenas das pessoas que te convidarem; controle sua curiosidade e sua capacidade demoníaca de suprir com a sua criatividade, lacunas não contadas das histórias; recolha-se vez ou outra; leve suas dores aos que você sabe que as sentirão contigo.

Valorize sua vida social recolocando sua vida privada no devido lugar!

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