Durante muitos anos, a comunidade evangélica ouviu sermões e palestras anti-rock que argumentavam que:
- o diabo é o pai do rock;
- o rock mata plantas;
- o rock leva os ouvintes ao frenesi sexual.
Esses itens, originários de declarações de roqueiros (Raul Seixas dizia que satã gerou o rock) e de experimentos científicos ainda controversos, fazem parte das objeções moralistas em relação ao rock. Mas o que há de verdade nisso tudo?
Sou dos que concordam que o rock e suas tantas variações não cabem no louvor congregacional dos templos, mas acredito que são necessários melhores argumentos para criticar seu uso como ferramenta evangelística ou até como entretenimento evangélico.
Começo com a primeira objeção, a demonização do rock.
Os detratores do rock continuam a contar uma historinha que já virou mais uma lenda urbana evangélica. Se você ainda não conhece: “Em alguma região da África, o filho de um missionário estava certo dia escutando um disco de rock. Um nativo daquela tribo, visivelmente aterrorizado, correu a perguntar ao pastor como ele permitia que seus filhos ouvissem uma música usada para invocar demônios em rituais de vodu”.
Segundo descobriu Al Menconi (citado por Steve Miller em Christian Music Debate), a gravação era “uma produção do início dos anos 1970 que incluía canções como ‘He’s everything to me’ e ‘When the roll is called up yonder’” – este último é o hino “Quando for chamado”. Menconi concluiu que, se essas músicas são demoníacas, “ou os nativos se confundiram ou milhões de cristãos estão adorando com música de possessão satânica – o que não é possível” (Today’s music, p. 40).
Apesar dos diversos furos no roteiro, esse conto folclórico é tido como “a prova” de que o rock é coisa do capeta, sendo um meio inviável de transmitir o evangelho. “Rock gospel” seria, então, uma contradição, um oxímoro, isto é, uma junção de termos inconciliáveis tipo “suaves prestações”.
Noutra história, um missionário fez uma experiência musical numa "incivilizada" região da África. Quando seu aparelho de som tocava música clássica, os homens da tribo sorriam e indicavam em seu idioma que o som era agradável para eles. Mas quando ouviram rock, os nativos reagiram empunhando suas lanças como se fossem lutar e pegaram pedras para destruir o aparelho.
Não demorou para que os contadores dessas histórias fossem acusados de preconceito racial. Sua rejeição ao rock incluiria também, além das objeções morais, o odioso racismo. Eles consideravam a música dos povos africanos (geralmente enxergados como uma massa continental única e sem variações étnicas e culturais) como primitiva, selvagem, pagã, demoníaca, inspirada pelo vodu.
Fato: em várias culturas africanas tradicionais, os tambores também são usados em outras atividades como o trabalho ou o lazer. Pergunta: por que o cristão ocidental associou os tambores unicamente aos cultos religiosos africanos?
Acostumados à sofisticação harmônica e contrapontística da música clássica europeia, os oponentes do rock opunham-se por tabela à música de raiz africana, demonstrando ignorar que a complexidade dessa música era de outra ordem. No caso, de ordem rítmica. Fingiam ignorar ainda a bonita simplicidade melódica daquela música, cuja base frequentemente serviu às apreciadas melodias de black spirituals e canções gospel do final do século XIX.
Os povos africanos também reagem, segundo essas histórias, somente de acordo com um estágio primário de comportamento musical. Ouvem uma música e reagem gostando. Ouvem outra e reagem brigando. Assim, se até os “pagãos incivilizados” reconhecem o suposto mal inerente do rock, como os civilizados cristãos ocidentais poderiam negá-lo? Essa conclusão soa como música para os ouvidos dos religiosos apreciadores da música erudita europeia.
Se somarmos a questão de que a batida quadrada do rock nada tem a ver com a intricada teia percussiva do vodu, aí é que fica mais difícil saber o que é fictício nessas histórias: se as conclusões ou as próprias histórias.
Então, num exercício ficcional, vou tentar adivinhar quais as músicas que o missionário usou no experimento:
Ele pode ter tocado um disco dos Beatles. Mas que música? "Hey Jude"? "Yesterday"? Não, ou os nativos poderiam sair apaixonados direto para suas tendas. "Eleanor Rigby" ou "A day in the life"? Não, elas têm orquestração muito sofisticada, iria parecer música clássica e os nativos poderiam ficar elogiando o arranjo para o naipe de cordas. Bem, certamente aqueles não eram nativos que amavam os Beatles e os Rolling Stones.
Será que eles condenariam os deuses do mau-gosto ao ouvir o "aê-aê-ô-ô" do axé? Também não creio que a vitrola desse experimento tocou "I will survive", hit da disco music; seria muita irresponsabilidade científica!
Mas o missionário pode ter tocado a 5ª Sinfonia de Beethoven ou o "Dies Irae" do Réquiem de Verdi. Hum, não, as notas iniciais espantariam os pobres ouvintes selvagens. Melhor tocar um concerto de Mozart, dos mais calmos. Talvez a tapeçaria orquestral de alguma música de Debussy – seus delicados mas dissonantes acordes levariam os nativos às lágrimas ou às armas?(clique nos exemplos sublinhados para ouvi-los).
E se depois ele tocou um punk do Sex Pistols ou um metal do endiabrado Ozzy Osbourne? Penso que só a menção desses nomes já faz desmaiar de horror muita gente, incluindo este escriba. Nesse caso, quase dá para acreditar que as tribos-cobaias do experimento iriam ficar em pé de guerra. A menos que algum nativo engraçadinho gritasse “Toca Raul!”.
Joêzer Mendonça - Nota na Pauta (Título Original: Os mitos do rock in África)
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