segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

"Nós vamos invadir seu shopping!" - A onda do rolezinho veio pra ficar?


Desde que me entendo por gente, os shopping centers brasileiros sempre foram redutos da classe média, que por sua vez é formada por uma maioria branca. Mesmo com a febre dos shoppings, a maior parte das pessoas que transita por seus corredores tem este perfil. Não poucas vezes, os raros negros ou pardos são os seguranças vestidos de terno e gravata. E são justamente estes que acompanham com olhares desconfiados aqueles que não se enquadram no estereótipo dos seus ilustres frequentadores.

Mesmo em regiões cercadas de comunidades, os centros de consumo parecem inacessíveis às camadas mais humildes. É como se houvesse um muro invisível e intransponível ou um aviso do tipo “aqui não é seu lugar”. É claro que em algum momento esta bolha estouraria.

Com o aumento do poder econômico das classes C, D e E, os templos de Mamom receberiam novos adeptos ávidos por consumir os mesmos produtos usados pelas classes A, B e C. Sem contar que os shoppings se tornaram em points de encontro de adolescentes e jovens, papel antes desempenhados pelas praças e parques. Ali eles papeiam, paqueram, namoram e fazem amizades. Antes, somente os filhos da classe média se sentiam à vontade nesse ambiente. Os mais humildes não se achavam em condição de vestir-se adequadamente para frequentá-lo. As coisas mudaram. Hoje, eles não só se vestem com roupas de grifes caras (ainda que, em alguns casos, falsificadas), como também gostam de ostentar. 

Obviamente que ninguém em sã consciência deseja ver um dos únicos espaços urbanos que ainda inspiram uma sensação de segurança se tornando cenário de arruaças e badernas. Todos queremos preservar a integridade de nossa família, e circular livremente sem sermos incomodados.

Este mesmo espírito permeava a sociedade americana durante as primeiras décadas do século XX. Brancos se recusavam a compartilhar dos mesmos ambientes e serviços que os negros. Até no transporte público, negros tinham que sentar-se na parte de trás para não incomodar os demais. As igrejas, por não poderem recusar a frequência de negros, passaram a construir galerias nos fundos dos templos para que os acomodassem distantes da vista dos brancos. Foi necessário que uma negra se recusasse a deixar seu assento sob o insulto de um branco, para que se deflagrasse naquele país uma verdadeira revolução que culminaria na conquista dos direitos civis para os negros. Primeiro, eles resolveram sabotar os ônibus provocando a quase falência de várias viações. Mais tarde, sob o comando de Martin Luther King Jr., promoveram a "marcha do milhão" na esplanada de Washington, centro do poder político do país, sacudindo os alicerces da sociedade majoritariamente anglo-saxônica.

Dizem que no Brasil não há racismo. Todos sabemos que isso não é verdade, mas nos gabamos como se fosse. Pode ser velado, discreto, mas, ainda assim, é racismo do mais cruel. Basta ver os papéis que nossos atores negros recebem nas novelas (salvo raras exceções). Pois agora, o gigante mantido na senzala do nosso inconsciente coletivo acordou e quer de volta o tempo perdido. 

É impossível fazer uma projeção do tamanho que esta onda vai chegar. Mas é bom que estejamos preparados. O rolezinho de hoje será o rolezão de amanhã. A classe média terá que aprender a conviver com os seus mais recentes componentes. Talvez alguns não tenham tido a mesma educação, porque esta lhes fora negada por muito tempo. Talvez outros pareçam rústicos e de gosto cultural duvidoso e tenham um jeito excêntrico de se vestir. Mas são cidadãos brasileiros, detentores de todos os direitos garantidos pela constituição. E mais: são seres humanos como quaisquer outros, imagem e semelhança de Deus. 

Li em algum lugar que esses são rolés da inveja. Que os maloqueiros vão para os shoppings cobiçar o que os mauricinhos usam. Desconfio que o o problema seja outro. Não se trata de inveja deles, mas de ciúmes daqueles que não admitem ver suas marcas em corpos cuja jinga denuncia sua origem pobre e humilde. Afinal, quem eles pensam que são?

Agora, já era! Os filhos do patrão terão que transitar pelos mesmos corredores dos filhos da empregada. Vestirão e calçarão as mesmas marcas. Lancharão no mesmo fastfood. Frequentarão o mesmo cinema. E espero que, em breve, também possam frequentar a mesma escola, o mesmo teatro, o mesmo museu, a mesma biblioteca. 

Que ninguém ouse barrá-los. Que todos sejam inocentes até que se prove o contrário. Que ninguém seja julgado pela cor da epiderme, nem pelo endereço em que mora. Lembremo-nos que da favela também saem doutores, professores, engenheiros e médicos. 

Deixo-os livres. Viva e deixe-os viver.

Que só haja repressão se houver crime, baderna, vandalismo. Caso o contrário, a turba se enfurecerá e as coisas poderão não terminar bem. Ruim para eles. Ruim para todos nós. Aliás, que não haja mais esta distinção eles/nós. Que sejamos todos"nós".

Lembro-me de que nos anos 80 houve muita balbúrdia por conta dos chamados farofeiros que passaram a frequentar praias como a do Guarujá em São Paulo e da Barra no Rio de Janeiro, redutos da classe média destas respectivas cidades. Seus moradores e frequentadores mais nobres se sentiam ultrajados com a presença daquela gente parda, sem qualquer refinamento, e que, ainda por cima, deixava seu lixo para trás. Foi nesta época que surgiu a banda Ultraje a Rigor estourando nas paradas de sucesso com a canção "Nós vamos invadir sua praia."

Veja AQUI quão atual é a letra do velho hit.

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