segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Afinal... o que é mundanismo?

É praticamente impossível que algum dos assim chamados “crentes”, ou mesmo qualquer indivíduo inserido num contexto ao menos nominalmente cristão, nunca tenha pronunciado ou ouvido frases como: “O mundo está entrando na igreja”, “Estão querendo adaptar a igreja ao mundo, e não o mundo à igreja” etc. Ao longo deste texto, procuraremos desvendar a mística por trás de frases como essas. São bíblicas? É sensato utilizá-las hoje? Em quais contextos? O que elas realmente querem dizer?

Sem dúvida, um fato se faz notório e gritante no cristianismo dos nossos dias: muitos (eu disse, muitos) são os autodenominados cristãos que não possuem o mínimo interesse em afastar-se daquilo que os afasta de Cristo. Um outro fato, talvez não tão perceptível à primeira vista, é o de que há ainda outros tantos cristãos, que, de tanto “quebrarem a cara” no mundo, acabam lançando-se numa tentativa sincera, porém precipitada de afastar-se ao máximo do assim chamado “mundo”. Digo “precipitada” porque antes de querermos nos afastar daquilo que é mundano deveríamos interrogar a Bíblia para nela encontrarmos a resposta à questão primordial acerca deste assunto: Afinal, o que é mundanismo?

Antes de prosseguirmos, vamos combinar que é muito melindre (para não usar o termo popular: frescura) essa mania que muito crente “moderno” tem de dar “pití” quando escuta palavras como: “do mundo” ou “mundano”. Sem “ui, ui, ui” aqui, por favor! A pessoa pode até não gostar (e tem esse direito, ou defeito), mas tais palavras são bíblicas; e não é necessariamente errado utilizá-las.

Entretanto, sejamos também compreensivos para com aqueles que se sentem ofendidos com tais palavras, a culpa não lhes pertence inteiramente. Ainda que tal melindre seja irracional, muitas vezes não o é por completo. É razoável reconhecer que às vezes ele possui um pequeno fundo de lógica, pois, apesar de bíblicas, tais palavras são constantemente mal utilizadas. Foram banalizadas a tal ponto que se afastaram completamente de seu significado bíblico original. Sendo assim, primeiramente citemos algumas coisas às quais o termo “mundano” biblicamente não se refere.

O que não é
Paulo, por exemplo, usou o termo “mundo” não apenas para denotar aquilo que está afastado de Deus, mas também para falar de coisas do dia a dia, como o cuidado para com os familiares (1Co 7:31-34). Assim, na Bíblia, “mundano” pode se referir tão-somente a coisas terrenas, e não necessariamente profanas, mas que podem nos tirar do Céu se não as colocarmos em seu devido lugar, isto é, depois de Cristo.

1 – Mundana não é qualquer pessoa de denominação diferente da sua
Por quê? Simplesmente porque essa definição associada ao termo “mundano” não se encontra em lugar algum da Escritura Sagrada. Caso haja embasamento bíblico para tal ideia, gostaria muito de vê-lo. Apesar de procurá-lo, jamais o encontrei. Se algum dentre os que me leem tiver notícia dele, por favor, não se constranja em alertar esta criatura para que eu possa adaptar meu pensamento ao pensamento bíblico. Mas, por ora, devo agir com honestidade, e, por mais que eu abrace minha denominação, devo dizer que não é possível achar, na Bíblia, nada que me autorize a definir alguém como “mundano” simplesmente por ser de outra denominação.

2 – Mundano não é qualquer elemento diferente do usual
Assim como há os fúteis cristãos de mente vacuosa que aceitam qualquer novidade “cool”, simplesmente por ser novidade, sem critério bíblico e/ou racional algum (os adeptos da “teologia do aff”, cujo único argumento para quando vê algo que não lhes agrada é “aff”, e Bíblia passa longe), assim também há aqueles que se descabelam de fobia diante de qualquer elemento dito “novo”. Mas não há registros de que a Bíblia aplica a palavra “mundano” nestes termos.

Vejamos agora o que a Bíblia define como mundanismo. Um texto básico para todas as ocasiões em que se fala no assunto é 1 João 2:15:
"Não amem o mundo nem o que nele há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele."
Quer saber como “vencer” debates dentro de um grupo religioso convencional? Use 1 João 2:15! Não importa a situação! Eis um texto coringa para qualquer discussão em que alguém se encontre sem argumentos.

Se não gosto da cor vermelha e quero que todos desgostem também, como proceder? Simples, basta disparar o velho “não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo”. Pronto! Afinal, qual cristão deseja ser visto sob o título de “mundano”? Tal palavra tem efeito paralisante sobre muitos, de modo que qualquer coisa que se rotule sob esse título torna-se automaticamente estigmatizada no meio cristão. Repare, automaticamente mesmo. Não há reflexão, estudo meticuloso da Bíblia. Nada disso! Para quê, não é mesmo? Afinal, se algo é “mundano”, não há mais o que se discutir, refletir ou estudar; basta eliminar.

Perceba como essa atitude preguiçosa e covarde atravanca o escrutínio bíblico no seio cristão. Quem é que deve definir se algo é mundano? É a Bíblia quem deve definir o que é mundano, não você, eu, seus pais, seus amigos, seu pastor, ancião, ou membro com maior tempo de igreja do que você. Graves problemas advêm quando os cristãos terceirizam a investigação bíblica.

Contudo, continue lendo 1 João 2:
"Pois tudo o que há no mundo — a cobiça [ou concupiscência] da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens [ou soberba da vida] — não provém do Pai, mas do mundo" (v. 16).
Veja que o próprio texto se preocupa em elencar as coisas as quais ele chama de “mundo”: “cobiça da carne”, “cobiça dos olhos” e “ostentação dos bens [ou soberba da vida]”.

Na frase “cobiça da carne”, o pensamento é o do prazer físico; enquanto na “cobiça dos olhos”, a ideia é prazer mental. Na expressão “soberba da vida”, a palavra “vida”, no original grego é bios, e não zoe (outro termo grego para vida). Este último significa o principio primordial de vida, enquanto o primeiro – que é usado no texto – tem também a acepção de posses, sustento, recursos. “Assim a ‘soberba da vida’ é o orgulho ostensivo da posse dos bens materiais” (Comentário Bíblico Moody).

E veja: soberba significa orgulho! Mas quantos sermões você já viu enfatizando que os crentes orgulhosos são, na verdade, mundanos? Poucos, provavelmente nenhum. Mas tá assim de sermão associando mundanismo a vestes e comportamentos que a Bíblia nunca, ou quase nunca associa.

Muitos, no afã de defender os princípios bíblicos, acabam por desmerecê-los, defendendo como bíblicos princípios que a Bíblia mesma nunca pretendeu defender.

A verdadeira separação do mundo é muito mais drástica e envolve bem mais renúncia do que vestir-se decentemente ou falar de tal maneira – algo que qualquer mundano de bom senso pode fazer. Agora, não me entenda mal, não estou dizendo que a Bíblia não se preocupa com o que vestimos ou comemos, mas que esse não é seu foco principal, muito menos o foco nas vezes que a Bíblia denomina algo de mundano. Portanto, também não deveria ser o nosso.

Você já parou para pensar no que é mais cômodo: simplesmente passar a vestir-se de maneira X, não ingerir coisas Y, ou deixar o orgulho e a presunção de lado? Conheço muitos descrentes que fazem tudo isso e muito mais. Isso não quer dizer que eles sejam mais crentes do que os crentes, apenas mais morais. A natureza humana tende a exaltar na Bíblia da cabeça dela aquilo que lhe é mais cômodo – isso não é novidade. Mas o pior é a hipocrisia dos que agem exatamente dessa forma, adequando a Bíblia ao seu comodismo, mas ainda acusam apenas os outros de fazê-lo.

Coloque água pura numa garrafa de vidro escuro, lacre-a, depois cole nela um rótulo contendo uma caveira com dois ossos cruzados. Dificilmente, alguém, ainda que morrendo de sede, irá se arriscará a beber o conteúdo de algo com um rótulo tão negativo. E, nesse caso, tal atitude é até bem racional. Contudo, não é tão racional quando alguém faz na sua frente o teste físico-químico no conteúdo da garrafa. O teste prova que é água potável, mas você ainda se recusa a bebê-la, e pior, tenta convencer a outros do mesmo. Tudo por causa de um rótulo de papel, colocado sabe-se lá quando, sabe-se lá por quem. O que importa é que o rótulo está lá há tempo e ele simplesmente não pode estar errado.

Esse é o problema de se seguir meras tradições. A questão não é que as tradições sejam intrinsecamente más. Não tenho nada contra tradições em si. Tenho, sim, contra a postura que muitos adotam diante delas, como se quem, por um motivo ou outro, não as adota estivesse, automaticamente, dando as mãos ao mundo. O problema é a atitude de tratá-las como se fossem mandamentos, e não como o que de fato são: tradições.

Cuidado! Se você é cristão, a sua regra de fé e prática é a Bíblia. Reflita constantemente se ela e somente ela tem tomado esse papel em sua vida. Se você não tiver uma crescente preocupação quanto a refletir se está mesmo fazendo a Bíblia a sua única norma de fé, esqueça, você simplesmente não é cristão.

A verdade quer lhe libertar (Jo 8:32). Você não precisa ficar preso à tradição ou interpretação bíblica alheia quando ela mesma quer penetrar em sua vida e renovar a sua mente, fazendo de você uma pessoa mais amiga de Cristo, uma pessoa mais amorosa, e não apenas mais moral.

Um princípio fundamental de estudo da Bíblia é estudar como a própria Bíblia usa os termos que nela aparecem, prestando atenção no contexto histórico, textual e em outras ocorrências da mesma palavra no restante da Bíblia. Levando em conta tudo isso, vamos estudar o termo “mundo” no livro de Tiago.

No original grego, a palavra traduzida em nossas Bíblias como “mundo” é kosmos. Ela ocorre 5 vezes na carta de Tiago. A primeira ocorrência se dá logo no primeiro capítulo:
"A religião que Deus, o nosso Pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo" (v. 27).
Nesse texto, o significado de “mundo” não nos é informado diretamente. Contudo, será que podemos inferir que “mundo” é usado como contraste à falta de caridade? Vejamos, o texto diz o que devemos fazer (ajudar os que mais precisam) e o que não devemos fazer (contaminar-nos com o mundo). Logo, é possível que, para Tiago, ser mundano tivesse relação com a falta de caridade.

Vejamos mais versos do contexto: no verso 5 do mesmo capítulo, Tiago começa exortando que aquele que precisa de sabedoria deve pedi-la a Deus, com fé, e não deve duvidar que Ele a concederá, pois o que não tem fé é descrito como uma pessoa “semelhante à onda do mar, levada e agitada pelo vento” (v. 6). Ou seja, alguém instável, sem segurança e capacidade de se firmar. Tiago classifica ainda o homem sem fé como “de ânimo dobre, inconstante em todos os seus caminhos” (v. 8). Para o autor, tal pessoa não deve sequer supor “que receberá coisa alguma do Senhor” (v. 6).

No versos 9-11, Tiago trata sobre a humildade e autoestima equilibrada, dizendo que o irmão de “condição humilde” deve gloriar-se, porque, a despeito de sua insignificância, é alguém digno; “e o rico”, apesar de sua riqueza, deve gloriar-se “na sua insignificância” (ARA). Aqui, o apóstolo introduz um assunto que se repetirá ao longo da epístola: humildade e igualdade entre os homens.

No verso 15, Tiago fala que nossa própria cobiça nos seduz ao pecado (lembra-se de João 2:16 identificando a cobiça como mundanismo?).

No verso 19, há o assunto da humildade novamente, pois, “todos [devem ser] prontos para ouvir, tardios para falar e tardios para irar-se”.

Os versos 22-25 exortam para que os crentes sejam “praticantes da palavra, e não somente ouvintes”. Do contrário, isso seria enganar-se. Em outras palavras, uma forma de hipocrisia (lembra-se de como Jesus condenou veementemente a hipocrisia? Mt 7:5; 23:28; Mc 12:15; Lc 12:1; 13:15).

O verso 26 diz: “Se alguém se considera religioso, mas não refreia a sua língua, engana-se a si mesmo. Sua religião não tem valor algum!”.

É nesse contexto todo que surge o verso 27 com a ordenança de não se contaminar com o mundo. Vimos que, até aí, Tiago reprovou: a falta de fé, de caridade, de humildade, a cobiça, a hipocrisia e a falta de controle da língua.

Lembrando que originalmente a Bíblia não era dividida em capítulos, saiamos do capítulo 1 e adentremos o capítulo 2 tendo em vista que se trata de um texto contínuo.

A partir do primeiro verso do capítulo 2, é dito que não devemos fazer acepção de pessoas, dando preferência aos ricos e menosprezando os pobres. Tiago diz que os que assim procedem são “tomados de perversos pensamentos” (v. 4, ARA). Aí, mais uma vez, temos a palavra “mundo” quando é dito que “Deus [escolheu] os que são pobres aos olhos do mundo para serem ricos em fé e herdarem o Reino que Ele prometeu aos que O amam” (v. 5).

Nos versos 8-11, Tiago chama atenção daqueles que acham que guardam a lei, lembrando a eles que a mesma lei que diz para não adulterar também ensina que não se deve fazer acepção de pessoas. Logo, é tolice e dois pesos e duas medidas, achar que se pode ficar escolhendo o que mais lhe agrada na lei para guardar – pois “quem obedece a toda a Lei, mas tropeça em apenas um ponto, torna-se culpado de quebrá-la inteiramente” (v. 10).

No verso 13, há uma severa advertência aos sem misericórdia.

No restante do capítulo 2, Tiago fala sobre a inutilidade da fé sem as obras, até o capítulo 3, onde, dos versos 2-10, nos é dito que devemos saber refrear a língua, pois, “a língua é um mundo [3ª ocorrência da palavra em Tiago] de iniquidade”.

Em Tiago 3.13-17, é exortada a mansidão, a pureza, paciência, misericórdia, imparcialidade, ausência de fingimento e paz; enquanto a inveja, a amargura, as divisões e a mentira são condenadas.

Entremos agora no capítulo 4, onde se continua falando contra desunião e contendas, até o verso 4, onde é dito:
"Infiéis, não compreendeis que a amizade do mundo é inimiga de Deus? Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus" (Tg 4:4, ARA).
Esse é um texto muito tirado do contexto. Aqui, novamente, as pessoas tendem a imaginar como “mundo” tudo aquilo que elas não gostam ou foram adestradas a dizer que não gostam se não quiserem ser consideradas mundanas. Inclui-se aí moda, diversão e outros comportamentos que muitos crentes crescem escutando que são nocivos. Porém, como estudantes honestos da Bíblia, devemos resistir à tentação de atribuir aos termos e expressões bíblicas aquilo que queremos ou que sempre nos disseram que é assim. Um dos maiores erros que podemos cometer é ler a Bíblia conforme as lentes de nosso tempo, cultura, educação e sociedade. A Bíblia é sua própria intérprete e deve falar por si só. Devemos recorrer a ela mesma para saber a significação dos termos que ela emprega. Ao quê Tiago se referiu ao falar em “amizade do mundo”? Recorramos ao próprio autor e leiamos com atenção o restante da passagem:
"Ou vocês acham que é sem razão que a Escritura diz que o Espírito que Ele fez habitar em nós tem fortes ciúmes? Mas Ele nos concede graça maior. Por isso diz a Escritura: 'Deus se opõe aos orgulhosos, mas concede graça aos humildes'. Portanto, submetam-se a Deus. Resistam ao Diabo, e ele fugirá de vocês. Aproximem-se de Deus, e Ele Se aproximará de vocês! Pecadores, limpem as mãos, e vocês, que têm a mente dividida, purifiquem o coração. Entristeçam-se, lamentem-se e chorem. Troquem o riso por lamento e a alegria por tristeza. Humilhem-se diante do Senhor, e Ele os exaltará. Irmãos, não falem mal uns dos outros. Quem fala contra o seu irmão ou julga o seu irmão, fala contra a Lei e a julga. Quando você julga a Lei, não a está cumprindo, mas está se colocando como juiz. Há apenas um Legislador e Juiz, Aquele que pode salvar e destruir. Mas quem é você para julgar o seu próximo? Ouçam agora, vocês que dizem: 'Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro'. Vocês nem sabem o que lhes acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa. Ao invés disso, deveriam dizer: 'Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo'. Agora, porém, vocês se vangloriam das suas pretensões. Toda vanglória como essa é maligna. Pensem nisto, pois: Quem sabe que deve fazer o bem e não o faz, comete pecado" (Tg 4:5-17).
Assim, temos que mundano aí significa alguém sem misericórdia, sem mansidão, cheio de ira e contendas, que não refreia a língua, inconstante, condenador, soberbo (lembra-se que João 2:16 também identificou a soberba como mundanismo?).

Podemos, então, concluir que o se costuma chamar de mundanismo, não é exatamente o mesmo que a Bíblia chama. Quantos não são maledicentes em relação ao suposto mundanismo alheio, esquecendo que a própria maledicência é, como vimos, um sinal de mundanismo? Quantos não fazem intrigas porque supostamente “o mundo está entrando na igreja”, esquecendo que as intrigas são mundanas?

Satanás realmente conseguiu cegar o entendimento não só dos incrédulos, mas também dos próprios cristãos, fazendo com que estes deem importância a uma série de coisas que muitas vezes a Bíblia não dá e esqueçam o essencial: “a justiça, a misericórdia e a fé” (Mt 23:23). Não permitamos que isso aconteça conosco. 

Vanedja Cândido (via Missão Pós Moderna)

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