segunda-feira, 27 de abril de 2020

Verdade nua e crua

A Verdade saindo do poço armada do seu chicote para castigar a humanidade (no original: La Vérité sortant du puits armée de son martinet pour châtier l'humanité), conforme ilustrado acima, é um quadro realizado pelo artista francês Jean-Léon Gérôme em 1896. A pintura pertence às coleções do museu Anne-de-Beaujeu, em Moulins, na França, e está ligada ao texto abaixo que é atribuído a uma parábola judaica sobre a Verdade e a Mentira. Por certo reproduz muitas das situações que diariamente enfrentamos em nosso cotidiano, em que os cenários que se nos apresentam nem sempre são aquilo que aparentam ser. Ei-la, pois!

Certa vez, a Mentira e a Verdade se encontraram.

A Mentira, dirigindo-se à Verdade, disse-lhe:

– “Bom dia, dona Verdade!”

Zelosa de seu caráter, a Verdade, ouvindo tal saudação, foi conferir se realmente era um bom dia. Olhou para o alto, não havia nuvens de chuva; os pássaros cantavam; não havia cheiro de fumaça na mata; tudo parecia perfeito.

Tendo se assegurado de que realmente era um bom dia, respondeu:

– “Bom dia, dona Mentira!”

– “Está muito calor hoje, não é mesmo”, disse a Mentira.

Realmente o dia estava quente demais. Desse modo, vendo que a mentira estava sendo sincera, começou a relaxar, a “baixar a guarda”. Por qual razão haveria de desconfiar, se a Mentira parecia tão cordial e “verdadeira”?

Diante do calor insuportável, a Mentira, num gesto de aparente amizade, convidou a Verdade para juntas banharem-se no rio.

Como não havia mais ninguém por perto, a Mentira despiu-se de suas vestes, pulou na água e, dirigindo-se à Verdade, disse-lhe, insistentemente:

– “Vem, dona Verdade, a água está uma delícia, simplesmente maravilhosa.”

O convite parecia irrecusável. Assim sendo, dona Verdade, sem duvidar da Mentira, despiu-se de suas vestes, pulou na água e deu um bom mergulho.

Ao ver que a Verdade havia saltado na água, rapidamente a Mentira pulou para fora, em segundos vestiu-se com as roupas da Verdade que estavam à margem e se mandou sorrateira.

Tendo suas roupas furtadas, a Verdade saiu da água e, por sua vez – ciosa de sua reputação -, recusou-se a vestir-se com as roupas da Mentira, deixadas para trás.

Certa de sua pureza e inocência, nada tendo do que se envergonhar e não tendo outra opção que lhe fosse coerente, saiu nua a caminhar na rua.

Desde então, aos olhos das pessoas, ficou mais fácil aceitar a Mentira vestida com as roupas da Verdade do que aceitar a Verdade nua e crua.

Nietzsche escreveu: “(...) o homem também quer apenas a verdade. Ele quer as consequências agradáveis da verdade, que conservam a vida; (...) frente às verdades possivelmente prejudiciais e destruidoras ele se indispõe com hostilidade, inclusive.” Parece absurdo. Entretanto a observação nos faz concordar com o filósofo. A verdade preferida é a que supre a necessidade emocional e/ou espiritual. A verdade que fere, magoa e entristece não é essencial e, inclusive é evitada (“o que os olhos não vêm o coração não sente”, “fulano não está preparado para ouvir a verdade”, “a verdade dói”). Isso é bem visível nas relações diárias.

Suprimir a verdade acaba gerando a superficialidade. Comentários superficiais, relações humanas superficiais, religião superficial. Falar o que é preciso ser dito é fundamental para estabelecer uma relação de confiança. O que se vê, no entanto, são relações baseadas em meias-verdades. Diz-se o agradável, suprime-se o desagradável. Assim é que colocamos nossas ‘máscaras’. Na Bíblia, no entanto, a verdade é dita doa quem doer. Por mais politicamente incorreto que possa ser, dizer a verdade é a única forma de libertação do ser humano.

Jesus não apenas dizia a verdade (de maneiras distintas – ora exaltado com um chicote na mão e chamando certas pessoas de ladrões, ora conversando tranquilamente de madrugada com um rico medroso), Ele vivia a verdade, Ele é a verdade. “Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (João 14:6). “Conhecereis a Verdade e ela vos libertará” (João 8:32).

Uma realidade é que ao passarmos a viver com e na Verdade, nossas máscaras tendem a cair, a superficialidade dos nossos relacionamentos tendem a sumir, não porque saímos a apontar erros e defeitos verdadeiros nos outros, mas porque a Verdade falará por nós e em nós.

Dê um fim na superficialidade dos seus relacionamentos e nas meias-verdades que conduzem sua vida. Busque a Verdade, ainda que doa no início. 

"Quantas vezes o orgulho, a paixão, o ressentimento pessoal, dão cores à impressão transmitida! Um olhar, uma palavra, a própria entonação da voz, podem estar cheios de mentira. Mesmo os fatos podem ser declarados de modo a dar uma falsa impressão. E o que passa da verdade é de procedência maligna. Tudo quanto os cristãos fazem deve ser tão transparente como a luz do Sol. A verdade é de Deus; o engano, em todas as suas múltiplas formas, é de Satanás; e quem quer que, de alguma maneira, se desvia da reta linha da verdade, está-se entregando ao poder do maligno. Não é, todavia, coisa leve ou fácil falar a exata verdade; e quantas vezes opiniões preconcebidas, peculiares disposições mentais, imperfeito conhecimento, erros de juízo, impedem uma justa compreensão das questões com que temos de lidar! Não podemos falar a verdade, a menos que nossa mente seja continuamente dirigida por Aquele que é a verdade" (Ellen G. White - O Maior Discurso de Cristo, p. 68).

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