quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Ellen White era racista?

Tem sido compartilhada nas redes sociais mais uma das muitas fake news que circulam por aí. Pior, representa uma verdadeira difamação tremendamente caluniosa de uma escritora muito importante e admirada, a co-fundadora da Igreja Adventista do Sétimo Dia Ellen G. White (1827-1915). O texto falsamente atribuído a Ellen diz: “No paraíso não entrarão pessoas de pele negra, porque a pele negra representa o pecado. Todos serão brancos como senhor Jesus.” E a suposta fonte: “Ellen White – profetisa e fundadora [sic] da Igreja Adventista do Sétimo Dia (livro O Arauto do Evangelho, 1º de março de 1901).” Quem explica o mal-entendido é o pastor e editor da Casa Publicadora Brasileira Fernando Dias:
O trecho controverso é creditado a um artigo publicado na revista The Gospel Herald, de março de 1901. Ellen White foi uma grande incentivadora da evangelização das populações negras dos Estados Unidos. Em 21 de março de 1891, ela fez um longo apelo a 30 líderes adventistas do sétimo dia para que trabalho missionário fosse feito entre os afro-americanos. Em resposta a esse apelo, seu próprio filho James Edson White começou atividades assistenciais, educativas e religiosas entre negros em Vicksburg, Mississipi, em janeiro de 1895. Esse texto se trata da publicação de um sermão feito por Ellen Gould White no sábado, dia 16 de março de 1901, numa igreja composta de pessoas negras, fundada por seu filho em Vicksburg. O texto original, intitulado “Trust in God” [Confiança em Deus], pode ser lido na íntegra, em inglês, aqui.
Em sua fala, Ellen G. White se referiu ao Céu e ao amor ao próximo como característica dos que estão se preparando para habitá-lo. Em determinado trecho, ela escreveu: “Vocês são filhos de Deus. Ele adotou vocês e deseja que desenvolvam aqui um caráter que lhes garantirá entrada na família celestial. Ao se lembrarem disso, vocês deverão suportar as provações que encontrarem aqui. No Céu não haverá segregação racial, pois todos serão brancos como o próprio Cristo. Agradecemos a Deus por podermos ser membros da família real” (“Trust in God”, The Gospel Herald, março de 1901)
Esse é o trecho mais próximo ao da postagem polêmica. Não há, no texto citado, ou em outro escrito de Ellen White, qualquer coisa como “no paraíso não estrarão pessoas de pele negra, porque a pele negra representa o pecado”. Essa declaração é espúria e não combina com a atitude de Ellen White, documentada em seus escritos, em seus diários, em suas biografias e no depoimento escrito de dezenas de pessoas que conviveram com ela.
O próprio contexto da declaração afasta qualquer intenção racista da parte de Ellen White. Ela falava, quando disse isso em 1901, para uma plateia de cristãos negros no Sul dos Estados Unidos. Essa região vivera a realidade da escravidão de afrodescendentes até poucas décadas antes, e experimentaria a segregação racial ainda por muitas décadas. O tema dominante do discurso é o amor a todas as pessoas como característica dos que irão ao Céu. Ela anuncia o Céu como um lugar livre de segregação de pessoas por conta da cor da pele. Ao dizer que, no Céu, os salvos “serão brancos como o próprio Cristo”, ela muito possivelmente se referia ao que a Bíblia informa sobre a aparência que Cristo assumiu após Sua ascensão ao Céu. Ele é descrito como tendo rosto e cabelos “brancos como a alva lã, como neve” (Apocalipse 1:14).
A Bíblia ensina que os salvos terão no Céu um corpo celestial e glorioso. Esse corpo será semelhante ao corpo que o próprio Jesus passou a ter no Céu (1 Coríntios 15:35-58). A descrição do Cristo glorificado em Apocalipse 1:13-20 se refere ao Seu aspecto radiante, resplandecente e luminoso, não à cor da pele. Ou seja, todos os remidos, independentemente de suas características físicas, serão transformados e terão um aspecto semelhante ao de Jesus Cristo em Sua glória.
Convém relembrar que Ellen White não assumiu o título de profetisa, conforme ela explica em Mensagens Escolhidas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1985), v. 1, p. 32. Também ela não é a fundadora da Igreja Adventista do Sétimo Dia, mas fez parte de um grupo de diversas pessoas que estabeleceram essa denominação cristã entre 1860 e 1863. (Outra Leitura)
Nota: Está bem claro, portanto, que Ellen White não via distinção entre negros e brancos, mas os considerava como igualmente amados por Deus. 

Devemos ter em mente o tempo em que viveu Ellen White: durante a maior crise civil que ocorreu nos Estados Unidos no século XIX: a Guerra de Secessão. Naquele momento difícil, a situação exigiu vários pronunciamentos por escrito da parte de Ellen White, a fim de que pudesse orientar os eventos da melhor forma possível naquele contexto histórico-social. Seus conselhos jamais serão entendidos enquanto os leitores do século XXI não fizerem um mergulho sociocultural naquela época delicada. Afastadas de seu contexto histórico e social, algumas declarações de Ellen White podem ser consideradas racistas. Existem inúmeros textos dela que ensinam justamente o contrário. Vejamos apenas algumas declarações:

“Os crentes, sejam brancos ou pretos, são ramos da Videira Verdadeira. Não deve haver céu especial para o homem branco e outro céu para o homem negro. Todos devemos ser salvos pela mesma graça, todos para finalmente entrar no mesmo céu" (The Review and Herald, 21 de janeiro de 1896).

“Paredes de separação foram construídas entre os brancos e os negros. Esses muros de preconceito caem sobre si mesmos, assim como os muros de Jericó, quando os cristãos obedecem à palavra de Deus, que lhes impõe supremo amor ao seu criador e amor imparcial aos seus vizinhos. Pelo amor de Deus, vamos fazer algo agora” (The Review and Herald, 17 de dezembro de 1895).

“Quando for derramado o Espírito Santo, haverá um triunfo da humanidade sobre o preconceito em buscar a salvação de todos os seres humanos. Deus dominará as mentes. Os corações humanos amarão como Cristo amou. E a barreira da cor será considerada por muitos de maneira bem diferente daquela em que é considerada agora. Amar como Cristo ama eleva a mente a uma atmosfera pura, celestial e altruísta. Quem se acha intimamente ligado a Cristo é elevado acima do preconceito de cor ou casta. Sua fé apodera-se das realidades eternas. O divino Autor da verdade deve ser enaltecido. Nosso coração deve encher-se da fé que atua por amor e purifica o coração. A obra do bom samaritano é o exemplo que devemos seguir” (Testemunhos para a Igreja, vol. 9, p. 209).

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