sexta-feira, 9 de outubro de 2020

CULTURA DO ESTUPRO

Há, indiscutivelmente, uma cultura que favorece o estupro. Os números não mentem. 59% dos brasileiros concordam que existe “mulher para casar” e “mulher para a cama”. 58% defendem que se as mulheres soubessem se comportar melhor, haveria menos estupros. Muitos ainda insistem na ideia de que a maioria das mulheres tenham fantasia de serem estupradas, e que, por isso, é difícil saber se uma mulher que diz “não”, realmente não quer sexo. Para esses trogloditas, ao dizer “não”, a mulher estaria apenas fazendo “doce”. Mesmo diante dos tribunais, a vítima tem que provar que não queria sexo, e para isso, não bastaria ter dito “não”. Os peritos buscam indícios de resistência e marcas de violência que provem que o sexo não foi consensual. Ainda que estudos tenham provado que uma das reações mais comuns à violência sexual é a vítima ficar congelada, esperando que tudo acabe logo. 

O primeiro passo que precisa ser dado para se combater um mal é admiti-lo. Deixar de fazê-lo nos torna cúmplices. Mas o que esperar de um país onde um deputado diz a uma colega de parlamento que só não a estupraria por ela não merecer? Em vez de perder o mandato, ele se elege presidente com forte apoio das igrejas e um discurso pra lá de moralista. O que esperar de um país onde uma bancada parlamentar religiosa resolve criar um projeto de lei para boicotar a lei que garante o atendimento gratuito na rede pública de saúde para vítimas de estupro? O que esperar de um país onde a plateia de um programa de TV aplaude ensandecida a um ator que acaba de confessar haver estuprado uma mulher depois de deixá-la inconsciente? Este mesmo ator teve a petulância de encontrar-se com o ministro da educação para dar-lhe sugestões para a gestão de sua pasta. 

Daí, alguns patriotas de ocasião saem vociferando que não há uma cultura de estupro no país! Diga isso para cada mulher que é estuprada a cada 11 minutos no Brasil, de acordo com os dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Diga isso para as 47.646 vítimas somente no ano passado. Será que tais números seriam suficientemente convincentes para que admitamos que haja uma cultura do estupro devidamente instalada na sociedade brasileira?

Primeiro, vamos entender a origem do termo “cultura do estupro”.

Este termo foi cunhado na década de 70, quando feministas americanas se empenhavam numa campanha de conscientização da sociedade acerca da realidade do estupro. Segundo Alexandra Rutherford, doutora em ciência e psicologia, e especialista em feminismo e gênero, antes que o movimento feminista trouxesse à baila este assunto, pouco se falava sobre isso. E pior: acreditava-se que tanto o estupro, quanto a violência sexual doméstica e o incesto raramente aconteciam.

O número crescente de casos de estupros numa sociedade, bem como a típica reação de parte da população, evidencia a existência de uma cultura de estupro. Não significa que o estupro seja visto como algo normal, que deva ser praticado e incentivado, mas que a cultura produz um solo fértil para que ele ocorra com preocupante frequência. 

Bem da verdade, a sociedade enxerga com certa condescendência o estupro, mesmo dizendo-se horrorizada. Esta condescendência se revela cada vez que se tenta culpabilizar a vítima e isentar o perpetrador como se isso fosse inerente à sua própria masculinidade. 

Pais criam seus filhos meninos para serem predadores, verdadeiros garanhões. Mesmo que não admitam, mas sentem-se orgulhosos de saber que o filho está “passando o rodo geral". A mulher é vista como um objeto a ser conquistado, uma égua selvagem a ser dominada e amansada. Obviamente que isso não é dito abertamente, mas nas entrelinhas, na piadinhas, nas frases de efeito do tipo “prendam suas cabras que meu bode está solto.”

A mesma cultura que forja a figura do “macho alfa”, produz a ambiência propícia ao estupro. Meninos crescem ouvindo que quando a mulher diz não, na verdade está querendo dizer sim. O “não” é apenas um charminho. Ela quer se pega à força. Ser jogada contra a parede. Forçada. Mulher não gosta de homem molenga. Mostra pra ela quem é que manda! Toda mulher tem a fantasia de ser estuprada. Mulher gosta mesmo é de apanhar... E por aí vai... Alguém ainda ousa dizer que não há uma cultura de estupro?

Tentar embebedar a menina para depois se aproveitar dela não é estupro? É o quê, então? Mas tudo isso é visto como algo perfeitamente natural. Nada demais. Coisa de adolescente aloprado. 

Muitas mulheres já até se convenceram de que nasceram para ser presas fáceis nas mãos destes cafajestes. Há uma glamourização da cafajestice. Não que todo cafajeste seja um estuprador, mas certamente é um forte candidato, visto ser desprovido de qualquer escrúpulo ou freio moral. 

Se por um lado, busca-se naturalizar a postura do homem predador, por outro, busca-se culpabilizar a vítima. Alguma coisa ela fez para merecer isso!

No caso da jovem de apenas 16 anos estuprada por 33 homens, as redes sociais ficaram abarrotadas de acusações que tentavam execrá-la e descreditar seu depoimento. Fotos foram postadas em que ela supostamente aparece com fuzis. Eu disse “supostamente”, porque foi comprovado que algumas destas fotos não eram dela. Surgiram depoimentos de supostas amigas que vazaram pelo whatsapp afirmando que ela estava acostumada a transar com vários homens de uma vez. De uma hora para outra, ela deixou de ser a vítima para ser a vagabunda, a descarada, que procurou por aquilo, que consome drogas pesadas, que vive em bailes funk, etc. Ainda que todas estas acusações fossem verdadeiras, não justificam o crime cometido. Ela poderia ser até uma prostituta que já transara com 50 de uma vez. Se ela disse não, tem que ser respeitada. E mais: mesmo que houvesse sido consensual, ela é menor de idade, e pelo que consta, estava dopada. Aliás, não foi o primeiro estupro que sofreu. Foi fartamente noticiado que ela é mãe de uma criança de três aninhos. Logo, foi mãe aos treze e possivelmente tenha se engravidado aos doze. O nome disso é estupro de vulnerável! Sexo com menores, sendo ou não consensual, segue sendo estupro.

Porém, nossa cultura está tão impregnada de machismo, que nem percebemos que ao aderir a este discurso, estamos reforçando-o, adubando assim o solo onde a cultura do estupro floresce. Não importa o tamanho do short que usava, nem os lugares que frequentava, ou as drogas que usava. Nada disso diminui a gravidade do crime.

Houve quem ponderasse sobre o fato de ela não haver procurado a polícia antes que o vídeo viralizasse. Ora, não sejamos cínicos. A razão é a mesma pela qual a maioria das vítimas prefere silenciar-se. Elas sabem do risco que correm de serem culpabilizadas. Por isso, a maioria sofre calada, sendo estuprada por anos a fio. E nem precisa de um ambiente promíscuo como um baile funk proibidão. A maioria é vítima dentre de sua própria casa, por membros da própria família. Outras, a caminho do trabalho ou durante o expediente. Há até quem tenha sido vítima em ambientes improváveis como igrejas. 

Como combater a cultura do estupro? Não basta garantir a punição severa dos criminosos (castração química, por exemplo). Precisamos recorrer a medidas preventivas. E isso passa pela família e pela escola. E não será reprimindo ainda mais a mulher, tornando-a duplamente vítima. Aumentar o comprimento da saia, diminuir o tamanho do decote, ou coisa parecida, são medidas paliativas que só reforçam a cultura do estupro. É como dizer que o estuprador tem razão. Que qualquer mulher vestida de maneira mais atraente está pedindo para ser estuprada. Nada mais ridículo que isso, não?

Então, o que fazer? Ensinar os meninos a respeitar a mulher desde cedo. Prepará-los para ser homens de verdade, e não sex machines. Realçar neles o sentimento de empatia. Ensinar-lhes, por exemplo, que homem também chora. Que isso não é coisa de mulherzinha. Que a mulher não é um pedaço de carne pronto para ser devorado. Ela tem sentimentos. 

Se o menino não tem contato com seus próprios sentimentos, ele não respeitará o sentimento de outros, nem mesmo de uma mulher. 

Há que se tratar o problema em suas raízes e para isso, a educação é imprescindível. Tanto no lar, quanto na escola, as crianças precisam aprender a respeitar tanto o semelhante, quanto o diferente. Daí a importância da chamada “educação para a diversidade”, tão combatida por setores religiosos fundamentalistas, por acharem que se trate de apologia velada à homossexualidade.

Algo precisa ficar bem claro: estupro não tem nada a ver com sexo ou desejo sexual. Esta vergonhosa prática tem a ver com uma relação de poder, na qual os homens, através de um processo de intimidação, mantêm as mulheres em um estado de medo permanente. 

Dizem que o maior receio de um homem ao ser preso é ser estuprado por seus colegas de cela. Quem dera soubessem que este é o maior receio da mulher o tempo inteiro. Até mesmo dentro de sua própria casa. 

Como pai de duas filhas, desejo deixar-lhes um mundo menos hostil perigoso do que aquele no qual viveram suas avós. E que meu único filho homem seja o tipo de homem que toda sogra sonha ter como genro. 

Diga não à cultura do estupro, recusando-se a ecoar discursos machistas que objetificam a mulher. Suas filhas e netas agradecerão.


Nota do blog: Para denunciar casos de violência contra a mulher, ligue para o número 180. Este serviço público e gratuito é uma Central de Atendimento à mulher em situação vulnerável e o seu registro é realizada de forma anônima/confidencial. Caso você esteja em outro país, consulte o número de telefone para denúncias clicando aqui: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/ligue-180. E é possível realizar a denúncia também pelo 190 – Polícia Militar, serviço público e gratuito. 

E para você que ainda não conhece sobre o assunto, deixamos como dica fundamental o site do Instituto Maria da Penha, organização sem fins lucrativos (ONG) lançada em 2009, que tem como um dos propósitos elevar a qualidade de vida física, emocional e intelectual das mulheres. Para conhecer, é só clicar aqui: https://www.institutomariadapenha.org.br/quem-somos.html.

Conheça também o projeto Quebrando o Silêncio, promovido desde 2002 pela Igreja Adventista do Sétimo Dia em oito países da América do Sul com o objetivo de prevenir a violência doméstica.

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