Sodoma nada tem a ver com homossexualidade. A afirmação soará óbvia para alguns, mas um contrassenso para muitos – afinal, não é o que têm dito os líderes religiosos, que dão à homossexualidade a resposta de sempre? Nesta confusão anacrônica que importa ódios modernos a textos antigos, pouco importa se veio antes o ovo ou a galinha – importa que vieram de Deus, entidade onipotente que odeia todo o galinheiro, justificando assim a exclusão do diferente.
Felizmente, a solução para tais casos se mostra muito simples; basta ler o texto original, respeitando-o enquanto obra literária dotada de convenções e discursos singulares e alheia ao pensamento ocidental. Falamos de textos escritos originalmente em hebraico, numa sociedade oriental a cuja cultura temos acesso restrito e com lacunas, e que só podem ser interpretados de forma coerente de acordo com seu próprio contexto literário e cultural. Antes de ler atentamente à narrativa de Sodoma (Gn 18-19) cabe, então, estabelecer rapidamente algumas bases.
Felizmente, a solução para tais casos se mostra muito simples; basta ler o texto original, respeitando-o enquanto obra literária dotada de convenções e discursos singulares e alheia ao pensamento ocidental. Falamos de textos escritos originalmente em hebraico, numa sociedade oriental a cuja cultura temos acesso restrito e com lacunas, e que só podem ser interpretados de forma coerente de acordo com seu próprio contexto literário e cultural. Antes de ler atentamente à narrativa de Sodoma (Gn 18-19) cabe, então, estabelecer rapidamente algumas bases.
As palavras-guia
O texto bíblico é extremamente repetitivo. Muitas explicações foram dadas para este caráter primitivo da literatura hebraica – sua função de facilitar a memorização, suas origens na transmissão oral, seu papel como liturgia judaica – mas muito tempo se passou até que a academia ocidental percebesse e formalizasse o que já era há muito sabido pela tradição milenar rabínica: esta repetitividade atua de acordo com princípios estéticos e convenções literárias próprias, encontrando seus próprios mecanismos de transmissão de sentido ao leitor. Primitiva ou não, adaptou-se ao tempo-espaço com uma destreza que – diriam alguns – só a inspiração divina, ou das musas, pode trazer.
Entre suas convenções literárias destaca-se a da palavra-guia, formalizada por Martin Buber, que constata algo simples: repetições e variações de uma mesma palavra, em diferentes contextos, formam uma teia de significados que estabelecem a ideologia de seu narrador de forma implícita, transmitindo lições éticas e morais sem que a narrativa se torne uma fábula ou parábola. Estas palavras-guia são peças vitais em narrativas tão lacunares como as bíblicas, e permitem compreender sobre o que fala uma história que não diz a que veio. Na narrativa em questão, duas palavras-guia devem ser analisadas a fundo: Conhecimento e Justiça.
O juiz de toda a terra
Nosso ponto de partida está em Gênesis 18, quando Deus, a caminho de Sodoma, decide ficar para trás e discutir um assunto com seu servo Abraão, enviando à frente seus dois mensageiros. A divindade o faz após constatar que não deve ocultar seus planos de Abraão, visto que o conhece e sabe que este educará sua casa no caminho da justiça (vv. 17-19). Conhecer, no pensamento hebraico, significa muito mais que raciocínios ou saberes abstratos, mas um relacionamento íntimo que penetra e experimenta a essência do outro – não surpreende então que, para o hebreu, o homem “conhece” sua esposa antes de engravidá-la. Deus relaciona-se intimamente com seu servo Abraão, que compartilha seu anseio por justiça, e por isso resolve lhe expor sua divina e desagradável tarefa: verificar pessoalmente se procede o clamor que tem subido aos céus de Sodoma (vv. 20-21). Caso procedam os rumores (de opressão, não de orgias), destruirá a cidade; caso contrário, conhecerá. Antes de outro debate metafísico estéril a respeito da onisciência divina, destaca-se aqui que Deus quer se misturar aos supostamente perversos sodomitas e conhecê-los, relacionar-se com eles; não pronunciará sua sentença até sentir na pele o pecado que os condena.
Mas Abraão não se contenta em saber dos planos divinos. Ele anseia de tal forma por justiça que questiona a figura divina: eliminará o Senhor pessoas corretas e perversas numa só tacada? Não fará justiça o juiz de toda a terra (vv. 23-25)? Numa negociação inaudita entre senhor e súdito (vv. 26-33), Abraão demonstra ter apreendido muito bem a justiça de seu mestre, e ambos entram em acordo: caso haja ao menos 10 pessoas corretas na cidade, Deus não a destruirá. A tal justiça divina não equilibra recompensa e punição, mas deixa centenas impunes em nome da bondade de uns gatos pingados. Moloch, divindade amonita, diria que esse deus é muito mole; já Marduk, patrono de Babilônia, diria que a seus filhos faltam boas chineladas.
O texto bíblico é extremamente repetitivo. Muitas explicações foram dadas para este caráter primitivo da literatura hebraica – sua função de facilitar a memorização, suas origens na transmissão oral, seu papel como liturgia judaica – mas muito tempo se passou até que a academia ocidental percebesse e formalizasse o que já era há muito sabido pela tradição milenar rabínica: esta repetitividade atua de acordo com princípios estéticos e convenções literárias próprias, encontrando seus próprios mecanismos de transmissão de sentido ao leitor. Primitiva ou não, adaptou-se ao tempo-espaço com uma destreza que – diriam alguns – só a inspiração divina, ou das musas, pode trazer.
Entre suas convenções literárias destaca-se a da palavra-guia, formalizada por Martin Buber, que constata algo simples: repetições e variações de uma mesma palavra, em diferentes contextos, formam uma teia de significados que estabelecem a ideologia de seu narrador de forma implícita, transmitindo lições éticas e morais sem que a narrativa se torne uma fábula ou parábola. Estas palavras-guia são peças vitais em narrativas tão lacunares como as bíblicas, e permitem compreender sobre o que fala uma história que não diz a que veio. Na narrativa em questão, duas palavras-guia devem ser analisadas a fundo: Conhecimento e Justiça.
O juiz de toda a terra
Nosso ponto de partida está em Gênesis 18, quando Deus, a caminho de Sodoma, decide ficar para trás e discutir um assunto com seu servo Abraão, enviando à frente seus dois mensageiros. A divindade o faz após constatar que não deve ocultar seus planos de Abraão, visto que o conhece e sabe que este educará sua casa no caminho da justiça (vv. 17-19). Conhecer, no pensamento hebraico, significa muito mais que raciocínios ou saberes abstratos, mas um relacionamento íntimo que penetra e experimenta a essência do outro – não surpreende então que, para o hebreu, o homem “conhece” sua esposa antes de engravidá-la. Deus relaciona-se intimamente com seu servo Abraão, que compartilha seu anseio por justiça, e por isso resolve lhe expor sua divina e desagradável tarefa: verificar pessoalmente se procede o clamor que tem subido aos céus de Sodoma (vv. 20-21). Caso procedam os rumores (de opressão, não de orgias), destruirá a cidade; caso contrário, conhecerá. Antes de outro debate metafísico estéril a respeito da onisciência divina, destaca-se aqui que Deus quer se misturar aos supostamente perversos sodomitas e conhecê-los, relacionar-se com eles; não pronunciará sua sentença até sentir na pele o pecado que os condena.
Mas Abraão não se contenta em saber dos planos divinos. Ele anseia de tal forma por justiça que questiona a figura divina: eliminará o Senhor pessoas corretas e perversas numa só tacada? Não fará justiça o juiz de toda a terra (vv. 23-25)? Numa negociação inaudita entre senhor e súdito (vv. 26-33), Abraão demonstra ter apreendido muito bem a justiça de seu mestre, e ambos entram em acordo: caso haja ao menos 10 pessoas corretas na cidade, Deus não a destruirá. A tal justiça divina não equilibra recompensa e punição, mas deixa centenas impunes em nome da bondade de uns gatos pingados. Moloch, divindade amonita, diria que esse deus é muito mole; já Marduk, patrono de Babilônia, diria que a seus filhos faltam boas chineladas.
A Ilha dos Ciclopes
Enquanto Deus fica para trás negociando os termos do juízo, seus emissários chegam em Sodoma ao anoitecer (Gn 19:1). Nos portões da cidade está Ló, sobrinho de Abraão que se mudara para Sodoma há algum tempo. Sua presença nos portões não é mero detalhe. Os portões da cidade no Antigo Oriente Médio eram locais de deliberação, onde decisões públicas eram tomadas, negócios eram fechados e julgamentos realizados (Gn 23, Rt 4, 2 Sm 15:1-6). Estaria Ló levando justiça à cidade? Não se sabe. Mas ele teme pela segurança dos dois homens, que pretendiam passar a noite na praça central, e os leva apressadamente para dentro de casa (vv. 2-3).
Os temores de Ló são logo justificados, pois os sodomitas cercam a casa; não um grupo pequeno, mas todo o povo da cidade (v. 4). Jovens e velhos se unem com um só propósito: conhecer os forasteiros (v. 5). E não era este o propósito de Deus? Ambos querem conhecer e se relacionar um com o outro, então basta saírem os mensageiros. Mas aqui começa a mágica da palavra-guia: diferentes personagens têm diferentes concepções do que algo significa. E, para os sodomitas, conhecer não é troca. É invasão violenta e violação penetrante, como fica claro na contra-oferta de Ló a seus conterrâneos: suas duas filhas que não “conheceram” homem nenhum (vv. 6-8). O povo busca estuprar coletivamente os estrangeiros.
Um parêntese: o que está em jogo não é a sexualidade de Sodoma. Seria fantasioso assumir que uma cidade inteira é composta somente de homossexuais, e da maior canalhice equalizar qualquer orientação sexual ao crime hediondo de um estupro coletivo. O que determina seu comportamento não é sua orientação sexual, mas seu desejo de dominação. Estrangeiros não são bem-vindos, e devem ser subjugados de forma que entendam como funcionam as coisas em suas terras. Numa época em que a hospitalidade é princípio moral dos mais sagrados, Sodoma torna-se anticivilização – é o antipovo que, como os ciclopes de Homero, devora seus visitantes ao invés de recebê-los.
A resposta dos sodomitas não poderia tornar mais claras suas intenções: se enfurecem não pelo oferecimento de mulheres, mas pelo senso de justiça de Ló. Quem este forasteiro pensa que é para agir como juiz e nos dizer o que é mau (v. 9)? Deus desejava descer à cidade para conhecê-la, mas seus habitantes só conhecem a violência; desejava trazer-lhes uma justiça de misericórdia, mas estes não aceitarão a justiça de ninguém que não sua própria. Ló só será salvo pelos poderes sobrenaturais dos emissários divinos, e será retirado da cidade com sua esposa e filhas antes que caia o fogo destruidor. Terminará numa caverna, embebedado e estuprado pelas próprias filhas que oferecera a estupradores (vv. 30-38), e dando um fim sombrio à palavra-guia do conhecimento: Ló não “conhece” quando suas próprias filhas se deitam com ele (vv. 33,35). Mais que explicitar sua inconsciência, o uso do termo passa implicitamente um recado: relacionamentos mediados pela violência não são conhecimento de forma alguma.
Enquanto Deus fica para trás negociando os termos do juízo, seus emissários chegam em Sodoma ao anoitecer (Gn 19:1). Nos portões da cidade está Ló, sobrinho de Abraão que se mudara para Sodoma há algum tempo. Sua presença nos portões não é mero detalhe. Os portões da cidade no Antigo Oriente Médio eram locais de deliberação, onde decisões públicas eram tomadas, negócios eram fechados e julgamentos realizados (Gn 23, Rt 4, 2 Sm 15:1-6). Estaria Ló levando justiça à cidade? Não se sabe. Mas ele teme pela segurança dos dois homens, que pretendiam passar a noite na praça central, e os leva apressadamente para dentro de casa (vv. 2-3).
Os temores de Ló são logo justificados, pois os sodomitas cercam a casa; não um grupo pequeno, mas todo o povo da cidade (v. 4). Jovens e velhos se unem com um só propósito: conhecer os forasteiros (v. 5). E não era este o propósito de Deus? Ambos querem conhecer e se relacionar um com o outro, então basta saírem os mensageiros. Mas aqui começa a mágica da palavra-guia: diferentes personagens têm diferentes concepções do que algo significa. E, para os sodomitas, conhecer não é troca. É invasão violenta e violação penetrante, como fica claro na contra-oferta de Ló a seus conterrâneos: suas duas filhas que não “conheceram” homem nenhum (vv. 6-8). O povo busca estuprar coletivamente os estrangeiros.
Um parêntese: o que está em jogo não é a sexualidade de Sodoma. Seria fantasioso assumir que uma cidade inteira é composta somente de homossexuais, e da maior canalhice equalizar qualquer orientação sexual ao crime hediondo de um estupro coletivo. O que determina seu comportamento não é sua orientação sexual, mas seu desejo de dominação. Estrangeiros não são bem-vindos, e devem ser subjugados de forma que entendam como funcionam as coisas em suas terras. Numa época em que a hospitalidade é princípio moral dos mais sagrados, Sodoma torna-se anticivilização – é o antipovo que, como os ciclopes de Homero, devora seus visitantes ao invés de recebê-los.
A resposta dos sodomitas não poderia tornar mais claras suas intenções: se enfurecem não pelo oferecimento de mulheres, mas pelo senso de justiça de Ló. Quem este forasteiro pensa que é para agir como juiz e nos dizer o que é mau (v. 9)? Deus desejava descer à cidade para conhecê-la, mas seus habitantes só conhecem a violência; desejava trazer-lhes uma justiça de misericórdia, mas estes não aceitarão a justiça de ninguém que não sua própria. Ló só será salvo pelos poderes sobrenaturais dos emissários divinos, e será retirado da cidade com sua esposa e filhas antes que caia o fogo destruidor. Terminará numa caverna, embebedado e estuprado pelas próprias filhas que oferecera a estupradores (vv. 30-38), e dando um fim sombrio à palavra-guia do conhecimento: Ló não “conhece” quando suas próprias filhas se deitam com ele (vv. 33,35). Mais que explicitar sua inconsciência, o uso do termo passa implicitamente um recado: relacionamentos mediados pela violência não são conhecimento de forma alguma.
O fantasma de Sodoma
A narrativa bíblica de Gênesis 18-19 jamais torna explícito o exato motivo da destruição de Sodoma, mas o fantasma de sua anticivilização perpassa todo o discurso bíblico. Juízes 19 oferece uma narrativa perturbadora em que, espelhando Gn 19, um levita viajante é encurralado por uma gangue de benjamitas – ambas tribos de Israel – e permite que sua esposa seja estuprada coletivamente até a morte. O discurso é claro: Israel tornara-se análoga a Sodoma.
A possibilidade de tornar-se anticivilização passa a ser um dos símbolos mais poderosos na condenação da imoralidade israelita. Isaías, em um de seus primeiros discursos, compara Israel a Sodoma em termos bastante reveladores: os sacrifícios e a adoração israelita são abomináveis a Deus, pois vêm de mãos que praticam o mal, que não levam justiça à viúva e ao órfão, e vêm de príncipes e assassinos que roubam e oprimem seu povo (Is 1:10-23). O clamor sodomita é o clamor do pobre desempregado e do negro chacinado; é o clamor do camponês que mal tem o que comer enquanto seu suserano engorda bois e galinhas para serem devorados por seu bolso. Na era de Mamon, do deus-dinheiro, fazemos bem em lembrar da história de Sodoma. Seu fantasma está em todo lugar.
André Kanasiro (via Revista Ópera)
A narrativa bíblica de Gênesis 18-19 jamais torna explícito o exato motivo da destruição de Sodoma, mas o fantasma de sua anticivilização perpassa todo o discurso bíblico. Juízes 19 oferece uma narrativa perturbadora em que, espelhando Gn 19, um levita viajante é encurralado por uma gangue de benjamitas – ambas tribos de Israel – e permite que sua esposa seja estuprada coletivamente até a morte. O discurso é claro: Israel tornara-se análoga a Sodoma.
A possibilidade de tornar-se anticivilização passa a ser um dos símbolos mais poderosos na condenação da imoralidade israelita. Isaías, em um de seus primeiros discursos, compara Israel a Sodoma em termos bastante reveladores: os sacrifícios e a adoração israelita são abomináveis a Deus, pois vêm de mãos que praticam o mal, que não levam justiça à viúva e ao órfão, e vêm de príncipes e assassinos que roubam e oprimem seu povo (Is 1:10-23). O clamor sodomita é o clamor do pobre desempregado e do negro chacinado; é o clamor do camponês que mal tem o que comer enquanto seu suserano engorda bois e galinhas para serem devorados por seu bolso. Na era de Mamon, do deus-dinheiro, fazemos bem em lembrar da história de Sodoma. Seu fantasma está em todo lugar.
André Kanasiro (via Revista Ópera)
Ilustração: The Burn of Sodom (Camille Corot - Paris 1843-1875)
Nenhum comentário:
Postar um comentário