Para
alguns, talvez esse título beire à heresia. Afinal (escutei a vida
toda), “Deus é um Deus de ordem”. E de fato é. Mas boa parte dos humanos
normais vive num contexto urbano bastante desordenado. Caos talvez seja
a melhor palavra para descrever a vida nas cidades. Quem sabe, ao
lançar outro olhar sobre esse “caos”, você perceba que é o lugar
perfeito para o florescer da vida espiritual.
Em geral, a
espiritualidade é percebida como absoluta ordem. Descrevemos as pessoas
espirituais como aquelas que oram por longas horas, leem a Bíblia
regularmente, nunca ficam com raiva ou gritam, possuem uma conexão
direta com Deus, não sofrem de depressão ou angústia, sabem as repostas
certas para todas as perguntas e têm sua vida sob controle.
Mas, e quanto ao resto de nós que vivemos em cidades com esposo ou
esposa, três filhos, um cachorro e papagaio? E quanto aos jovens
solteiros que trabalham 60 ou 70 horas por semana e têm que aguentar
todo mundo perguntando por que não casaram ainda? E quanto aos
universitários que, confusos ou iludidos por seus sonhos, rebolam em um
malabarismo frenético para dar conta das crescentes demandas,
expectativas e desejos? E o que dizer dos adolescentes que sofrem com o
divórcio dos pais?
Para os habitantes das cidades, a sensação de que a vida está fora de
controle é constante. Parece que estamos sempre um passo atrás e dizemos
em desalento: “não tô dando conta”.
As imagens que usamos para descrever o “céu” são estáticas,
perfeitamente controladas e tranquilas. As pessoas trajando vestidos
longos e brancos, acariciando leões quase preguiçosos à beira de um rio
cristalino. Por mais maravilhoso que esse cenário pareça, ele não
reflete o ritmo acelerado das cidades e, talvez, seja até percebido como
monótono ou entediante por alguns.
Confesso que, na adolescência, por vezes pensei que esse “céu” não era
para mim, um jovem bagunceiro, confuso e inquieto. Com certeza mancharia
os vestidos brancos, turvaria a água cristalina e calma do rio de
cristal, perturbaria os tranquilos leões, enfim, estragaria a cena tão
bem controlada. Na verdade, minha luta era para encontrar uma
espiritualidade que fizesse sentido para minha realidade caótica diária.
Levou um tempo até que eu percebesse que talvez essa espiritualidade
comportadinha, por vezes emburrecida e automatizada, da pessoa
religiosamente perfeita, não fosse realmente espiritualidade. Nada
contra os que apreciam a vida monástica, a solitude reclusa ou o
abandonar tudo para dedicar-se exclusivamente ao estudo e à oração. Mas
existe uma espiritualidade que convive perfeitamente bem com nossa vida
urbana caótica e com nossas famílias corroídas pelo tempo
contemporâneo.
Aos 38 anos de idade, comecei a desejar ter 60 pensando que nessa idade
teria amadurecido e aprendido, afinal, os segredos e atalhos da vida.
Pensava que cometeria menos erros e conseguiria ter mais domínio do
mundo ao meu redor. De repente, deparei-me com uma carta de um dos
grandes escritores sobre espiritualidade que começa assim: “Minha vida é
uma confusão (...) tenho quase 60 anos de idade (...) eu acreditei que
os anos me ensinariam tudo de que precisava saber e que quando fosse
mais velho teria aprendido as lições da vida e descoberto os segredos da
verdadeira espiritualidade. Estou mais velho, bem mais velho, e os
segredos ainda são segredos para mim. A única coisa coerente na minha
vida espiritual é a incoerência.”
É no cenário bagunçado cotidiano que conhecemos, aprendemos e
exercitamos dependência, humildade e fragilidade. Em meio aos desafios,
acertos, fracassos, dúvidas, medos, angústias e tentações aprendemos a
clamar por nossa verdadeira identidade. No meio do barulho, da fumaça e
da correria encontramos um Deus ativo e mobile capaz de Se mover com
agilidade, exercer força extraordinária e tocar gentilmente nossa face.
De dentro do entulho que nos cerca, levantamos as mãos, vozes e
pensamentos em direção a Ele. A esperança brota no meio do caos. A luz
brilha na penumbra confusa e a obra de arte divina vai se completando em
nós dia a dia.
Afinal, espiritualidade não é um destino ou estágio a ser alcançado.
Espiritualidade é a jornada daquele que de dentro do emaranhado diário
levanta os olhos e os braços e se apega nAquele que tudo pode. A
instabilidade e incoerência fazem parte da jornada simplesmente porque
fazem parte do ser humano.
Mas é exatamente na nossa fraqueza que reside a força da vida
espiritual. A instabilidade sempre estará presente porque insistimos em
desviar os olhos e soltar a mão do Deus poderoso que nos mantém em
sanidade.
De fato, a história bíblica é repleta de pessoas que foram transformadas
em meio à bagunça e confusão da vida: Noé, Moisés, Davi, Salomão,
Ester, Pedro, Saul, entre outros. Essas pessoas eram corajosas,
brilhantes, amantes de Deus, destemidas, leais e cheias de vontade de
ser fiéis a Deus. Ao mesmo tempo eram assassinos, adúlteros,
depressivos, orgulhosos, covardes e ansiosos.
No fim das contas, a vida é sempre um caos em que Deus trabalha a
perfeita espiritualidade de transformação. Deus continua sendo um Deus
de ordem, mas não deixa de ser o Deus do caos que aperfeiçoa seu poder
na fraqueza (2Co 12:9).
Graças a Deus por isso!
Paulo Cândido (via Conexão 2.0)
"Nosso precioso Salvador convidou-nos a juntar-nos a Ele, e unir nossa
fraqueza a Sua força, nossa ignorância a Sua sabedoria, nossa
indignidade a Seus méritos" (Ellen G. White - Cuidado de Deus, p. 65).
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