O Apocalipse também apresenta uma narrativa de duas cidades, mas não Londres e Paris, e sim Babilônia e a Nova Jerusalém. A cidade de Deus e a cidade dos homens ou a metrópole do Cordeiro e a capital do dragão expressam realidades opostas. E a perspectiva do pior e do melhor dos tempos vai marcando nosso cotidiano, com o destino dessas cidades sendo cada vez mais delineado no horizonte da história.
Ocorre que, no meio do relato a respeito da cidade babilônica, surgem personagens estranhos, que têm povoado a imaginação dos leitores e desafiado os neurônios dos estudiosos. “João fica grandemente maravilhado pela meretriz, mas é a besta que lhe é explicada. Talvez o ponto seja: para entender a meretriz, observe a besta”, sugeriu John R. Yeatts (Revelation [Herald Press, 2003], p. 312). Ou, eu diria, para entender a besta, observe a meretriz. Afinal, quem é a besta escarlate de sete cabeças e dez chifres? Por que ela carrega uma mulher sedutora? Será possível avançar na busca de consenso? Vamos ao estudo desse tema polêmico, que voltou a ser discutido e precisa de alguns ajustes.
O CONTEXTO
“Um dos sete anjos que tinham as sete taças veio e falou comigo”, relata João de início (Ap 17:1). Mas qual taça? A Bíblia de Estudo Andrews (CPB, 2015, p. 1671) sugere ser o anjo da sexta taça (Ap 16:12), pois ele fala do secamento do rio Eufrates, enquanto o ser angélico de Apocalipse 17 anuncia que a mulher está assentada sobre muitas águas (17:1b, 15). Por outro lado, quando o sétimo anjo derrama sua taça, há um forte terremoto e a grande cidade se divide em três partes. Então Deus Se lembra de Babilônia (16:17-21), um julgamento que está no centro dos capítulos 17 e 18. Portanto, pode ser o anjo da sexta ou o da sétima praga. O fato é que a visão retrata eventos que culminam as séries de sete.
Esse anjo passa a descrever a mulher e a besta, comparando a mulher a uma “prostituta” (17:1b), metáfora comum para indicar idolatria. Depois de misteriosas descrições e digressões, a prostituta é identificada: “A mulher que você viu é a grande cidade que domina sobre os reis da terra” (17:18). Se esse é o caso, por que ele simplesmente não afirmou o óbvio? Por que empregar dois símbolos para depois unificá-los? Nuances apocalípticas. Assim como a noiva de Cristo é uma mulher pura e também uma cidade (a Nova Jerusalém), a amante de Satanás também apresenta duas dimensões. Uma cidade não tem finalidade se não tiver população. Por isso, o duplo simbolismo enriquece a descrição e acrescenta camadas de significados. A mulher imoral de Apocalipse 17, com base em Ezequiel 16, entre outros textos, está em contraste intencional com a mulher pura de Apocalipse 12 e 19.
Alguns defendem que “Babilônia” é a Babilônia literal, outros dizem que se trata de um código para Jerusalém, enquanto outros ainda aplicam o nome a Roma. Mas as coisas são mais complexas. A Babilônia de Apocalipse é claramente simbólica. Ela começa com Roma, porém transcende Roma. É uma instituição apostatada, um aglomerado de religiões falsas, uma entidade escatológica que se opõe ao povo de Deus no fim dos tempos, conceito entrelaçado com o tema do grande conflito. Babel no início, Babilônia no meio, Babilônia mística no fim. “‘Babilônia’ no Apocalipse é mais bem entendida como uma entidade que transcende a situação histórica específica, seja a antiga Babilônia ou a Roma imperial”, afirma Sigve K. Tonstad (Revelation [Baker Academic [2019], p. 243). Roma seguiu o padrão de Babilônia, que prefigura a Babilônia final.
Babilônia é uma ideologia do mal, o ponto de encontro dos falsos deuses, o parque de diversão dos anjos das trevas, o bordel dos idólatras, o espaço em que os poderes do mal, entre bebidas intoxicantes, tramam a destruição dos servos de Deus. Mais do que o caos religioso, é a globalização do mal. Rival de Jerusalém, é a capital do reino de Satanás, uma entidade que mistura falsos ensinos, engano, manipulação, blasfêmia, exploração, opressão e derramamento de sangue. Porém, a cidade tem face e identidade. A tradição protestante identificou Babilônia com o papado, enquanto o adventismo seguiu essa interpretação e reconheceu uma esfera mais ampla.
Ao falar de Babilônia, o anjo de Apocalipse 17 introduz três dificuldades principais, que serão discutidas: quem é a besta de sete cabeças que carrega a meretriz, quem é o oitavo rei e qual é a referência temporal da visão (ou seja, João descreve os eventos de Apocalipse 17 da perspectiva do 1º século ou de um tempo futuro?).
AS PROPOSTAS
Há várias interpretações para a besta escarlate de sete cabeças. Mencionarei aqui as principais.
1. As cabeças da besta representam figuras imperiais/reais. Para muitos intérpretes preteristas, Jerusalém é a mulher/prostituta de Apocalipse 17. “Estou convencido além de qualquer dúvida de que esta meretriz é a Jerusalém do 1º século”, afirmou Kenneth L. Gentry (He Shall Have Dominion, 2ª ed. [Tyler, TX: Institute for Christian Economics, 1997], p. 392). Assim, a besta seria Roma, que destruiu Jerusalém no ano 70. Desde a antiguidade, Roma era amplamente considerada a “cidade das sete colinas” (Cícero, Cartas a Ático 6.5; Plínio, História Natural 3.9.11; Estrabão, Geografia 5.3.7). Portanto, esses teólogos colocam o foco na Roma imperial e identificam as cabeças com imperadores romanos do 1º século. O mito de “Nero redivivo” ocupa um papel central no argumento, que não tem base bíblica e já foi amplamente contestado. Entre os futuristas, alguns veem a besta como o Império Romano revivido. Contudo, eles não conseguem articular quem seriam os dez “reis”, pois estão no futuro.
No meio adventista, desde que o Tratado de Latrão foi assinado e ratificado em 1929, reconhecendo a Cidade do Vaticano como estado independente sob a soberania da Santa Sé, alguns intérpretes populares têm especulado sobre a identificação dos papas (monarcas/reis) com as sete cabeças. A partir de 1929, diz a teoria, surgiriam sete pontífices. Quando o papa João Paulo II morreu, em 2005, as especulações explodiram. Com a eleição de Bento XVI, o fim estava próximo de novo, uma vez que ele seria o sétimo desde 1929. Com sua renúncia em 2013, os propagadores da teoria readequaram o discurso, dizendo que Bento XVI é o papa que durou “pouco tempo” (oito anos), cumprindo Apocalipse 17:10, se bem que João XXIII durou menos tempo (quatro anos) e João Paulo I ainda menos (33 dias). Francisco seria o oitavo, funcionando como uma extensão do sétimo.
Essa posição é descartada por virtualmente a totalidade dos eruditos e teólogos adventistas atuais, até porque ela não é historicista o suficiente, além de ser uma forma disfarçada de marcar uma data para a volta de Jesus. Um dos argumentos contrários é que a palavra oros em Apocalipse 17:9 significa “montanha”, “monte”, e não mera “colina”. Assim, João estava falando de impérios, e não de Roma e seus líderes. A própria expressão “cinco caíram” (17:10) combina mais com reinos sequenciais do que com montes. Como explicar que as colinas de Roma caíram uma após a outra? Na Bíblia, “montes” representam reinos/impérios (Jr 51:24, 25; Dn 2:34, 35, 44, 45), e não governantes individuais. João não se limita à geografia; ele apresenta escatologia.
2. A besta de Apocalipse 17 é a besta da terra. Tradicionalmente, os adventistas têm interpretado a segunda besta de Apocalipse 13 como os Estados Unidos. Que essa fera terá um papel importante no fim dos tempos, o Apocalipse deixa claro. Porém, seria ela a besta escarlate de Apocalipse 17? Essa é a visão defendida, entre outros, por Vanderlei Dorneles, que tratou do assunto em artigos e no livro Pelo Sangue do Cordeiro (CPB, 2015). “Se a crise final é desencadeada pelo surgimento da besta de dois chifres em Apocalipse 13, esse poder precisava necessariamente estar representado no cenário da crise final, descrito em Apocalipse 17”, ele pondera (p. 112). Essa besta seria também o oitavo rei. “Uma vez que os Estados Unidos não são representados em Apocalipse 13 como uma das sete cabeças da besta principal, mas como uma besta a mais, é também natural que, em Apocalipse 17, esse poder fosse representado como um oitavo, ou um rei acrescentado na sequência dos sete impérios anteriores” (p. 105).
A sugestão é bem-vinda para enriquecer o debate, mas tem fragilidades. Primeiro, as duas bestas possuem quantidades diferentes de chifres. A estrutura do simbolismo de poder da besta de Apocalipse 17 (sete cabeças e dez chifres) segue o padrão da primeira besta de Apocalipse 13, inspirada nas bestas de Daniel 7. Isso não se aplica à besta de dois chifres de Apocalipse 13. Na verdade, Daniel deixa claro que existem apenas quatro impérios globais na sequência profética, os quais se situam na região do Mediterrâneo e estão em relação direta com o povo de Deus. Roma é o último deles. Segundo, em nenhum lugar de Apocalipse 17 (ou mesmo 13) é sugerido que a besta da terra terá esse protagonismo todo no fim. Ela é o poder político-religioso que cria a imagem da besta do mar e exige a adoração a ela. Terceiro, a besta da terra é representada no complexo literário de Apocalipse 16–19 como o “falso profeta”. Em Apocalipse 16:12-14, aparecem três entidades distintas: o dragão, a besta e o falso profeta. Ao comparar Apocalipse 19:20 com Apocalipse 13:11-15, fica claro que a besta da terra e o falso profeta são a mesma entidade. Por fim, as bestas do mar e da terra (uma sob o simbolismo da besta escarlate e a outra sob o nome de falso profeta) têm o mesmo destino, sendo lançadas simultaneamente no lago de fogo (19:20b). Portanto, é muito pequena a chance de João ter identificado a besta de dois chifres (os Estados Unidos) com a besta escarlate e o oitavo rei em Apocalipse 17.
3. A besta de Apocalipse 17 é a besta do mar. A besta do mar em Apocalipse 13, uma fera composta com traços de leão, urso e leopardo (13:2), é modelada a partir dos animais de Daniel 7, que também surgem do mar (v. 2, 3). Esses monstros híbridos violam os limites da ordem criada e funcionam como inimigos perseguidores do povo de Deus. “Quando você examina cuidadosamente essa visão”, nota Jon Paulien, “percebe que as quatro bestas de Daniel 7 totalizam sete cabeças e dez chifres!” (Armageddon at the Door [Autumn House, 2008], p. 210). Segundo Ellen White, essa besta simboliza, “inquestionavelmente”, o papado (O Grande Conflito, p. 439). Mas seria a besta de Apocalipse 17?
Uma besta apocalíptica consiste no poder religioso controlando o poder civil para alcançar seus próprios objetivos e usando a máquina estatal para restringir a liberdade e perseguir os “dissidentes” que preferem seguir a lei divina. Em Apocalipse 13, esses dois aspectos estão unificados em uma só entidade (o papado, que detinha o poder religioso e o secular), enquanto em Apocalipse 17 eles aparecem separados, uma vez que a configuração final não será uma réplica fiel da estrutura medieval. Há uma pequena diferença na “formatação” da besta. Portanto, é essencial manter a distinção entre a “mulher” (sistema religioso) e a “besta” (poder civil controlado pelo sistema religioso). Os dois símbolos estão interligados, mas pertencem a campos diferentes e têm vida própria.
Há vários indícios que favorecem a identificação da “besta do mar” de Apocalipse 13 com a “besta do abismo” de Apocalipse 17. Para começar, a origem das duas parece ser a mesma, já que a palavra “abismo” pode simplesmente indicar a profundidade dos oceanos (Ap 13:1a; 17:8a). Em segundo lugar, as duas bestas têm sete cabeças e dez chifres (Ap 13:1; 17:3), um elemento identificador importante. Terceiro, a besta do mar foi ferida de morte e curada, enquanto a besta do abismo “era e não é mais, e está para emergir”, o que sugere um paralelismo relacionado ao período de inatividade/atividade como entidade perseguidora (13:3a; 17:8a). Quarto, “toda a terra se maravilhou” ao ver a besta do mar depois de sua ferida mortal ter sido curada, e igualmente os que “habitam sobre a terra” “se admirarão” ao ver “a besta que era e não é mais, mas tornará a aparecer” (13:3, 8; 17:8). Note que a última parte de 17:8 é basicamente uma repetição de 13:8, o que solidifica a relação entre essas bestas. Quinto, o dragão deu à besta do mar “o seu poder, o seu trono e grande autoridade”, ao passo que os “reis” oferecem à besta do abismo “o poder e a autoridade que possuem” (13:2b; 17:13). Sexto, ambas as bestas proferem arrogâncias e blasfêmias (13:5, 6; 17:3). Sétimo, uma besta vem da água (mar) e a outra carrega uma mulher sentada sobre as águas/povos (13:1a; 17:1b, 15). Por fim, a besta do mar persegue os santos, enquanto a besta do abismo carrega uma mulher “embriagada com o sangue dos santos” (13:7a; 17:6).
Existem outros paralelos e conexões, como o motivo do vinho de Babilônia, a queda dessa grande cidade e sua punição no fogo em ambos os contextos (14:8-11; 18:2, 3, 8, 9), mas os argumentos listados são suficientes. Há também diferenças, porém elas são menores. Em Apocalipse 17, por exemplo, os dez chifres não têm diademas/coroas, ao contrário do que ocorre no capítulo 13. Isso pode simplesmente indicar que a natureza do poder representado pelos chifres nesse momento é diferente da fase anterior ou que a sua autoridade foi retirada. Para Hans LaRondelle, os chifres com diademas representam as monarquias europeias do período medieval, enquanto os chifres sem coroas simbolizam as democracias que apoiarão a besta no fim (How to Understand the End-Time Prophecies of de Bible [First Impressions, 1997], p. 412). Por sua vez, a besta de Apocalipse 17 é escarlate, enquanto a cor da besta do mar em Apocalipse 13 não é mencionada. Mas a intenção pode ser associar a besta escarlate mais intimamente com o dragão.
4. A besta de Apocalipse 17 é o próprio Satanás. Essa ideia tem sido ventilada desde o início do século 20, mas ganhou força recentemente. Na época, o teólogo alemão Ernst Lohmeyer sinalizou que ainda não havia sido demonstrado que a besta que “era e não é mais”, “está para emergir do abismo” e “caminha para a destruição” deva ser entendida no sentido histórico. “Essas são expressões míticas relacionadas a um poder demoníaco que odeia Deus”, escreveu (Die Offenbarung des Johannes [J. C. B. Mohr, 1926], p. 142). Outros defenderam ideias parecidas. Para Robert L. Thomas, “cada cabeça da besta é uma encarnação parcial do poder satânico que reina por determinado período, de modo que a besta pode existir na Terra sem interrupção na forma de sete reinos consecutivos” (Revelation 8–22 [Moody Press, 1995], p. 292).
Entre os adventistas, Edwin Reynolds argumentou num artigo em 2003 que a besta escarlate é o próprio diabo. “Há somente uma besta que vai para o abismo no Apocalipse e dele sai novamente. É o dragão, descrito em 20:2 e 3 como estando preso no abismo por mil anos, então sendo solto por um pequeno período antes de ir para o lago de fogo”, escreveu (“The Seven-Headed Beast of Revelation 17”, Asia Adventist Seminary Studies 6 [2003], p. 101). Portanto, o teólogo associou a fase de inatividade do diabo (o período em que a besta “não é”) ao milênio (Ap 20). A volta de Satanás do abismo “é como o retorno dos mortos” (p. 103). Para Reynolds, a besta do mar é a sexta cabeça, enquanto a besta da terra, paradoxalmente, seria a sétima (p. 105, 106).
Em 2007, Ekkehardt Mueller, teólogo do Instituto de Pesquisa Bíblica da sede mundial da igreja, ampliou a análise e concluiu que, no Apocalipse, o abismo é o lugar da habitação dos demônios e está ligado com Satanás. “Portanto, a besta sobre a qual Babilônia se assenta, ou seja, a besta de Apocalipse 17, que está associada com o abismo e difere da besta do mar em Apocalipse 13, é mais bem compreendida como sendo Satanás, que opera por meio de poderes políticos” (“The Beast of Revelation 17: A Suggestion (Part I)”, Journal of Asia Adventist Seminary 10/1 [2007], p. 50). Na parte 2 do artigo, ele também defende que a fase “não é” da besta (Satanás, na visão dele) corresponde ao período da prisão do diabo durante o milênio (Journal of Asia Adventist Seminary 10/2 [2007], p. 157).
Essa interpretação tem méritos e será utilizada na síntese a seguir, mas simplesmente igualar a besta com Satanás é desconsiderar os fatos bíblicos. Primeiro, em nenhum lugar do Apocalipse o dragão (drakon) é chamado de besta (therion), embora um dragão ou serpente seja um animal/besta. Segundo, enquanto o dragão vem inicialmente do Céu (Ap 12:7-10), a besta escarlate surge do abismo (17:8), termo que em muitos casos no Antigo Testamento está associado com água (Gn 1:2). De fato, no Apocalipse o abismo é o reino satânico, mas nem tudo o que vem do abismo é Satanás em pessoa. Terceiro, a cor escarlate da besta não significa identidade com o dragão, mas apenas afinidade, uma vez que a mulher também usa roupa escarlate e não é o dragão. Nesse estágio, vemos um alinhamento: a prostituta, a besta e o dragão compartilham a mesma cor (12:3; 17:3; 17:4). As identidades deles quase se confundem, mas não chegam a esse ponto. Quarto, a mulher está simbolicamente montada na besta (17:3), uma posição de domínio e controle, o que não faria sentido se a besta fosse Satanás. Quinto, o fato de o dragão e a besta escarlate terem o mesmo número de cabeças e chifres (12:3; 17:3) não significa que os dois sejam a mesma entidade, pois a besta do mar também tem “dez chifres e sete cabeças” (13:1) e obviamente ela e o dragão são coisas distintas. Sexto, com base na frase “era e não é mais” (17:8), alguns acham que a besta em Apocalipse 17 seja uma paródia do Pai, “que é, que era e que há de vir” (1:4, 8; 4:8). Porém, conceitualmente, a paródia mais apropriada é com o Cordeiro, que foi morto, mas voltou a viver (1:18), fato aplicável à besta do mar, que “foi ferida à espada e sobreviveu” (13:14). Afinal, na estrutura do Apocalipse, o dragão parodia o Pai, a besta do mar imita o Filho e a besta da terra (o falso profeta) simula o Espírito Santo. Paródia é a “ferramenta perfeita” para desmascarar a pretensão e revelar o engano, nota Greg Carey (Elusive Apocalypse [Mercer University Press, 1999], p. 154). Além disso, os chifres/reinos oferecem sua autoridade à besta (17:13), o que seria estranho se ela fosse o diabo.
Finalmente, mas sem esgotar os argumentos, enquanto a besta e o falso profeta são lançados no lago de fogo por ocasião da volta de Cristo (19:20), o diabo é preso nessa ocasião, mas somente é lançado no lago de fogo depois do milênio (20:1-3). Para não deixar dúvida, o texto diz que, após os mil anos (20:7), Satanás “foi lançado no lago de fogo e enxofre, onde já se encontram a besta e o falso profeta” (20:10). Se a besta e o falso profeta (a besta da terra) já estavam lá, então o diabo não é a besta. A besta surge do abismo quase no momento em que o diabo está sendo confinado no abismo. A destruição dela é importante na estrutura literária, mas não é o clímax do enredo. Num livro ou filme, primeiro você destrói os personagens secundários, depois coloca os protagonistas cara a cara. Logo, igualar a besta com o diabo é errar por mil anos!
O diabo é muita coisa, inclusive o “protótipo” das bestas, mas não é a besta escarlate. O próprio Reynolds reconhece corretamente que o monstro que aparece em 13:1-10; 14:9, 11; 15:2; 16:2, 10, 13; 19:19, 20; e 20:4 e 10 “é consistentemente a besta do mar, conforme os respectivos contextos indicam” (Asia Adventist Seminary Studies 6 [2003], p. 101). Por que então a besta do abismo de Apocalipse 17 também não seria a besta do mar de Apocalipse 13? A origem abissal pode funcionar apenas como um adjetivo para qualificar a origem diabólica da entidade, sua ligação íntima com o diabo e sua disposição de cumprir o propósito dele.
O TEMPO
Se identificar a besta de Apocalipse 17 é difícil, estabelecer o tempo de sua atuação não é menos complicado. O que as cabeças representam e quando elas atuam? Em 17:8-14, o anjo transmite várias informações: (1) “a besta que você viu era e não é mais, e está para emergir do abismo, e caminha para a destruição”; (2) “as sete cabeças são sete montes” e “também sete reis”; (3) “cinco caíram, um existe e o outro ainda não chegou; e, quando chegar, tem de durar pouco tempo”; (4) “a besta, que era e não é mais, é também o oitavo rei, mas faz parte dos sete”; (5) os “dez chifres que você viu são dez reis, que ainda não receberam reino”; (6) eles “oferecem à besta o poder e a autoridade que possuem”; e (7) “lutarão contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá”.
Entre os historicistas há duas linhas principais de interpretação: uma começa com o Egito, um dos grandes impérios globais que perseguiram o povo de Deus ao longo da história; a outra começa com Babilônia, que é o ponto de partida das profecias de Daniel e que serve de base para essa parte do Apocalipse. As duas interpretações são possíveis, e os intérpretes adventistas estão divididos (veja o quadro). A primeira é mais simples, mas depende de raciocínio dedutivo e de inferências, embora João fale do Egito no contexto das pragas (Ap 16) e Isaías (30:6) chame o Egito de “Besta do Sul”. A segunda é mais complexa, mas tem base textual sólida.
A informação de que “um existe” (agora, o tempo presente) se refere (1) ao tempo de João, (2) ao período da ferida mortal ou (3) ao julgamento da meretriz no fim dos tempos? Jon Paulien acredita que o “agora” deve ser visto a partir da perspectiva de João. Ele se apoia em dois princípios: (1) Deus encontra os profetas onde eles estão, no seu tempo e em suas circunstâncias; e (2) durante a visão apocalíptica, o profeta pode navegar no espaço para qualquer parte do Universo e no tempo para qualquer época, mas a interpretação da cena sempre vem no tempo, no lugar e nas circunstâncias do vidente (Armageddon at the Door, p. 214).
Por outro lado, Hans LaRondelle ressalta que é importante coordenar as três fases da besta (era, não é e virá); “portanto, é mais razoável adotar o ponto de vista escatológico apresentado pelo próprio anjo” (How to Understand the End-Time Prophecies of the Bible, p. 411). Para o teólogo, a besta na fase “era” representa a perseguição, ao passo que a fase “não é” simboliza o período sem perseguição, pois foi ferida (p. 412). Tonstad chama essas fases de “presença, então ausência, então presença”, mas prefere aplicá-las ao período em que o dragão delega seu poder para a besta do mar, desaparece, depois volta (Revelation, p. 246). Contudo, diz ele, Satanás nunca fica sem representação no mundo, mesmo na fase “não é”. “A linguagem descreve ausência, mas ausência não significa inexistência” (p. 250).
As duas perspectivas (a partir do Egito ou de Babilônia) são defensáveis, mas a segunda leva vantagem. Primeiro, o anjo transporta João “em espírito” para o deserto a fim de mostrar o julgamento da meretriz. Se ele é transportado a outra dimensão do espaço, o mesmo princípio vale para o tempo. Segundo, a estrutura profética/escatológica do Apocalipse trabalha com a moldura dos reinos de Daniel 7, que se iniciam com Babilônia. Considerando que Apocalipse 17 fala da Babilônia mística, faz mais sentido começar com Babilônia, até pelo motivo das “águas”, o qual está relacionado com a queda desse império. Terceiro, João viu então uma “mulher embriagada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus” (17:6). No 1o século, se pensarmos nos 1.260 de perseguição, isso ainda não havia acontecido. Quarto, o anjo informou que, nesse momento, a besta “era e não é mais” (17:8) e cinco das sete cabeças haviam caído. Isso não poderia se aplicar ao Império Romano do 1o século, que ainda existia. Quinto, nessa fase, a mulher estava “sentada” sobre a besta (17:9), o que não poderia se aplicar à relação igreja/império no 1o século. Sexto, a informação sobre o “oitavo rei” que caminha para a destruição rápida (17:11) e sobre os dez reis (chifres) que ainda não tinham recebido reino e ofereceriam seu poder para a besta (17:12, 13) faz mais sentido no contexto do fim. Além disso, a besta e seus aliados fazem guerra contra o Cordeiro (17:14), o que indica um horizonte relacionado à volta de Jesus.
Por esses e outros motivos, tecnicamente é preferível o ponto de vista que enfatiza o julgamento da meretriz no tempo do fim. No entanto, a perspectiva adotada, desde que siga a interpretação historicista, não altera muito o resultado.
A SÍNTESE
A esta altura, você pode estar se perguntando: afinal, a besta escarlate de Apocalipse 17 deve ser identificada com o Império Romano, a besta da terra (Estados Unidos), a besta do mar (Roma papal), Satanás ou outra coisa? A resposta curta é: a besta escarlate do abismo é a besta do mar em sua fase recuperada da ferida mortal, que liderará uma confederação global com a ajuda da besta da terra e levará o mundo a um tempo de crise sem paralelo, culminando com um breve domínio do próprio Satanás personificado como Cristo. O dragão já estava presente por meio das cabeças, mas então se manifestará como um “oitavo” poder que, quebrando as regras da matemática, misteriosamente faz parte dos sete. No original, a palavra “rei” não ocorre depois de “oitavo” (ogdoos) em 17:11, tampouco aparece o artigo definido. Isso sugere que o numeral ordinal “oitavo”, um adjetivo masculino, embora relacionado com as cabeças, pertence a outra categoria. Pode ser uma referência ao diabo, que sintetiza e encarna a besta em si. Por ser a soma de tudo, ele é e não é um integrante do G7.
Exegeticamente, a ideia de que a besta do abismo seja a besta do mar em sua fase da ferida mortal curada é bem sólida. As inovações interpretativas mais recentes contribuíram com novos ângulos, mas esbarram nas informações do próprio texto bíblico. O Comentário Bíblico Adventista (CPB, 2015, v. 7, p. 943, 944), embora reconheça que a besta de Apocalipse 17 possua semelhanças com o dragão vermelho (Ap 12), sinaliza que ela tem mais afinidade com a besta do mar (Ap 13). O total de cabeças (sete) e chifres (dez) que caracteriza o dragão, a besta do mar e a besta do abismo estabelece uma conexão entre essas entidades que não pode ser desconsiderada.
Em todo o Apocalipse existem somente sete cabeças. Segundo Paulien, “a besta simboliza a confederação mundial de poder civil e secular” e “a imagem da besta de sete cabeças representa uma besta que vive, morre e ressurge sete ou oito vezes” (Armageddon at the Door, p. 136, 211). Por isso, a ênfase está na sétima cabeça, que volta do abismo. Esse aparecimento é descrito em 17:8 pelo verbo parestai, relacionado à palavra parousia, termo comum para a volta de Cristo (1Co 15:23, 1Ts 2:19, 1Jo 2:28, etc.). É como se o diabo ressurgisse na figura da besta para, finalmente, se apresentar como o falso Cristo.
Satanás é o poder por trás das ações da besta, controlando uma cabeça de cada vez. Porém, nos momentos críticos, a interação entre eles se acentua e suas ações se confundem. A besta usa o template do diabo, que usa a estrutura da besta. Há uma fluidez nos símbolos, sem suprimir a identidade. Além disso, assim como Satanás age por meio da besta, a besta atua por meio de seus chifres. Vou exemplificar.
Os oráculos contra Babilônia em Isaías 14 e contra Tiro em Ezequiel 28 começam falando dos reis dessas cidades, mas logo fica evidente que se referem a um ser sobrenatural (Lúcifer). É como se essas cidades fossem uma expressão direta do ser e do comportamento do diabo. Assim como Jesus é a personificação do reino de Deus, Satanás é a personificação do reino do mal, e os poderes imperiais são uma expressão de seu domínio.
Em Apocalipse 12, o capítulo central sobre o dragão e o conflito cósmico, vemos Satanás usando a potência romana como seu instrumento e quase se confundindo com ela. A tentativa inicial de matar o “Filho” da mulher em Apocalipse 12 se deu por meio de Herodes e a morte Dele ocorreu na jurisdição de Pilatos, representante do aparato romano. Por isso, ao falar sobre a “cadeia de profecias” que se inicia em Apocalipse 12, destacando a ação de Satanás por meio de seus agentes na época, Ellen White reconhece: “Assim, embora o dragão represente primeiramente Satanás, é também, em sentido secundário, símbolo de Roma pagã” (O Grande Conflito, p. 438). O mesmo princípio vale para o dragão e a besta em Apocalipse 17, apenas em ordem inversa: a besta escarlate representa primeiramente o aparato político-militar que carrega a mulher, mas, em sentido secundário, simboliza também Satanás.
Ellen White identifica a “besta que surge do abismo” e faz guerra contra as duas testemunhas (Ap 11:7) como sendo a França ateísta, pervertida e sanguinária do período da Revolução Francesa (1789-1799). Entretanto, ela destaca a participação direta de Satanás: “Em muitas das nações da Europa os poderes que governaram na Igreja e no Estado foram durante séculos dirigidos por Satanás, por intermédio do papado. Aqui, porém, se faz referência a uma nova manifestação do poder satânico” (O Grande Conflito, p. 268). Logo à frente, no contexto do genocídio da noite de São Bartolomeu, em 1572, ela comenta que Satanás foi “o chefe invisível de seus súditos na horrível obra de multiplicar os mártires” (p. 272). Isso fornece uma lógica para dizer que, em momentos extremos de caos e perseguição, Satanás e a besta instrumentalizada por ele se confundem, mas sem perder a identidade.
É bom frisar que a besta do abismo que atuou na Revolução Francesa não era outra besta na sequência profética, mas uma extensão da besta romana/papal. O ataque de Paris a Roma, que depois acabaram se tornando cidades-irmãs, foi uma espécie de ferimento autoinfligido, numa prefiguração da destruição que a prostituta de Apocalipse 17 sofrerá pelos próprios apoiadores!
O texto mais explícito sobre a simbiose entre Satanás e as entidades que promovem sua agenda está em Apocalipse 13. Quando o dragão se põe “em pé sobre a areia do mar” (12:18), surge em seguida a besta do mar (13:1), parecida com ele. Simbolicamente, a besta senta-se no trono do dragão e age como se fosse ele, fazendo “toda a terra” se maravilhar (v. 3). Aqui o dragão e a besta, embora distintos, se identificam de tal maneira que se tornam objetos de adoração (v. 4).
Note que a besta da terra também fala como o dragão (v. 11). No caso da “besta francesa”, um antigo aliado se tornou inimigo de Roma e causou a ferida de morte, em 1798, ao destituir o papa; no caso da “besta norte-americana”, que se expandiu na mesma época, um tradicional inimigo de Roma se tornará aliado e causará a cura.
Por tudo isso, minimizar o papel da besta do mar em Apocalipse 17, apesar de sua ressurreição em Apocalipse 13 e de toda sua relevância na polarização final sobre adoração, seria deixar um personagem quase central sem desfecho, o que não acontece. Literariamente, João destrói a prostituta (17:16), fazendo um forte caso jurídico contra Babilônia e um longo lamento por sua queda (18, 19), e depois mata a própria besta (19:20). A morte do dragão só ocorre depois do milênio (20:2, 3, 10), o que inviabiliza cronologicamente a proposta de Reynolds e Mueller de equiparar a fase “não é” com o milênio.
Portanto, a besta escarlate de Apocalipse 17 é a nova manifestação da besta do mar de Apocalipse 13 que foi ferida e reviveu, e dessa vez encarnando ainda mais a crueldade do dragão. Trata-se de um retorno espetacular que deixará as pessoas admiradas ou deslumbradas (17:8). Em síntese, a besta de sete cabeças é a expressão fiel do dragão, mas não é o dragão. No ataque final contra Deus e Seu povo, essa besta contará com a ajuda da besta da terra e de uma confederação de aliados. Como diz uma nota na Bíblia de Estudo Andrews (p. 1671), a besta escarlate “representa o poder político do mundo inteiro apoiando a Babilônia do fim do tempo”. Os dez reis/reinos, número literal (dez nações ou entidades, com seu epicentro na Europa, território do Império Romano original) ou simbólico (uma confederação mundial, incluindo a virtual totalidade das nações), exercerão seu poder num momento decisivo da história. Instrumentalizados por Satanás, serão seus agentes e extensões do seu domínio. Mas por um curto período.
No fim, as coisas mudam. Sentindo-se enganados, sem proteção contra as pragas, os reinos (poder político-militar) destroem a “mulher” (sistema religioso) a quem haviam apoiado (17:16). E aqui a imagem do casamento é retomada. Enquanto o Cordeiro celebra as bodas com Sua linda noiva vestida com “linho finíssimo” e a protege (19:8), a besta e seus mínions destroem a prostituta, a deixam nua, servem sua carne e a queimam no fogo (17:16), sem que o dragão defenda sua amante. No reino do dragão, a infidelidade é norma.
Quando esse sistema religioso for destruído, Satanás assumirá a identidade de Cristo e se manifestará como a personificação Dele (2Ts 2:3-10; O Grande Conflito, p. 624). Mas isso não torna o diabo em si a besta escarlate, a estrutura humana que possibilitará seu domínio sobre o planeta por um curto período antes da volta de Jesus. Contra o dragão infiel e mentiroso, apoiado por sua monstruosa besta escarlate, o Cavaleiro Fiel e Verdadeiro, em Seu cavalo branco, guerreia com justiça e protege o reino (Ap 19:11).
O Apocalipse não é apenas uma obra-prima literária polissêmica, política ou anti-imperial, mas uma metanarrativa escatológica. Mais que um épico, é a história de uma guerra cósmica que envolve dragão, noivas, cidades e reinos. E, como em toda boa história, o clímax fica para o fim. Primeiro, o Noivo enfrenta a rainha má e destrói seu domínio; em seguida, prende o desafiante para destruí-lo mil anos depois. A questão é se estaremos do lado do Herói ou do vilão.
Marcos De Benedicto (via Revista Adventista)
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