quinta-feira, 4 de maio de 2023

AS FAKE NEWS E O APOCALIPSE

Vivemos na era das fake news, um tipo de jornalismo, propaganda ideológica e talvez até mesmo uma abordagem à vida que lança mão de informações incorretas de maneira deliberada. Mensagens falsas são escritas e postadas com a intenção de criar a própria “verdade”, esconder motivações e atos pessoais e, numa esfera mais ampla, enganar organizações e/ou indivíduos, obter vantagens financeiras ou políticas e prejudicar outros.

As notícias falsas costumam ser espalhadas com alegações sensacionalistas, exageradas ou inverídicas a fim de atrair a atenção. Não se limita às mídias sociais, mas também são encontradas na política, em pesquisas de mercado, na ciência, no mundo religioso e em vários outros lugares.

Ao passo que enganos e informações intencionalmente equivocadas sempre acompanharam a humanidade (desde a serpente no paraíso), parece que a situação alcançou um nível inesperado e assustador, uma vez que se tornou quase impossível discernir a verdade das mentiras e falsidades.

VERDADE E MENTIRA
Alexander Schwalbe reconhece que há “mentiras e enganos por toda a parte”. E observa: “No processo de secularização, Deus perdeu a centralidade. [...] A fragmentação da realidade e a dissolução de nossa experiência anterior de mundo parecem ser sucedidas por uma destruição da verdade. Após Deus ser esquecido, [...] a verdade também pode ser esquecida” (“Die Gotteskrise und die Lust zu lügen”, Christ in der Gegenwart 68, 2016).

“Mentir é o pecado do anticristo (1Jo 2:22) e todos os mentirosos habituais perderão a salvação eterna (Ap 21:27)”, ressalta A. Flavellem (“Lie, Lying”, New Bible Dictionary [InterVarsity, 1996], p. 687). Infelizmente, os cristãos são afetados por esse problema. Queiramos ou não, a cultura exerce influência sobre nós e, até certo ponto, nos molda. Na esfera pública, as mentiras costumam ser aceitáveis e não são punidas, a menos que se trate de perjúrio. As “mentiras brancas” são consideradas toleráveis ou talvez até mesmo necessárias. Por exemplo, no mundo mediterrâneo, o engano “é uma estratégia para estabelecer e proteger a honra, bem como para lançar vergonha sobre os inimigos” (John J. Pilch e Bruce J. Malina [eds.], Handbook of Biblical Social Values, 3ª ed. [Cascade, 2016], p. 38).

Mesmo que professemos aceitar os Dez Mandamentos, consideramos alguns mais importantes que outros. Mentira, fake news e teorias da conspiração são consideradas transgressões triviais, ao passo que o assassinato é visto como um crime grave. Em geral, as consequências do adultério são mais dramáticas que os efeitos de uma mentira. Entretanto, é possível levar pessoas ao suicídio com uma mentira ou incitar uma perseguição depois de fazer alegações falsas. Uma ofensa contra o mandamento que fala do engano é tão grave quanto a desobediência a qualquer outro mandamento.

G. H. Clark argumenta: “É preciso ter em mente que as verdades morais e espirituais são tão verdadeiras quanto as verdades matemáticas, científi cas e históricas. Todas são igualmente ‘intelectuais’: uma verdade não intelectual é impensável. Não é verdade que o conceito comum de verdade como fato ou o que é real ‘não tem mais relevância moral ou espiritual’. É só nos lembrarmos de que foi Deus quem nos deixou os Dez Mandamentos” (“Truth”, Evangelical Dictionary of Theology [Baker, 1984], p. 1114).

A MENTIRA NO LIVRO DE APOCALIPSE
No livro de Apocalipse, há nove textos sobre o tema da mentira. Há falsos profetas mentirosos (pseudés, Ap 2:2). Alguns indivíduos afirmam ser judeus, mas não são. Estão mentindo (pseudomai, Ap 3:9). O falso profeta (pseudoprophétés, Ap 16:13; 19:20; 20:10) espalha mentiras e falsidades. Três textos descrevem as consequências terríveis para os mentirosos (Ap 21:8; Ap 21:27; Ap 22:15). Felizmente, existe um grupo dos seguidores verdadeiros de Jesus, os 144 mil: “Não se achou mentira [pseudos] na sua boca” (Ap 14:5). Essas passagens nos fornecem as seguintes informações:

Se existe mentira, então também deve haver verdade. Sem verdade, não há mentira. Enquanto a verdade hoje é questionada e as pessoas não conseguem mais diferenciar entre a verdade e a mentira, o caos se descortina bem diante de nossos olhos. Em termos conceituais, a mentira e o engano estão intimamente ligados. Jezabel, alegando ser profetisa, seduz (planaó) os servos de Deus (Ap 2:20). Satanás engana (planaó) o mundo inteiro (Ap 12:9), isto é, todos os povos e todas as nações que o seguem (planaó, Ap 20:3, 8, 10). A besta que emerge da terra “seduz [planaó] os que habitam sobre a Terra” (Ap 13:14). Por ser um falso profeta (pseudoprophétés), desempenha sinais milagrosos, enganando (planaó) aqueles que recebem a marca da besta e os que adoram sua imagem (Ap 19:20). Babilônia engana (planaó) todas as nações por meio de sua feitiçaria (Ap 18:23). Logo, engano e mentiras são temas importantes em Apocalipse.

Em contrapartida, o livro usa a palavra “fiel” ou “verdadeiro” (aléthinos). Deus (Ap 6:10) e Jesus (Ap 3:7, 14; 19:11) são verdadeiros; portanto, os caminhos de Deus (Ap 15:3), Seus juízos (Ap 16:7; 19:2) e Suas palavras (Ap 19:9; 21:5; 22:16) também são. Mentira é mentira e verdade é verdade. A verdade é absolutamente verdadeira, coerente e consistente. Ela não pode ser misturada a mentiras. Caso contrário, deixa de ser verdade. Verdade e mentira são opostas e mutuamente excludentes. A verdade corresponde ao caráter de Deus; a mentira reflete o caráter de Satanás. Assim, a verdade deve ser personificada nos seguidores de Jesus. Meias verdades e mentiras brancas não têm lugar entre os cristãos. Ignorar a verdade significa se prostrar diante da mentira.

É extremamente perigoso mentir. O Apocalipse faz declarações bem francas sobre a mentira. Aborda os mentirosos e aqueles que amam e praticam a mentira. Uma vez que o reino de Deus é verdade, os mentirosos, os enganadores e aqueles que conscientemente se permitem ser enganados não têm lugar nesse reino. Mentir é tão grave que exclui o acesso à Nova Jerusalém e a Deus, conduzindo à segunda morte, que é eterna.

Mentiras e enganos ameaçam a comunidade cristã e os cristãos individualmente. A mentira destrói completamente a fé ou altera o conteúdo da fé, de modo que deixa de representar corretamente o caráter, a vontade e o plano de Deus para a humanidade. Portanto, o mentiroso se rebela contra Deus e rompe o relacionamento com Ele. Mas a mentira também tem potencial para destruir os relacionamentos humanos.

D. W. Gill destaca algumas consequências da mentira: “Mentir é errado, em primeiro lugar, porque nos aliena de Deus, que é a própria verdade. Segundo, a mentira destrói a comunidade e os relacionamentos interpessoais [...]. A confiança essencial para a construção da comunidade é minada. O terceiro problema da mentira é que ela destrói o mentiroso em si. A contradição entre o conhecimento da verdade e a participação do indivíduo na mentira é uma rendição desumanizante da plenitude e integridade pessoais. Além disso, uma mentira leva inexoravelmente a outras para acobertar a primeira. A teia da falsidade gera uma espécie de cativeiro, que é a situação oposta do conhecimento e da prática da verdade que liberta” (“Lie, Lying”, Evangelical Dictionary of Theology [Baker, 1984], p. 639).

Há mentira não só como ato individual, mas também como sistema. Existem mentiras individuais e há também a falsidade coletiva. Isso pode ser identificado no falso profeta, controlado por poderes demoníacos, e nos falsos apóstolos. A Babilônia apocalíptica engana a humanidade para alcançar seus objetivos. Isso é feito para desencaminhar o cristianismo e os seguidores fiéis de Jesus.

• Somos responsáveis pela mentira. É claro que circunstâncias difíceis podem levar as pessoas a tentar escapar delas por meio do uso de mentiras – por exemplo, quando parece não haver uma boa alternativa e a honestidade pode ser considerada um risco à vida. Contudo, somos responsáveis pela nossa maneira de lidar com tais situações. Carl Zuckmayer (1898-1977), escritor e dramaturgo alemão, cujo pai era de origem judaica, mas se converteu ao cristianismo, teve problemas com o regime nazista. Quando tentou fugir para a Suíça, foi interrogado por um oficial nazista na fronteira. Em vez de mentir em relação a seus problemas, admitiu que não era membro do partido, que suas obras haviam sido proibidas na Alemanha e que não concordava com a visão de mundo do Nacional-Socialismo. No entanto, em vez de prendê-lo, o oficial ficou tão pasmo com a honestidade de Zuckmayer que o ajudou a atravessar a fronteira até a Suíça e chegar ali em segurança (“Ehrlichkeit”, em Lesebuch fur den Religionsunterricht für 14-16 Jahrige [Calwer Verlag Stuttgart, 1969], p. 167-170). Porém, não renunciamos à mentira apenas por esperar que as coisas deem certo. Isso nem sempre acontece. Nós a rejeitamos porque é certo falar a verdade e errado mentir, a despeito das circunstâncias.

Somos responsáveis não só quando mentimos, mas também quando aceitamos a mentira. Apocalipse 22:15 fala sobre o amor à mentira. De maneira semelhante, Paulo declarou: “É por este motivo, pois, que Deus lhes manda a operação do erro, para darem crédito à mentira, a fim de serem julgados todos quantos não deram crédito à verdade; antes, pelo contrário, deleitaram-se com a injustiça” (2Ts 2:11, 12). É claro que a pessoa pode apreciar o escândalo. Mas isso é tão repreensível quanto mentir. Os seguidores de Jesus são comprometidos com a verdade.

Felizmente, existem pessoas que se distanciaram completamente da mentira. O contexto deixa claro que elas adoram a Deus e guardam Seus mandamentos. Estão claramente do lado de Deus, confiando em Seu poder e amor para tomar as decisões certas em meio às situações mais difíceis. Comprometeram-se com a verdade e a proclamam (Ap 14:6 a 12). Portanto, automaticamente expõem o engano.

DESDOBRAMENTOS
O compromisso com a verdade e a oposição à mentira, à falsidade e ao engano levam aos seguintes desdobramentos:

1. Rejeitamos o plágio em todas as suas formas. Mesmo que seja comum em círculos eruditos ou nem tão eruditos assim, não reivindicamos o trabalho de outras pessoas como se fosse nosso. Não trapaceamos.

2. Não condescendemos com teorias da conspiração e não as proclamamos publicamente. Elas não podem ser comprovadas. A necessidade de se retratar ou a comprovação de que estavam erradas podem causar prejuízos à causa de Deus. Também precisamos ser tão objetivos quanto possível e avaliar a questão com base em perspectivas diferentes. As mensagens claras devem ser proclamadas em relação aos pontos em que as Escrituras são inequívocas.

3. Evitamos usar dois pesos e duas medidas. É problemático tentar promover o que é bom de maneira antiética porque achamos que o bom deve ser propagado a qualquer custo. Em nome da verdade, a moralidade muitas vezes é facilmente abandonada. Os fins não justificam os meios.

4. Nós nos comprometemos de forma clara e individual com Jesus. Não O negamos com nossa conduta, complacência ou covardia. Pagamos os impostos ao governo. Apoiamos a justiça. Mas, acima de tudo, somos leais a Deus e à verdade.

5. O cristianismo é especialmente afetado por mentiras e teorias da conspiração promovidas em mídias sociais e outros ambientes. As fake news não são engraçadas, nem uma forma de entretenimento, mas, sim, absolutamente destrutivas. Afinal, se tudo é questionado e a verdade não consegue mais ser identificada, como as bases do cristianismo podem ser exaltadas? A mentira não só desintegra nossa cultura e coexistência, como também destrói o cristianismo e a vida de cada pessoa.

Para concluir, sim, existem mentiras e falsidades, conforme o Apocalipse admite. Há até mesmo o perigo de adquirir o hábito de mentir, de aprender a amar tanto a mentira quanto a falsidade e de ser excluído da cidade de Deus. Mas existem também cristãos verdadeiros, que se distanciaram da mentira. Estão comprometidos com a verdade em todas as suas formas, sobretudo com a Verdade personificada, Jesus. Não podemos reivindicar a verdade e proclamar a verdade se nós mesmos não buscamos ser verdadeiros.

No fim, o que é verdadeiro ainda conta. J. Hamel parece estar correto ao dizer: “A questão não é se opor a pontos de vista possivelmente errados. É muito mais: por meio de nós, Deus quer trazer à tona Sua verdade e libertar as pessoas do poder da mentira” (“Von Wahrheit und Lüge”, em Christliche Ethik [Vandenhoeck and Ruprecht, 1966], p. 57). A verdade liberta.

Ekkehardt Mueller (via Revista Adventista)

Este artigo foi extraído e adaptado da newsletter do Instituto de Pesquisa Biblica, Reflections (abril-junho de 2020), e traduzido por Cecília Eller.

"Tudo quanto os cristãos fazem deve ser tão transparente como a luz do Sol. A verdade é de Deus; o engano, em todas as suas múltiplas formas, é de Satanás; e quem quer que, de alguma maneira, se desvia da reta linha da verdade, está-se entregando ao poder do maligno" (Ellen G. White - O Maior Discurso de Cristo, p. 68).

Nenhum comentário:

Postar um comentário