quinta-feira, 19 de outubro de 2023

A VIDENTE DE ENDOR

Os israelitas estavam em guerra novamente. Dessa vez, as tropas de Saul se preparavam para enfrentar os poderosos filisteus. O local da batalha era o vale de Jezreel, uma área estratégica para controlar as importantes rotas de comércio da região. O povo de Israel montou seu acampamento no monte Gilboa, a poucos quilômetros do exército filisteu, em Suném (1Sm 28:4). A cena intimidou Saul (v. 5) e, para piorar, Deus não respondia a seus apelos por meio de sonhos, Urim ou dos profetas, modos legítimos de revelação nos tempos bíblicos (v. 6). Por recomendação de seus servos, o rei foi ao encontro de uma necromante na cidade de Endor (v. 7, 8), a moderna Khirbert es-Safsafe, aproximadamente sete quilômetros do monte Gilboa, e muito próxima do acampamento filisteu. Saul se disfarçou (v. 8) justamente para não correr o risco de ser identificado como líder dos israelitas. Ele estava entrando em terreno inimigo.

Esse é o pano de fundo da narrativa mais importante das Escrituras relacionada ao envolvimento de um israelita com a necromancia, a prática de buscar os mortos com o propósito de revelar o desconhecido ou prever o futuro.1 Explicitamente condenada no Antigo Testamento (Lv 19:31, Dt 18:10-11 e Is 8:19), a necromancia é bem atestada no Antigo Oriente Médio, e os textos daquela região podem ajudar o leitor moderno a ter uma compreensão mais adequada do que ocorreu naquela noite em Endor.

A necromante
Em 1 Samuel 28:7, ela é chamada de ‘ešet ba‘alat’ ‘obh, uma expressão que geralmente é traduzida como “uma mulher que invoca espíritos” (NVI) e “uma mulher que seja médium” (ARA). A personagem era uma intermediária entre os vivos e os mortos; não uma bruxa, como é costumeiramente apresentada, mas uma necromante. No entanto, a descrição do versículo 7 pode ser também traduzida como “uma mulher [que serve] a senhora dos espíritos ‘obh.” Essa “senhora” provavelmente seja Shapshu, uma deusa solar do panteão da cidade de Ugarite, atual Ras Shamra, na Síria.2 Os textos de Ugarite são de extrema importância para entender a religião cananita no período bíblico. Neles, Shapshu é descrita em textos mitológicos e religiosos como alguém capaz de trazer o espírito dos mortos do submundo para o mundo dos vivos durante a noite. É possível que essa deusa fosse um tipo de “padroeira” da necromante de Endor. Isso também poderia explicar o motivo do rei e de seus servos terem ido consultá-la à noite (v. 8, 20, 25). Invocar os mortos durante a noite também era uma prática confirmada por textos de Ugarite e dos Hititas, uma importante civilização que governou parte do Antigo Oriente Médio durante o 2º milênio a.C.

O fato de Saul ter evitado alimentos durante o dia (v. 20) parece indicar um certo requisito para aquele ritual de necromancia. O objetivo? Assegurar a liderança “divina” para a ocasião. Um exemplo da importância do jejum no contexto de consulta a uma divindade no Antigo Oriente pode ser visto em 2 Crônicas 20, em que o rei Josafá reúne toda a nação e proclama um jejum nacional com o objetivo de buscar ao Senhor (v. 3, 4). Os termos hebraicos utilizados nesses versos para essa “busca” a Yahweh, baqash e darash (v. 3, 4) são os mesmos usados em 1 Samuel 28:7. Portanto, parece não ter sido mera coincidência o jejum de Saul nessa situação.

O ritual
A terminologia usada no diálogo entre o monarca israelita e a necromante apresenta muitas pistas que explicam as crenças dessa mulher. A palavra “espírito” no versículo 8 é o termo hebraico ‘obh, que provavelmente é emprestado da língua hitita (api) e que também é encontrado em documentos sumerianos, acadianos e ugaríticos. Seu significado básico nessas línguas é “fossa/poço para sacrifício”.3 Existem alguns exemplos em textos encontrados nas terras bíblicas onde fossas ou poços eram usados para rituais de necromancia. O exemplo mais antigo é o conto “Gilgamesh, Enkidu e o Submundo”, produzido na cidade de Nippur, no sul da Mesopotâmia, atual Iraque. Nessa história, o amigo de Gilgamesh, Enkidu, volta do mundo dos mortos através de um buraco cavado no chão.4

Alguns textos hititas também descrevem rituais de necromancia nos quais se utilizam poços no chão. Nesses relatos, uma “mulher velha”, em hitita haššawa, realiza uma cerimônia noturna na presença de vários religiosos, incluindo exorcistas, sacerdotes e médicos. Nos poços, também chamados de “fossas para sacrifício”, era colocado sangue de vários animais, entre eles porco, cachorro, aves e cordeiro. Além do sangue, uma mistura de azeite, mel, queijo, leite, vinho e cerveja era oferecida como libação às divindades do submundo. Todos esses elementos eram despejados dentro da fossa. Curiosamente, outros dois objetos eram colocados ali: uma orelha de prata, símbolo do desejo dos adoradores de ouvir a mensagem do submundo, e uma pequena escada de prata, simbolizando a vontade dos adoradores de que o espírito requerido saísse do poço. 5 O último exemplo vem de Ugarite, onde no conto de Aqhat (2Aqht I, linhas 26-29), o “espírito de um poço” é mencionado.

Por causa dessas informações, creio que a primeira parte do versículo 8 deva ser lida “invoque para mim através de um poço/fossa de sacrifício”, ao invés de “invoque um espírito para mim”. A segunda parte do mesmo texto concorda com essa proposta quando diz “fazendo subir aquele cujo nome eu disser” (ARA). A presença do verbo hebraico ‘alah, “subir”, faz sentido se ‘obh for um poço/fossa de sacrifício, como descrito no parágrafo anterior.

A necromante descreveu seu transe no versículo 13 com as palavras: “vejo deuses que sobem da terra”. A Almeida Revista e Corrigida traduziu corretamente do original, ao contrário das outras traduções consultadas, que traduziram o sujeito da frase no singular: “um deus que sobe da terra”. Esse é um detalhe importante numa leitura atentiva do texto. A mulher está vendo “deuses que sobem da terra” (v. 13), plural, mas Saul quer saber “qual é a aparência dele” (v. 14), singular. Temendo por sua própria vida (v. 8-12), a mulher aproveitou o intenso desejo de Saul para falar com Samuel e disse o que ele gostaria de ouvir, “um ancião [...] envolto numa capa” (v. 14), uma descrição extremamente vaga.

O substantivo hebraico ‘Elohim (v. 13), Deus ou deuses, dependendo do contexto, também demonstra a familiaridade do autor bíblico com o pano de fundo religioso do Antigo Oriente. Nos textos da Mesopotâmia, por exemplo, a palavra “fantasma” é precedida pelo sinal utilizado para identificar divindades (dingir) e, às vezes, o substantivo “deuses” é usado para se referir aos “mortos”. Esse mesmo conceito era conhecido em Canaã, onde os mortos eram aparentemente adorados como deuses (cf. Nm 25:2; Sl 106:28).

Apesar de os textos religiosos dos vizinhos de Israel relatarem em detalhes o processo de invocação de um espírito, na descrição de 1 Samuel 28 não há encantamentos ou feitiços recitados pela mulher durante o ritual, provavelmente devido à natureza pagã deles. O único vislumbre disso no relato bíblico é o uso do verbo hebraico qara’, “chamar”, usado para descrever a invocação de Samuel (v. 15). Essa é a mesma raiz verbal usada em textos ugaríticos para detalhar a invocação dos mortos.

No fim da cerimônia, a mulher sacrificou (zabah) um bezerro e pediu que Saul o comesse (v. 24). Em textos ugaríticos e hititas, sacrifícios eram feitos antes da manifestação de um espírito, a fim de convidá-lo para a reunião necromântica. Aqui o sacrifício foi feito no fim do ritual. Qual o motivo? Um texto acadiano da cidade de Nínive (K 2779) tem instruções de como fazer sacrifícios após um ritual de consulta aos mortos. Eles deveriam ser feitos ao deus do submundo na Mesopotâmia, Shamash, e para o morto consultado, a fim de proteger o ofertante de consequências mortais após o contato com aquele espírito.6 Contudo, para Saul, a “função protetora” do sacrifício em Endor foi ineficaz. No dia seguinte, quando a batalha contra os filisteus estava chegando a um fim trágico para Israel, ele cometeu suicídio, e três de seus filhos foram mortos no monte Gilboa, no vale de Jezreel (1Sm 31:2-6). O rei não foi protegido das consequências mortais para aqueles que decidem consultar médiuns e feiticeiros e não Yahweh (cf. Is 8:19).

As evidências apresentadas acima sugerem que o autor de 1 Samuel estava familiarizado com a terminologia e os procedimentos usados nos rituais de necromancia do Antigo Oriente. No entanto, uma pergunta deve ser respondida: Samuel realmente foi trazido do mundo dos mortos pela necromante? A resposta é um enfático não. É muito claro no versículo 6 que Deus não estava Se comunicando com Saul. O que aconteceu em Endor não teve a aprovação divina. Além disso, a Bíblia ensina que a morte é um período de total inconsciência (Ec 9:5-6, 10). Um detalhe importante da história em discussão é que o rei não viu o suposto espírito de Samuel, apenas a necromante o viu (v. 13, 14). Como dissemos, a descrição da mulher foi muito vaga: um ancião vestindo um manto (v. 14). Essas características levaram Saul a reconhecer (‘yada) que “Samuel” fora trazido de volta (v. 14). Não houve identificação visual, apenas um diálogo entre os dois.

Conclusão
Pode causar desconforto ao leitor da Bíblia o fato de o texto claramente dizer “Samuel” ao referir-se a esse espírito. Entretanto, é importante lembrar que as histórias bíblicas são narradas muitas vezes do ponto de vista dos personagens envolvidos. Para a necromante, e especialmente para Saul, aquela entidade era o falecido profeta Samuel. Contudo, à luz de outras porções das Escrituras, sabemos que isso não é possível. Ao contrário da crença dos povos vizinhos de Israel, que faziam diferenciação entre alma e corpo, o ensino bíblico é muito simples: não há separação entre esses dois elementos. As 754 ocorrências da palavra hebraica nephesh, traduzida como “alma” em algumas passagens do Antigo Testamento, nunca carregam o significado de uma entidade separada do corpo, capaz de viver quando este não existe mais.7 Se o profeta Samuel não foi trazido da morte por esse ritual de necromancia, a melhor explicação para o que ocorreu em Endor é chamar aquele incidente de uma manifestação demoníaca para ludibriar Saul. Se o monarca israelita foi até a necromante em busca de orientação divina, o que ele encontrou foi mais desespero diante do exército filisteu. O rei de Israel saiu do pequeno vilarejo de Endor sem esperança nenhuma. Se Satanás pode se disfarçar como anjo de luz (2Co 11:14), um de seus demônios poderia fazer o mesmo, fingindo ser o profeta Samuel.

Luiz Gustavo Assis (via Revista Ministério)

Referências
1 Erika Bourguignon, “Necromancy”, em The Encyclopedia of Religion, ed. M. Eliade (Nova York: Macmillan, 1987), 10:345-347; Brian B. Schmidt, Israel’s Beneficent Dead: Ancestor Cult and Necromancy in Ancient Israel Religion and Tradition (Winona Lake: Eisenbrauns, 1994), p. 154.

2 Esther J. Hamori, Women’s Divination in Biblical Literature: Prophecy, Necromancy and Other Arts of Knowledge (New Haven, CT: Yale University Press, 2015), p. 106; David T. Tsumura, The First Book of Samuel (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2007), p. 631.

3 Harry A. Hoffner, “Second Millennium Antecedents to the Hebrew ‘Ob”, Journal of Biblical Literature, v. 86, n. 4 (1967), p. 385-393.

4 Benjamin Foster, The Epic of Gilgamesh (Nova York: W. W. Norton and Company, 2001), p. 138.

5 Billie Jean Collins, “Necromancy, Fertility and the Dark Earth: The Use of Ritual Pits in Hittite Cult”, em Magic and Ritual in the Ancient World, eds. Paul Mirecki e Marvin Meyer (Leiden: Brill, 2002), p. 224-242.

6 Benjamin R. Foster, Before the Muses: An Anthology of Akkadian Literature (Bethesda, MD: CDL Press, 1996), 2:637-638.

7 William Dyrness, Themes in Old Testament Theology (Downers Grove: InterVarsity, 1979), p. 85: “Seres humanos vivem como almas, eles não ‘possuem’ almas.” Ellis R. Brotzman, The Plurality of ‘Soul’ in the Old Testament with Special Attention Given to the Use of Nepeš (tese de doutorado, New York University, 1987), p. 222: “A ênfase do texto [Gn 2:7] é sobre o homem como um nephesh, uma criatura, uma unidade. A ideia desse texto, e do Antigo Testamento inteiro, é completamente oposta à noção grega da ‘alma aprisionada’ no corpo, e à ideia expressa em algumas divisões do pensamento protestante, que ensinam que o caminho para justiça é encontrado ao subjugar o corpo e exaltar ‘a parte mais elevada do homem’. O termo nephesh descreve o ser humano como um todo.”

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