Não sei como os pintores renascentistas pintavam os anjos como pequenos bebês rechonchudos, nus, orbitando como libélulas em volta dos santos com olhos lacrimosos.
- Não temas! - disse o imenso ser numa voz de muitos tons, nada parecido com algo humano, terreno ou descritível. Era apenas apavorante, mas depois que ele ordenou, o medo instantaneamente extinguiu-se. Trazia uma mensagem, uma carta selada da parte de Deus.
Depois que assinei o comprovante de entrega, o anjo, com um leve tapinha nas costas, sacolejou as seis asas e desapareceu entre penas de luz que se evaporaram na minha frente.
Depois que assinei o comprovante de entrega, o anjo, com um leve tapinha nas costas, sacolejou as seis asas e desapareceu entre penas de luz que se evaporaram na minha frente.
Quebrei o selo de cera com o símbolo do céu e li:
“É com pesar que informamos que já agora, pela manhã, você extrapolou o numero de pecados permitidos, ultrapassando a cota de acesso ao paraíso, tornando-se cidadão de risco para a Glória, inviabilizando sua estadia pela eternidade nos pomares de Deus.
Na última semana, você mentiu descaradamente ao telefone uma dezena de vezes em apenas uma manhã (de certo que procurará justificar-se devido ao numero de ligações de call centers, aborrecendo-o com ofertas de serviços que você nunca aceitaria. Claro que isso foi ideia lá de baixo, mas um erro não justifica outro).
Sua tendência à glutonaria, seu interesse eventual por sexo ilícito (é... pensar nessas coisas também conta: compreenda tudo que dentro de você indica isso), sua agressividade aleatória em pontos tão ordinários (como o dedinho no pé do armário, a fechada desatenta de um motorista de ônibus, o desaforo sarcástico de um gerente mal intencionado). Fora sua cota de orações diárias: um fiasco em quantidade e qualidade - ainda mais quando caía nas vãs repetições, como se Deus fosse um caça-níquel onde você vai tentando com sua oração-moedinha, até que consiga a combinação certa e alcance o prêmio almejado.
Enfim: por não ser mais do nosso interesse sua afiliação, compreenda o porquê de tal aviso prévio ser tão resumido e sem o extrato detalhado de sua pecança.
Esperamos que tenha uma boa vida, optando pelas opções restantes no mercado.
Cordialmente
C. S. Blues
Coordenador do Senior
DDD (Departamento de Descartes de Deus)
Sinceramente? Já esperava isso. Não que tenha sido uma grande surpresa que realmente existisse um céu, e um Deus lá. Essa incerteza já era passada.
É que sempre que me aconselhava com outro cristão, sempre se mostravam mais firmes, retos, infalíveis, e tinham todas as respostas, toda a resistência para qualquer eventual tentação. Eu fingia que era assim também, mas sempre soube quem realmente eu era (intimamente sempre havia um choro desesperado para que isso mudasse, mas as forças pareciam não bastar mais. Só eles tinham força ilimitada).
Agora, que já estava eternamente condenado, olhei para a vida e vi o que restava fazer: Fui ao guarda-roupa e peguei minha roupa de sábado a noite na balada, procurei meu perfume importado, pus no bolso meu sal de fruta, peguei as camisinhas: “Hoje eu vou aproveitar!”
Foram poucos segundos até chegar à garagem, para me deparar com o tal mundo novo que havia ganhado: não havia nada de novo, era o velho mundo cinza, fétido, chato, cheio de violência e sem consolo. Como não havia mais Deus para mim, restava todo resto conhecido de sua criação, mas como eu havia visto, de longe, sua Terra Prometida (não tanto pela terra, mas pelo Governante dela, só não tinha me dado conta disso), tudo aquilo me parecia murcho, não havia a magia que fazia me sentir como um nobre em terras estranhas. Era o mundo de volta, mas sem Deus.
Olhei no vidro do carro que me refletia e o que vi foi alguém horrível, ridículo, cheirando à perfume barato e cheio de vil egoísmo.
Como quem desperdiça uma grande paixão, e só se dá conta quando percebe a falta que ela faz, larguei tudo no chão, e em desesperado pranto, voltei para cama, implorando com lágrimas ao travesseiro que tudo fosse apenas um pesadelo, e que eu acordasse logo. Queria que o anjo jamais tivesse sido visto e que o tal DDD. fosse apenas fruto de minha imaginação.
Deixo para os ateus viverem em um mundo sem deus.
Minha oração é que Ele permaneça em mim, mesmo em incompreensível silêncio.
Zé Luís - Cristão Confuso
Nenhum comentário:
Postar um comentário