A doença psíquica não é diferente das outras doenças. Ela é, apenas mais cruel, porque é invisível. Não há sinais físicos correlatos para quem sofre um transtorno de personalidade; não há febre; não há manchas espontâneas na pele; não há inchaços; nada que se possa ver num exame de raio x, ou mesmo numa sofisticada ressonância magnética. A doença psíquica é íntima apenas de quem convive com ela. E, mesmo assim, pode ser uma íntima desconhecida; dada sua natureza volátil e instável. Os transtornos de personalidade não têm nenhuma lógica que os possa explicar. E, aqueles que sofrem com essas doenças, ainda têm que lidar com um inimigo ainda mais implacável e cruel: o preconceito!
O Transtorno de Personalidade Borderline é caracterizado por um comportamento padrão regido por instabilidade nas relações interpessoais; autoimagem distorcida; dependência afetiva e excessiva impulsividade. Essa combinação explosiva mantém a pessoa numa condição mental perturbada, posto que ela pode ser acometida pelos sintomas de forma inesperada e violenta, transformando sua vida numa experiência caótica, intensa e dolorosa.
É na fase inicial da vida adulta que se observa maior ocorrência no surgimento do TPB. A denominação Transtorno de Personalidade Borderline foi usado pela primeira vez em 1884 e a partir disso, seu diagnóstico e tratamento passaram por várias modificações no decorrer dos anos. No início, enquadravam-se no termo pacientes cujo quadro oscilava entre a sanidade e a loucura, entre a neurose e a psicose; em função disso usou-se o termo “borderline”. O diagnóstico aparecia relacionado a sintomas neuróticos graves. A precisão no diagnóstico começou a se desenhar na década de 1980; antes disso, a maioria dos médicos tinha a crença de que a personalidade era algo definitivo, imutável; e, portanto não poderia ser objeto de observação e estudo para determinar qualquer tipo de doença.
São várias as causas envolvidas na instalação de um quadro de Transtorno de Personalidade Borderline: predisposição genética; experiências tráumáticas na infância ou adolescência; abuso; negligência; e, até fatores ambientais e sociais (guerras; acidentes causados por fenômenos naturais). É prevalente a ocorrência de TPB quando há parentes de 1º grau com esse transtorno. Famílias instáveis, formada por pais agressivos ou envolvidos em relações muito conflituosas e violentas são outro fator de desencadeamento de TPB. Crianças submetidas a uma educação excessivamente autoritária, com exigência completa de submissão e obediência, também podem desenvolver o transtorno, pois têm seu desenvolvimento cognitivo e emocional deformado por dúvidas profundas acerca de suas capacidades e excessivo sentimento de culpa e vergonha por seus fracassos, por mais naturais e típicos que sejam. No entanto, embora seja bem menos frequente, observa-se a ocorrência deste transtorno em indivíduos que não se enquadram em nenhum dos critérios previstos.
Aqueles que são vítimas de Transtorno de Personalidade Borderline vivem num sofrimento profundo. Empenham esforços desumanos na tentativa de evitar situações de abandono, quer elas sejam reais ou imaginárias. Repetem padrões de relacionamentos pautados pela alternância de extremos: ou idealizam demais o objeto de seu afeto, ou o desvalorizam a ponto de humilhar e romper vínculos definitivamente. Lutam com uma dualidade acerca da percepção que têm de si mesmos: ou se acham “o máximo”, ou se sentem “um lixo”. Submergem em comportamentos impulsivos ou obsessivos que podem variar de gastos excessivos; a sexo irresponsável; abuso de substâncias químicas; compulsão alimentar ou desejo de viver em risco permanente. São acometidos de forma constante por sentimento de menos valia, sentem-se vazios e entediados. Irritam-se facilmente, sendo protagonistas de explosões desproporcionais de raiva que duram algumas horas, mas depois deixam o indivíduo destruído diante de situações muitas vezes irremediáveis e que ele não tem como consertar. Não raras vezes, o portador de TPB mutila-se fisicamente e chega a tentar contra a própria vida.
O caos que envolve a vida do portador de Transtorno de Personalidade Borderline, atinge de forma inexorável aqueles que convivem com ele, sobretudo seus familiares. Muitas vezes, a família e os amigos desistem do portador de TPB, em função da dificuldade em lidar com suas intempestivas oscilações de comportamento. Entretanto, é importante salientar que os sintomas e próprio transtorno são tratáveis por meio de psicoterapia, acompanhamento médico-psiquiátrico e, quando necessário, uso de medicamentos sob prescrição, avaliação e orientação médica, para tratar condições periféricas tais como depressão, insônia, ansiedade, compulsão ou irritabilidade, por exemplo.
O prognóstico é de esperança e possibilidade de uma vida plena, organizada e com qualidade, desde que o paciente receba e persista no conjunto indicado de tratamentos e conte com um anteparo emocional, formado por uma rede afetiva de pessoas que se disponham a enfrentar cojuntamente os inúmeros desafios que os transtornos de personalidades infringem.
O fato é que aquele que vive às voltas com esse alucinante estado emocional em carne viva, sofre. Além das inúmeras contingências cruéis da doença, sofre com as catastróficas experiências amorosas nas quais se envolve; sofre com a falta de capacidade (ainda que temporária) de se comprometer com as mais simples tarefas do dia-a-dia; sofre por perder empregos, por não conseguir terminar o que começa, por não ser possível manter a concentração; sofre porque ser diferente é uma afronta que o outro não tolera porque se acha imune de qualquer tragédia dessas; sofre quando o outro à sua frente trata sua condição mental (grave) como algo imaginário ou um comportamento “para chamar a atenção”.
Assim, caso nos caiba a oportunidade de conviver com um de nós que esteja sendo tragado pelas agruras de uma doença psíquica, procuremos enxergar além da nossa tosca mania de rotular o outro com definições reducionistas. Façamos um pequeno esforço para compreender que nunca seremos capazes de mensurar de fato o quanto é dolorosa a luta de alguém cujo opositor não tem cara, nem coração. Tratemos de nos curar dessa doença epidêmica que é o preconceito. Assim, quem sabe, em vez de torcer o nariz e virar as costas, não sejamos capazes de acolher entre os braços e oferecer um tiquinho da nossa valiosa atenção!
Ana Macarini (via Conti Outra)
Assista este assunto sendo discutido no programa Consultório de Família da TV Novo Tempo, apresentado por Darleide Alves com a neurocientista Rosana Alves.
Nenhum comentário:
Postar um comentário