Vivemos numa verdadeira era do gelo nas relações humanas, uma crise de indiferença mortal. O individualismo extremo se revela numa profunda falta de amor ao semelhante, reflexo da ausência do amor de Deus no coração. Esse frio humano, oposto ao calor humano, se manifesta todos os dias nos assustadores índices de violência no lar, nas ruas, no choque entre culturas, religiões e países.
Quando Cristo olhou para nosso tempo, não poderia dar um diagnóstico mais preciso: “E, por se multiplicar a iniquidade [anomian], o amor [agapē] se esfriará de quase todos [pollōn, “muitos”] (Mateus 24:12). O Salvador não só antecipou nossa era do gelo, mas explicou sua causa. O amor-princípio, de origem divina (agapē) se esfriaria quanto mais se multiplicasse a iniquidade (anomia). Mas o que é anomia? O termo ocorre 14 vezes no Novo Testamento e, em 11 delas, é traduzido como “iniquidade”, e nas três restantes, como “maldade” (duas vezes em Romanos 6:19,) e como “transgressão da lei” (1 João 3:4). A passagem de 1 João é esclarecedora, pois a tradução é determinada pela etimologia da palavra grega anomia (a = “não”, “contra”; nomos = “lei”). Se a essência da lei está no amor a Deus e ao semelhante (Marcos 12:28-31), a essência da iniquidade se revela na rejeição à lei do amor.
Na primeira mensagem às sete igrejas do Apocalipse, lemos um forte chamado de retorno ao “primeiro amor”. “Tenho, porém, contra ti que abandonaste [afekas] o teu primeiro amor [agapen… proten]” (Apocalipse 2:4). Apesar de serem elogiados por Cristo por suas obras, labor, perseverança, zelo doutrinário e resistência diante das maiores provações, os efésios tinham perdido seu “primeiro amor”. Note que eles não estavam no processo de perder, ou quase perdendo, mas já o haviam perdido, como indicam os tempos verbais de “abandonar”, tanto no grego (aoristo) quanto na tradução (pretérito perfeito), que expressam uma ação acabada. É possível que, na luta contra “lobos vorazes”, com seus falsos ensinos, os efésios tinham perdido de vista o mais importante. O problema não era tanto uma corrosão teológica, mas uma perda de essência.
Os cristãos da capital da Ásia Menor haviam recebido a mensagem do evangelho de braços abertos, mas após algumas décadas sua religião estava se tornando “legalista e sem amor”[1]. Talvez, a pressão dos falsos ensinadores tenha desviado o coração de alguns membros e gerado um clima faccioso na Igreja.[2] Na luta contra os falsos ensinos, a Igreja se esqueceu de viver os verdadeiros. Perdeu de vista o agapē, o amor-princípio que vem de Deus – o mesmo tipo de amor mencionado por Jesus e por João, como vimos. Os efésios não tinham perdido apenas o amor que vem de Deus, mas estavam perdendo o amor a Ele e, sem dúvida, o amor tanto pelos de dentro quanto pelos de fora.
A situação particular daquela igreja representava o quadro maior do fim da primeira e mais pura fase do cristianismo: uma igreja fervorosa, doutrinariamente saudável, mas que, ao fim do primeiro século, dava mostras de fadiga. Tinha algum amor, mas não como o “primeiro”. Seu amor a Deus e a Cristo estava se arrefecendo. Em relação aos últimos contemporâneos de Jesus, João entre eles, as novas gerações de cristãos deixavam a desejar.
Cristo, então, vai direto ao ponto: “Lembra-te, pois, de onde caíste, arrepende-te e volta à prática das primeiras obras; e, se não, venho a ti e moverei do seu lugar o teu candeeiro, caso não te arrependas” (Apocalipse 2:5). Três verbos marcam o conselho de Jesus, que serve muito bem para nós, hoje: (1) A igreja precisa se lembrar em que ponto de sua jornada espiritual perdeu seu primeiro amor; (2) também deve se arrepender de seu desvio; e (3) tem que voltar “à prática das primeiras obras”. O amor tem que ver com ação, com a prática de boas obras (Efésios 2:10; Tito 2:7, 14; 3:8; Hebreus 10:24; 1 Pedro 2:12) e não só com teorias ou belos discursos vazios de atitude.
Dias atrás visitei parentes que não pertencem à nossa fé, de uma forma especial: pregando numa igreja próxima da casa deles. Vários foram ao culto e apreciaram a mensagem de exortação e consolo. À tarde, pude visitar alguns desses parentes e conversar com eles. José, um primo que tem paixão pela natureza e pela fé cristã, tinha acabado de chegar de um trabalho em favor de moradores de rua do centro de São Paulo. Ele e um grupo de sua igreja cortam os cabelos e fazem a barba dos moradores de rua, levam-lhes alimentos, limpam suas feridas e aplicam curativos, entre outros serviços.
Naquele dia frio, José me contou que haviam sido pegos de surpresa por uma chuva. Porém, ele compartilhou algo marcante: “Diogo, não sou muito da liturgia; gosto mais de ajudar as pessoas”. José estava onde muitos de nós deveríamos estar. Nossa profissão de fé e adoração se tornam genuínas quando são o clímax da celebração de uma vivência cristã em amor ao longo da semana.
Se a igreja do primeiro século precisava voltar ao primeiro amor, a igreja da era do gelo moral, muito mais. Embora muitas pregações e iniciativas sejam louváveis, precisamos da rara combinação entre uma doutrina sadia, fundamentada na Bíblia, associada a uma fé genuína e impulsionada ao amor prático. As características do povo de Deus nos últimos não se resumem na pregação dos verdadeiros mandamentos de Deus e a fé em Jesus, mas na prática da lei (Apocalipse 12:17; 14:12). Só o amor divino em corações humanos pode aquecer pessoas em meio ao individualismo congelante deste mundo. A iniquidade esfria o amor de muitos, mas não de todos.
Diogo Cavalcanti (via Apocalipses)
[1] Stefanovic, Ranko, Revelation of Jesus Christ. 2 ed. Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2009, p. 118.
[2] Nichol (ed.), Francis D. Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, vol. 7, p. 823.
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