A Bíblia afirma que a criação foi um processo sobrenatural. Desse modo, nossa visão das origens é moldada pelo registro bíblico. Gênesis 1 é a principal passagem a respeito da criação nas Escrituras; contudo, o capítulo fornece apenas um esboço do que ocorreu, e o texto parece ter sido escrito como uma descrição fenomenológica, e não técnica, dos eventos. Isso deixa vários pontos na narrativa abertos a diferentes interpretações.
NO PRINCÍPIO
“No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1:1). Embora não saibamos quando, sabemos que o mundo teve um começo. Deus estava presente antes de todas as coisas, antes do tempo e do espaço. Nós reconhecemos a passagem do tempo pelos eventos no espaço. Se não houvesse espaço, não poderíamos observar nenhum evento e, portanto, não haveria tempo. Então, tinha que haver um começo de tempo e espaço, e Deus estava presente nesse início. De modo especial, é preciso ser dito que Cristo foi o agente divino na criação. João 1:1 a 3 afirma que “todas as coisas foram feitas por intermédio Dele, e, sem Ele, nada do que foi feito se fez”. Assim, no início, Deus fez o “os céus e a terra”. Existem diferentes opiniões sobre o que isso significa. Alguns intérpretes consideram que os céus e a terra se referem ao Universo inteiro, enquanto outros entendem que se relaciona apenas com a Terra. Ao menos três interpretações diferentes foram propostas.[1] Alguns consideram que Gênesis 1:1 se refere à criação do Universo em algum tempo não identificado no passado, com a semana da criação ocorrendo mais tarde. Outros pensam que o texto é somente uma introdução ao relato da semana da criação, referindo-se apenas ao nosso mundo. Há, porém, aqueles que consideram a passagem alusiva à criação do Universo durante a semana da criação. A Bíblia parece indicar que a Terra não foi a primeira parte do Universo a ser criada (Jó 1:6; 38:4-7).[2] Essa ideia é reforçada por evidências físicas, uma vez que, ao se observar as estrelas, nota-se que muitas delas estão tão longe que chegam a distar milhões de anos-luz de nós.
Quanto ao mecanismo físico utilizado por Deus não temos informação. No entanto, as Escrituras afirmam que tudo foi feito pelo poder de Sua palavra (Gn 1:3; Sl 33:6; Hb 1:2, 3; 11:3). Esse processo recebe o nome de criação pelo fiat (“faça-se”, em latim). A criação pelo fiat parece ser fundamental no ensino bíblico das origens. Jesus trouxe o Universo à existência por meio de Sua palavra. Isso implica propósito ou intenção, e os cientistas reconhecem cada vez mais que o Universo parece ter sido projetado.
A narrativa segue dizendo que a Terra “estava sem forma e vazia” (Gn 1:2). Existem várias opiniões quanto ao significado desse versículo.[3] Alguns entendem que a Terra foi criada muito tempo antes da semana da criação e permaneceu sem forma e vazia até a ação descrita em Gênesis (teoria do “intervalo passivo”). Outros acham que o texto se refere ao breve período de tempo entre a criação inicial (v. 1) e a criação da luz (v. 3). Um terceiro grupo defende que Deus não criaria um mundo caótico, então, a Terra deve ter se tornado “sem forma e vazia” depois de uma criação anterior (teoria do “intervalo ativo”). Proponentes das duas primeiras hipóteses reivindicam que declarações de Ellen White apoiam sua posição, mas a questão permanece sem solução. A terceira opinião não tem base escriturística e não deve ser considerada.
Certamente, Deus poderia ter criado a Terra e tudo que ela contém instantaneamente. Em vez disso, Ele criou em etapas, durante seis dias. Para mim, a sequência cuidadosa da criação indica um plano bem estruturado do Criador. Primeiro a Terra foi preparada para sustentar a vida, depois foi preenchida com seres viventes. O processo foi ordenado e proposital.
Alguns intérpretes [4] sugerem um paralelismo na narrativa: nos primeiros três dias, a “terra” foi “formada” para sustentar a vida; nos três últimos, ela foi “preenchida”. No entanto, o paralelo me parece imperfeito (por exemplo, os mares foram formados no terceiro dia e preenchidos no quinto), o que indica que o relato foi baseado na sequência real de eventos, sem a intenção de estruturar um paralelismo.
PRIMEIRO DIA
No primeiro dia,[5] foi dada luz à Terra (Gn 1:3). Não sabemos como isso aconteceu. Existem pelo menos três possibilidades.[6] A primeira, de que essa luz vinha da presença de Deus, uma vez que o Sol foi criado no quarto dia. A segunda, de que essa luz vinha do Sol, que teria sido criado com a Terra, “no princípio”. Por fim, de que a luz vinha de alguma outra fonte, como uma supernova ou outro evento astronômico.
Os proponentes da primeira interpretação podem se apoiar em referências que apontam a luz que vem de Deus (Is 60:20; Ap 21:23; 22:5). Por outro lado, a segunda pode ser apoiada pela referência à “tarde e manhã” de cada dia (por exemplo, Gn 1:5), e também pela afirmação de Ellen White de que os dias da criação foram marcados pelo nascer e o pôr do sol.[7] Por fim, a terceira possibilidade parece menos provável; contudo, as três interpretações parecem consistentes com os ensinos das Escrituras. Essa questão será discutida mais adiante.
SEGUNDO DIA
No segundo dia, Deus criou o “firmamento” ou os “Céus” (Gn 1:6-8). Isso é identificado como o lugar entre as camadas de água, que supomos ser as águas da superfície da Terra e as nuvens. Elas são separadas pela atmosfera, que foi criada no segundo dia.
Alguns dizem que “Céus” refere-se a toda extensão estrelada, porque o Sol estava “no firmamento”. Entretanto, o texto pode ser entendido como uma descrição fenomenológica, uma vez que o Sol apareceu na mesma região onde os pássaros voam. A existência de outros mundos que precedem o nosso (Jó 38:4-7) parece favorecer a leitura de que “Céus” se refere a uma área mais restrita. É desnecessário supor que o Universo inteiro separa nossos oceanos de uma cobertura aquosa “acima do firmamento”.
Outros afirmam que a referência a “firmamento” significa que os hebreus acreditavam que a Terra era uma superfície plana, sustentada por pilares e coberta por uma cúpula metálica. Eles dizem que isso invalida o relato da criação, porque sabemos que a Terra não está coberta por uma cúpula metálica. Contudo, esse argumento é falacioso. Independentemente do que os hebreus pensavam sobre a estrutura da Terra, as águas da superfície do planeta e as nuvens aparecem separadas pela atmosfera, e parece razoável que tenha sido a atmosfera criada no segundo dia.[8] Note que Deus chamou o firmamento de “Céus”.
TERCEIRO DIA
No terceiro dia, as águas da superfície foram reunidas para formar os “mares” e expor a porção seca, que Deus chamou de “terra” (Gn 1:9, 10). Observe que “terra” aqui se refere ao solo, não ao planeta. O céu, a terra e os mares (Êx 20:11, Ap 14:7) são formados e preparados para os seres vivos. Agora eles serão preenchidos.
A vegetação foi criada no terceiro dia (Gn 1:11, 12). Observe que havia vários tipos de árvores frutíferas, cada uma com seu próprio tipo de fruta e semente. Alguns sugerem que são mencionados três tipos de plantas: “relva”, “ervas que davam semente” e “árvores que davam fruto”. Outros sustentam que “relva” é apenas um termo geral, e apenas dois tipos de plantas são apresentados. Em realidade, nenhuma interpretação parece ter qualquer significado teológico.
A frase “segundo a sua espécie” aparece aqui pela primeira vez. Nesse contexto, a sentença poderia significar “cada um tendo seu próprio tipo de semente”. Assim, a descendência de um tipo de planta deve ser distinguida da descendência de outros tipos. A propósito, parece que os hebreus não consideravam que plantas tivessem vida, por isso provavelmente não consideravam a “morte” vegetal como tendo significado moral.
QUARTO DIA
Provavelmente há mais controvérsia sobre os eventos do quarto dia do que a respeito de qualquer outro evento da semana da criação. Pelo menos três interpretações diferentes foram propostas. A primeira afirma que o Sol e a Lua não existiam até o quarto dia. Antes disso, a luz era fornecida pela presença de Deus. Tarde e manhã ocorriam enquanto a Terra girava diante do Senhor. A segunda defende que o Sol e a Lua existiam antes do quarto dia, mas eram obscurecidos por densas nuvens escuras. Elas teriam sido dissipadas um pouco no primeiro dia para fornecer luz, mas o Sol não era visível, tanto quanto não se pode vê-lo em um dia nublado. Desse modo, no quarto dia, o Sol e a Lua ficaram visíveis pela primeira vez. A última sustenta que o Sol e a Lua existiam antes do quarto dia e podiam ser vistos em todos os dias da criação. Entretanto, no quarto dia eles foram designados “para sinais, para estações, para dias e anos”.
O texto não indica qual interpretação está correta. Realmente não sabemos a resposta. De toda forma, Deus é o criador do Sol e da Lua. Ocorreu um evento no quarto dia da criação que resultou no estabelecimento desses luzeiros para marcar unidades de tempo e servir como sinais, como o Senhor determinou.
Além disso, alguns questionam se as estrelas foram criadas no quarto dia. O texto não especifica o tempo quando elas foram criadas. Pelo menos três interpretações foram propostas para entender essa questão: as estrelas foram criadas no quarto dia; as estrelas foram criadas por Deus, mas não se considera o tempo de sua criação; Deus criou a Lua para “governar a noite com as estrelas”.[9] A falta de pontuação no texto hebraico original deixa o versículo um pouco ambíguo. A visibilidade de estrelas a mais de 10.000 anos-luz de nosso planeta parece favorecer a segunda ou a terceira posição.
QUINTO DIA
Gênesis 1:20 a 23 narra o povoamento das águas e do ar com seres vivos. Novamente, observe a expressão “segundo as suas espécies”. Ela parece se referir à variedade de tipos existentes. Essa interpretação sugere que a biodiversidade estava presente desde o início da vida nas águas e no ar. Não há indício aqui da criação de um único ancestral para produzir biodiversidade por meio de mudanças evolutivas.
Note ainda que os pássaros e animais marinhos deveriam se reproduzir e preencher o habitat disponível. Não é dito se a reprodução continuaria quando a Terra estivesse cheia. Com o propósito divino cumprido, a reprodução poderia cessar. Se esse for o caso, não haveria necessidade de morte. Se a reprodução continuasse, a morte poderia ser necessária. Baseado na revelação da vontade de Deus para a Nova Terra em Isaías 11 e 65, e em Apocalipse 21 e 22, acredito que a morte não era parte da criação original, embora existam opiniões diferentes sobre essa questão. De toda forma, o atual sistema ecológico não parece ser uma base para tirar conclusões sobre sistemas ecológicos em um mundo sem pecado.
SEXTO DIA
No sexto dia, Deus povoou a terra com seres viventes (Gn 1:24, 25). Mais uma vez, os animais eram de várias espécies. Diferentes tipos foram criados simultaneamente, e desde o início existiu uma grande variedade. Nada é dito sobre uma biodiversidade que evolui de uma única forma ancestral, embora a língua hebraica seja capaz de expressar essa ideia.
Então, Gênesis 1:26 e 27 apresenta a criação da raça humana. O ser humano é singular entre toda a criação. Só ele foi criado à imagem de Deus. Só ele recebeu domínio sobre a natureza, com a responsabilidade de governá-la sabiamente. A Bíblia enfatiza a natureza distinta dos humanos em relação aos outros animais. Sua singularidade, especialmente em relação à mente, tem sido notada pelos cientistas.
Após receber a bênção e a ordem para reprodução da espécie e governo do planeta (Gn 1:27), o primeiro casal foi instruído quanto à alimentação (Gn 1:28). A vegetação foi criada para ser uma fonte de alimento para animais e seres humanos. Nada é dito sobre a predação aqui, outra razão pela qual defendo a ideia de que a reprodução cessaria quando a Terra estivesse cheia, descartando a “necessidade” da morte.
Agora a Terra estava formada e preenchida. Cada ato de criação preparou o caminho para o próximo. Deus realizou Seu propósito: criar homem e mulher à Sua imagem. O ponto culminante da história da criação, o estabelecimento do sábado, é descrito em Gênesis 2:2 e 3.
O SÉTIMO DIA
A criação não estava completa até que o sábado fosse criado, um dia de comunhão entre Deus e os seres humanos. Essa pode ser a razão pela qual Ele criou em seis dias ao invés de fazer isso instantaneamente. Ao estabelecer um ciclo de sete dias, com o sábado separado para comunhão e adoração, o Senhor indicou Seu propósito ao nos criar: ter companheirismo conosco.
Ao longo da narrativa, Gênesis indica que um plano está sendo seguido. Deus tenciona ter comunhão conosco. Esse plano foi interrompido pelo pecado, mas será retomado quando a Terra for renovada.
James Gibson (Leia o artigo na íntegra em Revista Adventista - Título original: Olhar analítico)
REFERÊNCIAS
1 Niels-Erik Andreasen, “The word ‘earth’ in Genesis 1:1”, <https://tinyurl.com/y4w3h27x>, acessado em 14/2/2019.
2 Ellen G. White, Patriarcas e Profetas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 41.
3 Myron Widmer, “Older than creation week?”, Adventist Review, 13/8/1992, p. 4.
4 Herold Weiss, “Genesis, Chapter One: A theological statement”, Spectrum 9 (4), p. 54-62.
5 Gerhard F. Hasel, “The ‘days’ of creation in Genesis 1: Literal ‘days’ or figurative ‘periods/epochs’ of time?”, <https://tinyurl.com/y23pmnz4>, acessado em 14/2/2019.
6 Larry G. Herr, “Why (and how) was light created before the sun?” Adventist Review, 21/11/1985, p. 8, 9. Ver também Ariel Roth, Origens (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), p. 307-310.
7 Ellen G. White, Testemunhos para Ministros (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 136.
8 Um ponto de vista diferente se encontra em Larry Herr, “Genesis One historical-critical perspective”, Spectrum 13 (2), p. 51-62.
9 Colin L. House, “Some notes on translating [‘and the stars’] in Genesis 1:16”, Andrews University Seminary Studies 25, p. 241-248.
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