quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Espiritualidade e saúde

O tema da mensagem de saúde é um dos assuntos mais controvertidos na Igreja Adventista. Mesmo em uma análise superficial, prontamente se percebe dois grupos: extremistas que vivem como se a reforma de saúde fosse o aspecto mais importante da experiência cristã, e um grupo maior que considera esse importante ponto da mensagem adventista apenas um anexo sem importância para a vida do cristão. 

Nesse conflito, o vegetarianismo está entre os temas mais discutidos. Encontrar a melhor maneira de abordar o assunto não é tarefa simples, especialmente pelas diferenças culturais, sociais e econômicas que existem no mundo. Ellen G. White foi a principal voz no adventismo sobre a mensagem de saúde, e seus livros estabeleceram a base para o estilo de vida adventista. Portanto, compreender e interpretar corretamente o que ela escreveu é o caminho mais coerente e seguro. 

Adventismo e reforma de saúde
O movimento da mensagem de saúde adventista teve como base a grande corrente americana de reformas sanitárias entre os anos 1800 e 1850. Essas reformas criaram as condições necessárias para a compreensão adventista da saúde, conferindo-lhe alto grau de relevância já nos primeiros anos da denominação.1 Em 1848, quatro anos após sua primeira visão, Ellen G. White recebeu as primeiras informações sobre a mensagem de saúde. Ela viu que tabaco, chá e café eram prejudiciais e deveriam ser completamente abandonados.2 

No entanto, sua mais importante visão sobre saúde ocorreu em 6 de junho de 1863, em Otsego, Michigan. Seu conteúdo foi relatado em 16 páginas que descrevem a essência da mensagem adventista de saúde. Entre os muitos princípios apresentados, os mais importantes foram: (1) os que não controlam o apetite tornam-se intemperantes; (2) bolos, tortas e pudins muito substanciosos são prejudiciais; (3) a carne de porco não deve ser consumida em nenhuma circunstância; (4) fumo, chá e café devem ser abandonados; (5) comer entre as refeições prejudica o estômago; (6) cuidar da higiene do corpo e da casa; (7) o consumo de carne é prejudicial ao organismo; e (8) fazer bom uso dos oito remédios da natureza.

Apesar das orientações de Ellen G. White não serem uma completa novidade no contexto das reformas do século 19, a relação da saúde com a espiritualidade constitui o grande diferencial de seus ensinos. A mensagem de saúde estava inserida em um sistema de doutrinas chamado de a verdade presente pelos pioneiros adventistas.4 Em 1900, a autora escreveu: “A verdade presente repousa na obra da reforma de saúde tanto quanto nos outros aspectos do evangelho.”5 Para ela, o cuidado da saúde “não é um apêndice desnecessário à verdade, é uma parte da verdade”.6 

Esse conceito integrado foi fundamental para formar o estilo de vida adventista. Por isso é importante estabelecer uma conexão entre a mensagem de saúde e a espiritualidade. Uma das citações de maior destaque que evidencia essa ligação foi publicada em 1867: “Foi-me mostrado que a reforma de saúde faz parte da mensagem do terceiro anjo, e está tão intimamente ligada a ela como o braço e a mão estão ao corpo.”7 

O vegetarianismo nos escritos de Ellen G. White
O contexto apresentado quanto à reforma de saúde serve como base para compreender a posição de Ellen G. White sobre o uso da carne. Ela nunca tratou desse assunto de forma isolada, ainda que seus pontos de vista a respeito de uma dieta vegetariana sejam vastos. Em seus escritos, o controle do apetite, inclusive a questão de comer carne, está relacionado ao princípio central de “manter nosso corpo na melhor condição de saúde”.8 

O tema da carne foi apresentado pela primeira vez à autora na visão de 1863. Os principais conceitos relacionados ao alimento cárneo também foram recebidos nessa ocasião. A carne de porco foi condenada como imprópria para o consumo.9 Além disso, a visão orientou para a abstinência de outros tipos de carne, dando preferência ao vegetarianismo. É importante esclarecer que o sentido da palavra “carne” usada por Ellen G. White quase sempre se refere à carne vermelha, uma vez que os peixes são tratados como um tema à parte.10 

No ano seguinte, com a publicação do quarto volume de Spiritual Gifts, a autora passou a insistir na adoção de uma dieta sem carne. Ela declarou que: (1) o alimento ideal de Deus para Suas criaturas está no Éden; (2) o Senhor permitiu que se comesse carne após o dilúvio para diminuir a vida do homem; (3) na peregrinação do deserto, Ele não proibiu a carne, mas proveu um alimento melhor; (4) a carne condimentada produz um estado febril e contamina o sangue; (5) quem consome muita carne não apreciará uma alimentação saudável de imediato; (6) crianças que comem carne favorecem as tendências animais; e (7) a carne de muitos animais está enferma devido às condições precárias em que eles são mantidos antes de serem abatidos.11 

Anos mais tarde, Ellen G. White continuou a escrever sobre os malefícios do regime cárneo, e apontou que ele: (1) afeta a atividade intelectual (1890);12 (2) prejudica a capacidade mental para entender a Deus e a verdade (1897);13 (3) debilita as faculdades físicas, mentais e morais (1901);14 (4) desperta o desejo de consumir bebidas alcoólicas (1901);15 e (5) aumenta a possibilidade de contrair enfermidades (1905).16 Em um dos seus mais importantes livros sobre saúde, ela também alertou sobre outro aspecto que raras vezes é mencionado. O regime cárneo “envolve crueldade para com os animais [...] criaturas de Deus”17 e, também por isso, seu consumo é objetável. 

Ao longo de seu ministério, as advertências de Ellen G. White sobre a carne se tornaram mais enfáticas. Ela reconheceu que a qualidade da carne estava cada vez pior. Em 1905, escreveu que “a carne nunca foi o melhor alimento; seu uso agora é duplamente objetável, visto as doenças nos animais estar crescendo com tanta rapidez”.18 

No entanto, por mais que Ellen G. White advogasse fortemente em favor da dieta vegetariana, ela não insistia nisso para todas as pessoas em todos os lugares.19 É importante admitir que havia exceções que ela mesma experimentou em sua vida pessoal. No fim de 1868, a autora escreveu ao esposo de uma senhora muito doente que teria sido melhor comer uma pequena porção de carne que sentir um profundo desejo por ela.20 Ela também recomendou cautela quanto ao deixar a carne: “Ninguém deve ser solicitado a fazer abruptamente a mudança.”21 Para Ellen G. White, o vegetarianismo jamais seria uma prova de comunhão entre os membros da igreja.22 

Já no fim da vida, em 1909, a escritora registrou o que pode ser entendido como o resumo de sua ideia em relação ao consumo de carne: “Não estabelecemos regra alguma para ser seguida no regime alimentar, mas dizemos que nos países em que há muita fruta, cereais e nozes, os alimentos cárneos não constituem alimentação própria para o povo de Deus.”23 Assim, por mais que não exista uma regra fixa quanto a uma dieta particular, está claro que onde e quando for possível, o povo de Deus deve preferir comer “frutas, cereais e verduras, preparados de forma simples”.24 

A experiência pessoal de Ellen G. White 
Alguns criticam Ellen G. White por não ter vivido a mensagem de saúde como ela mesma propôs em seus escritos quanto ao comer carne. No entanto, um estudo cuidadoso de sua biografia aponta que a autora foi fiel e coerente às instruções que recebeu. Ela afirmou que, depois da visão de 1863, eliminou de imediato a carne de seu menu diário, mas isso não significaria que ela não comeria mais carne.25 Em 1933, William White escreveu a George Starr que a família White havia sido vegetariana, mas não totalmente abstêmia de carne.26 Apesar de seu vegetarianismo, o consumo esporádico de carne podia acontecer devido a uma viagem longa ou quando a cozinheira não sabia preparar comida vegetariana.27 

Foi somente em 1894 que Ellen G. White decidiu que não comeria mais carne, nem mesmo ocasionalmente. Ela relatou: “Desde a reunião campal de Brighton (janeiro de 1894) bani absolutamente a carne da minha mesa.”28 A autora sempre demonstrou bom senso quanto ao consumo de alimento cárneo e foi tolerante a seu uso ocasional até quando entendeu que comê-lo seria demasiado prejudicial. Foi a partir desse período que suas advertências mais sérias contra a carne foram escritas. 

Conclusão 
Em resumo, pode-se afirmar que os escritos de Ellen G. White nos ensinam que a carne deve ser evitada nos lugares em que há abundância de frutas, cereais e verduras. No entanto, é preciso cautela, pois não se pode descartar o alimento cárneo abruptamente, sem prover adequada substituição nutricional. A carne não é um alimento saudável e pode trazer prejuízos em nossa relação espiritual com Deus. 

Ellen G. White foi fiel a esses princípios e sempre advogou bom senso e cuidado com extremismos. Em 1904, ela afirmou: “Tenho melhor saúde, não obstante achar-me com setenta e seis anos de idade, do que tinha em meus tempos juvenis. Dou graças a Deus pelos princípios da reforma de saúde.”29 

Alberto Tasso Barros (via Revista Ministério

Referências 
1 George W. Reid, A Sound of Trumpets (Washington, D.C: Review and Herald, 1982), p. 22. 
2 James White, “Western tour: Kansas camp meetting”, Review and Herald, 8/11/1870, p. 165. 
3 Herbert Douglass, Mensageira do Senhor (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2003), p. 283, 284. 
4 Alberto R. Timm, O Santuário e as Três Mensagens Angélicas, 6ª ed. (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2016), p. 123-131.
5 Ellen G. White, Testemunhos para a Igreja, v. 6 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 327. 
6 Ellen G. White, Testemunhos para a Igreja, v. 1 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 546. 
7 Ibid., p. 486. 
8 Ellen G. White, Testemunhos para a Igreja, v. 2 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 65. 
9 Ron Graybill, “The development of adventist thinking on clean and unclean meats”, < https://goo.gl/FecV4K>. 
10 Andrés Afonso Tovar Galarcio, “Análisis de citas controversiales sobre el consumo de la carne en escritos de Ellen G. White: un estudio históricocontextual” (dissertação de mestrado, Universidade Peruana União, 2016), p. 56. 
11 Ellen G. White, Spiritual Gifts, v. 4, p. 120-150. 
12 Ellen G. White, Conselhos Sobre o Regime Alimentar (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p. 388. 
13 Ibid., p. 383. 
14 Ibid., p. 268. 
15 Ibid. 
16 Ellen G. White, A Ciência do Bom Viver (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2004), p. 313. 
17 Ibid., p. 315. 
18 Ibid., p. 313. 
19 Denis Fortin, Jerry Moon, Michael W. Campbell e George R. Knight, eds. The Ellen G. White Encyclopedia (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2013), p. 1247. 
20 Ellen G. White, Testemunhos para a Igreja, v. 2 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015), p. 384. 
21 Ellen G. White, A Ciência do Bom Viver, p. 317. 
22 Ellen G. White, Conselhos Para a Igreja, p. 240. 
23 Ellen G. White, Testemunhos para a Igreja, v. 9 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015), p. 159. 
24 Ellen G. White, Conselhos Sobre o Regime Alimentar, p. 355. 
25 Ibid., p. 482. 
26 Herbert Douglass, Mensageira do Senhor, p. 316. 
27 Denis Fortin, Jerry Moon, Michael W. Campbell e George R. Knight, eds. The Ellen G. White Encyclopedia, p. 1247. 
28 Ellen G. White, Conselhos Sobre o Regime Alimentar, p. 488. 
29 Ibid., p. 482.

Um comentário: