sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Marxismo cultural: afinal, existe ou não?

Na atual situação de polarização política presente no Brasil e no mundo, diversos temas têm dividido a população, e recentemente também a igreja. Uma temática em especial tem chamado a atenção: de um lado, algumas pessoas apontam a existência de um movimento ideológico chamado marxismo cultural, cujo objetivo seria converter, a partir de valores culturais, a sociedade em um modelo comunista; do outro, há aqueles que afirmam que o termo é uma invenção do setor ultraconservador da direita e que este plano não existe nas teorias escritas por Karl Marx ou outros filósofos marxistas. Mas afinal, existe ou não um marxismo cultural? Confira os diferentes pontos de vista de duas alas adventistas, e tire suas próprias conclusões.

1. A FALÁCIA DENOMINADA: MARXISMO CULTURAL
Por Vinicius Siqueira (via Adventista Subversivo).

O que é marxismo cultural?
Marxismo cultural é uma estratégia discursiva utilizada predominantemente por conservadores, para anular as práticas opostas aos seus objetivos, as colocando sob a classificação de “marxistas”, “de esquerda”, “comunistas”. Esta estratégia generaliza todas as práticas não conservadoras como filosofias progressistas, alguns ramos da ciência, programas sociais, direitos humanos ou outros movimentos que visam diminuir as diferenças sociais.

Como isso pode acontecer?
Virou moda dizer que existe um plano maquiavélico por trás de filosofias progressistas ou até mesmo de alguns sistemas de governo, uma escalada alternativa para a sociedade comunista que seria pautada em pequenas mudanças gradativas na cultura e nas instituições ao invés da tomada do poder à força, modelo de implantação do comunismo supostamente fracassado no século passado. Este argumento é encabeçado por personalidades como Olavo de Carvalho, pelo site Mídia Sem Máscaras, por Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino. É comum ler que tal estratégia (a da dominação pela cultura) nasceu das análises culturais da Escola de Frankfurt e do filósofo marxista Antonio Gramsci e seu conceito de hegemonia cultural.

A televisão, os livros escolares, as músicas, a arte em geral, e toda a educação, assim como a justiça e a estrutura do Estado, estariam sendo alterados microscopicamente para, depois de um tempo de modificações acumuladas, promover um momento ideal para a revolução comunista, que dessa vez seria silenciosa e sem derramamento de sangue. Uma enganação que faz quase todo mundo de presa, uma ilusão que cobre a realidade.

O mundo neutro antes do marxismo cultural:
Segundo estas personalidades, haveria um mundo puro, neutro, imparcial, que é constantemente corrompido pela intenções comunistas de grupos de esquerda ou aliados. Ou seja, o marxismo cultural é aplicado sobre um mundo de pureza, de liberdade e de reflexão racional e deliberativa, causando caos e anestesia mental sobre aqueles que estão sob seu domínio.

Porque eu digo isso? Quando nós afirmamos que existe uma ilusão que domina a vida das pessoas e que essa ilusão é causada por determinados grupos que insistem em impor uma determinado modo de vida, o que nós estamos dizendo é que sem essa ilusão imposta por este grupo maquiavélico, o modo de vida original (e natural) seria novamente vivido. Ou seja, existe uma verdade, uma forma livre de se viver, e existe uma imposição exterior e estranha às vontades das pessoas. A partir dessa afirmação é possível concluir duas coisas:

1) As pessoas não são agentes sociais como condição sui generis. Elas podem ser agentes sociais desde que estejam livres de amarras (ilusões) impostas exteriormente (como o marxismo cultural).

2) Se a intenção do marxismo cultural é a implementação do comunismo de forma gradual e se ele é o objeto estranho que impõe um dado modo de vida às pessoas e as controlam (como o Marx da imagem no topo do texto), então a vida na sociedade capitalista é considerada o modo de vida natural, porque seria a condição perfeita para a livre-escolha e, portanto, para a primazia da vontade individual sobre a vontade coletiva.

Agentes sociais:
A percepção da unidade biológica humana enquanto um sujeito está relacionada com a noção de que ele, o sujeito, é um ser sob o mando soberano. O sujeito é aquele que está assujeitado. Ao mesmo tempo, o sujeito é aquele que é moldado conforme o poder que ele está submetido e que o reproduz na mesma medida em que foi constituído.

O agente social, pelo contrário, é atividade constante. Ele não é moldado pelo mundo exterior pura e simplesmente: ele é um alguém que altera o mundo na mesma proporção em que é constituído por ele. O agente social é aquele que toma posições e altera a perspectiva da estrutura social, mesmo que microscopicamente. Ele não é manipulado, não é alguém alienado em ilusões.

É importante salientar esta diferença porque é sobre este ponto que pessoas como Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino, Reinaldo Azevedo, Felipe Moura Brasil e toda essa turma se pautam para dizer que existe uma parcela enorme do povo sendo manipulada (os tutelados) e um pequeno pedaço não manipulado (os tutores, que coincidentemente são eles).

No bojo dos manipulados, estão inclusive os pesquisadores da academia (que podem, além de manipulados, ser manipuladores). Eles são os soldadinhos treinados para reproduzir a “ideologia comunista-gayzista” por todo o Brasil. No fundo, toda e qualquer ideia que se afaste de uma visão ultra individualista e cristã do mundo é fruto de um indivíduo manipulado ou manipulador.

Na verdade, o que se vê é uma forma de dizer quem deve ser escutado e quem não deve. Quem pode falar e quem não pode. Quando nós falamos que a agência é um privilégio de poucos, nós estamos dizendo que esses poucos valem mais. Eles são aqueles que devem ser obedecidos – mesmo que não digam ser líderes. Os alienados que votaram na Dilma não merecem ser escutados, seus votos nem mesmo merecem ser contados, é necessário duvidar da validade do voto de alguém que faz tal heresia.

A autoridade do discurso da verdade não é do povo, não é dos cientistas e não é da mídia: é de alguns iluminados que conseguiram encontrar a verdadeira essência do ser, o livre-mercado e o cristianismo. Mas essa essência, de onde ela vem?

O modo de vida natural:
O indivíduo é constituído por tipos de saber e configurações de poder de uma dada época em um dado ponto do globo. Ele é o que é por conta das relações de poder estabelecidas entre indivíduos e outros indivíduos e entre indivíduos e instituições, mas também por conta dos discursos que o atravessam, que são impostos por essas relações de poder e que, ao mesmo tempo, dão legitimidade para sua imperiosidade.

Isso significa que não há um modo de vida natural depois do indivíduo ser introduzido na cultura. Não é possível falar em modo de vida neutro, natural ou imparcial depois de submeter o indivíduo à linguagem e não há nenhuma programação na mente humana que indique como a vida deve ser vivida originalmente em sociedade. Basicamente, quando nós falamos sobre cultura e sobre a condição humana sob ela, estamos afirmando que nenhuma configuração deste sistema simbólico é natural.

A cultura é, pelo contrário, uma repressão de instintos e uma abertura de possibilidades infinitas dentro dos significantes disponíveis e das significações imagináveis. É a oposição em relação à natureza, como já observado por Levi-Strauss. A cultura é a previsibilidade, a natureza é o caos.

Sendo assim, a vida “natural” é uma constante violência nua, um desarranjo interminável de práticas voltadas unicamente para a satisfação de prazeres sexuais e para a conservação de si. Já a vida em sociedade, que pressupõe a cultura, é o lar das regras e da repressão constante dos instintos. A consciência precisa ser marcada, para que uma estrutura mental possa definir as possibilidades de ações e de compreensão do mundo. É necessário que um habitus, um sistema de disposições, seja formado. O agente social não é pura ação e não é pura determinação.

Com isso, somente quero dizer que um modo de vida, seja ele qual for, sempre será legítimo. A legitimidade de algo não é determinada por uma conclusão ontológica sobre o ser e sobre a história, mas sim pela força com que este algo é imposto. É legítimo aquilo que consegue movimentar mais poder a seu favor e se utilizar de um tipo de saber para lhe justificar.

Mas o que significa dizer que existe um modo de vida natural? Dizer que existe um modo de vida “original”, que não é uma ilusão, é uma forma de dar autoridade para um modo de viver particular. É um jeito de universalizar o particular. É pura ideologia. Quando eu digo que o jeito que eu acho melhor de se viver é o jeito original, correto e livre, o que eu estou fazendo é dizer que este é o jeito que deve ser vivido. Estou impondo um interesse particular.

Portanto, dizer que uma alternativa, seja ela qual for, ao livre-mercado e aos valores cristãos é uma ilusão, é um plano maquiavélico, é ao mesmo tempo dizer que o modo de vida original, escolhido por consenso, natural, legítimo, é aquele que está sendo ameaçado, é o modo de vida capitalista.

Conclusão:
O marxismo cultural é uma arma. É um discurso que se julga verdade ao denunciar tudo que não está em seus interesses como inimigo público número um. Se é necessário apontar para um inimigo em comum, que irá ser o objetivo da união dos singulares, então que ele seja o comunismo: tudo que não nos agrada é culpa do comunismo.

Ao mesmo tempo, é esse discurso que tenta justificar instituições desgastadas como a polícia. O aparelho policial inteiro é justificado pelo discurso do marxismo cultural, que se apoia na força dos homens honrados para proteger a nação. O que vemos com este discurso é a propagação do reacionarismo com roupagem nova, é a tentativa de aproveitar um momento de falta de engajamento geral para culpar o comunismo pela descrença geral na política.

Eu iria mais longe e diria que o comunismo é só o pretexto, é só o inimigo necessário, mas o objetivo em si é fortalecer tudo de conservador que existe e tentar anular algumas das pautas mais liberais conseguidas no Brasil devido às mudanças que o tempo trás consigo.

É aqui que percebe-se que o liberalismo come a própria teoria ao afirmar a possibilidade da enganação sistemática, da possibilidade do sujeito ser presa de uma ilusão constante. A liberdade, que deveria ser o valor máximo e a realidade a priori de qualquer teoria liberal, é alienada (no sentido marxista) de sua própria teoria mãe em prol de uma estratégia mais eficiente de poder. De calar uns para dar voz a outros.

2. EXISTE MARXISMO CULTURAL?
Por Iná Camargo Costa (via Outra Leitura, blog de Michelson Borges).

[…] O próprio marxismo acabaria produzindo outra multiplicação de denominações. Por exemplo: marxismo legal, surgido na Rússia do século 19, os marxismos economicista, reformista e/ou revisionista; marxismo empedernido (na formulação de Lenin em 1906); marxismo ortodoxo (na concepção de Lukács), o marxismo-leninismo dos stalinistas e assim por diante, até culminar na relativamente recente formulação de Perry Anderson – marxismo ocidental. Isso sem falar em outra preciosa contribuição inglesa, a de Raymond Willliams, que impulsionou a formação da ala do materialismo cultural, atuante até hoje na Inglaterra e nos Estados Unidos. Todas estas “escolas” constituem a nossa herança. Temos que no mínimo cultivar dialeticamente a sua memória pois, como aprendemos com Hegel, é com ela que forjaremos as armas com que confrontar os neoassaltantes de beira de estrada atualmente na ativa.

Sobre marxismo ocidental e materialismo cultural, vale a pena fazer uma pausa, pois a nossa hipótese é que os luminares do “marxismo cultural-espectral” assaltaram a obra de Perry Anderson, assim como a produção dos discípulos angloamericanos de Raymond Williams. Anderson subsume ao conceito de marxismo ocidental autores como Gramsci, Lukács, Escola de Frankfurt… Não são os mesmos mobilizados pela versão fantasmática? Outra demarcação do marxista inglês: os integrantes do marxismo ocidental atuariam de preferência no âmbito da cultura e do debate teórico (exceção feita a Gramsci, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, cuja principal contribuição ao marxismo cultural – incluídas as reflexões sobre Maquiavel – foi produzida no cárcere fascista e, por isto mesmo, à revelia), enquanto os marxistas tout court (os clássicos: Marx, Engels, Plekhanov, Lenin, Rosa Luxemburg, Trotsky…), além de debaterem amplamente as questões culturais, também eram ligados à militância revolucionária, ou seja, vinculados a partidos, tanto da tradição socialista quanto da comunista, o que não se aplica aos integrantes da Escola de Frankfurt. […]

Luta de classes é a principal marca registrada do marxismo, mas é bom não esquecer que sua mais importante determinação é a da crítica ao capitalismo, cifrada no subtítulo do Capital: crítica da economia política. Importa insistir nisto, porque nosso ponto de honra é a luta pelo fim do sistema capitalista, de modo que o inimigo – que defende a continuidade do capitalismo – tem bons motivos para temer os comunistas. Somos inimigos mesmo: nós combatemos as relações de produção capitalistas, a verdadeira causa de todas as misérias – econômicas, sociais, políticas e culturais – atualmente existentes. Sendo assim, podemos e devemos dar razão a eles quando brandem o “marxismo cultural” contra nós, mas precisamos corrigir as suas falácias, falta de percepção e seus erros elementares, decorrentes de medo, ignorância e incapacidade para o pensamento. […]

Gramsci, em seus Cadernos do cárcere, tem inspiradoras análises dos desafios postos aos intelectuais pela presença e dominação cultural da Igreja Católica na Itália, cuja condição de empresa privada que obteve status de Estado graças aos fascistas (pelo Tratado de Latrão em 1929) foi examinada no artigo “O Vaticano”, publicado na revista Correspondência Internacional em 1924. Ali Gramsci afirma sem meias palavras que o então papa Pio XI apoiou o golpe de estado do fascismo e declara que, além de contar em seus quadros com indivíduos de habilidade consumada na arte da intriga, o Vaticano é a maior força reacionária da Itália e um inimigo internacional do proletariado.

Encampando, além das acima enumeradas, as sugestões de Raymond Williams, o campo prioritário de atuação dos marxistas culturais vem a ser a esfera da cultura pautada pela luta de classes em todos os seus desdobramentos e seu olhar deve estar direcionado preferencialmente para os artistas e obras que, ao longo da história do capitalismo, tematizaram as lutas pela emancipação dos trabalhadores em todas as suas modalidades, sem prejuízo do interesse por aquelas obras que, a exemplo do que fez Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas, desmascaram os comportamentos da classe dominante. […]

[A]os marxistas culturais interessam todos os episódios de confronto com o colonialismo e o imperialismo, a começar pela Revolução do Haiti (1791-1804), até as vitoriosas guerras que os vietnamitas travaram contra Japão, França e Estados Unidos, passando por revoluções como a cubana e pelas guerras de libertação de Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau, entre outras. E só para adiantar um tópico: você sabia que o sucesso mundial de 1967, Pata pata, de Miriam Makeba, apoiada por Harry Belafonte, serviu para arrecadar fundos para tirar lutadores contra o apartheid das prisões sulafricanas? Eis uma das milhares de histórias que interessam a um militante comunista do autêntico marxismo cultural! […]

Para encerrar este primeiro passeio, cabe fazer uma homenagem a Augusto Boal, também discípulo de Paulo Freire, enumerando alguns nomes daqueles que podemos chamar de integrantes do arco-íris do marxismo cultural sem precisar pensar duas vezes (desde já insistindo: é lista de memória e sem pretensão de ser exaustiva). […]

[O] marxismo cultural se considera herdeiro de todas as conquistas da ciência e assume seu compromisso irrevogável com a verdade – tanto a científica quanto a histórica – porque sabe que a mentira tem um papel reacionário. Reafirma assim seu compromisso com a legítima defesa da humanidade. […]

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