Para entender plenamente a narrativa do Dilúvio, vamos começar com o fato de que o texto-chave retrata Deus como o Ator Principal. Tanto o nome genérico para Deus (Elohim), como o tetragrama (YHWH) são usados ao longo da narrativa. Assim, o caráter de Deus, conforme expõe o escritor bíblico, domina toda a narrativa.
O ponto focal da história do Dilúvio é a descrição de Deus/YHWH e de Seu relacionamento com a humanidade, tendo Noé como Sua pessoa de contato. As partes referentes ao que Deus fala ocupam uma grande parte da narrativa e são essenciais para a compreensão de como Ele é retratado. Entre as primeiras palavras pronunciadas por Deus, está a Sua sentença: “Farei desaparecer da face da Terra o homem que criei, os homens e também os grandes animais e os pequenos e as aves do céu. Arrependo-me de havê-los feito” (Gênesis 6:7). Essa ação vem de Deus como um juízo que Ele faz cair sobre a raça humana, “pois toda a humanidade havia corrompido a sua conduta” (verso 12). Dessa forma, a primeira característica atribuída a Deus, de acordo com as palavras que Ele falou, é de que Ele é o Juiz de Sua criação. Além disso, Ele é o Soberano que executa os Seus próprios decretos. Essa dupla característica de Deus nos mostra a Sua onipotência − pois Ele é um Deus que não somente declara o que é certo ou errado, mas também tem em Si poder e autoridade inatos para fazer cumprir os Seus desígnios.
Considere a razão para Deus pronunciar a sentença. É por causa da grande maldade que o ser humano havia trazido sobre a Terra. A maldade humana impactou a Terra de maneira tão devastadora que Deus disse que iria fazer “desaparecer da face da Terra o homem” que havia criado. Ele iria agir também como protetor da Terra e de Suas criaturas, como também daqueles seres humanos que permaneceram fiéis a Ele. Isso nos apresenta Deus como (1) um Juiz contra a maldade; (2) que é poderoso o suficiente para realizar Seus desígnios; e (3) um Soberano amorável que age em favor de Sua criação e daqueles que são justos (Noé e sua família).
Em todas as coisas que Deus falou, vemos que Ele é não somente o Juiz, mas também o Salvador da humanidade. Em Seu primeiro pronunciamento a Noé (Gênesis 6:13-21), Deus revela a decisão de destruir a Terra (verso 13) e lhe ordena construir uma arca grande o suficiente para si mesmo, sua família, aqueles que iriam atender à Sua mensagem salvadora, como também “um casal de cada um dos seres vivos, macho e fêmea, para conservá-los vivos” com ele (verso 9; ver também verso 20). Isso revela a segunda característica de Deus: é somente por meio da Sua graça que a humanidade é capaz de sobreviver. Deus não apenas comunica a Noé Seus planos de destruir a Terra, mas também dá a ele instruções precisas sobre o que ele precisa fazer para impedir a sua própria destruição, de sua família e daqueles que decidirem se unir a eles e entrar na arca.
Além do mais, por meio das palavras ditas diretamente por Deus, nós também aprendemos a respeito da aliança que Ele deseja fazer com a humanidade. O tema dessa aliança aparece na narrativa do Dilúvio apresentada nas Escrituras. Ele aparece uma vez no início da narrativa (Gênesis 6:18), e em sua maioria, na última parte do relato do Dilúvio (Gênesis 9:9 e os versos seguintes). A palavra usada para aliança, em hebraico (berît) nos diz que Deus tem uma “obrigação Pessoal” de prover Sua graça, por meio da qual os seres humanos arrependidos podem encontrar o perdão e a salvação. Portanto, “a aliança [na narrativa do Dilúvio] é estritamente um ato da graça divina.” A repetição da palavra aliança na narrativa do Dilúvio indica a ênfase dada por Deus à aliança da graça que é confirmada pelo “arco-íris nas nuvens” (Gênesis 9:13). É a conclusão da aliança na história do Dilúvio que assegura aos seres humanos que “nunca mais haverá dilúvio para destruir a Terra” (Gênesis 9:11).
Deus não somente fala na narrativa do Dilúvio, mas também age de acordo com o que diz. O texto bíblico declara: “O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na Terra”, pois, “toda a humanidade havia corrompido a sua conduta” (Gênesis 6:5, 12). Diz também que Deus declarou Seus juízos sobre a Sua Criação (ver Gênesis 6;7, 13 e os versos seguintes). Em todas essas atuações de Deus − de ver, sentir e julgar a maldade dos homens − Ele é descrito como Aquele que vê e que Se preocupa com Suas criaturas. Ao ver, Deus julga a Terra e expressa o Seu arrependimento por “ter feito o homem sobre a Terra, e isso cortou-Lhe o coração” (Gênesis 6:6).
A narrativa bíblica explica que depois que as águas inundaram a Terra, Deus “lembrou-Se de Noé e de todos os animais selvagens e rebanhos domésticos que estavam com ele na arca” (Gênesis 8:1). Na Bíblia, sempre que Deus “Se lembra”, “refere-se a pessoas ou a acontecimentos que são importantes para as pessoas.” Além disso, o objeto “é frequentemente uma pessoa” e não um evento ou uma coisa em si. Neste relato em particular, quando Deus fala nos versículos posteriores (Gênesis 9:1-17), Ele promete lembrar-Se tanto da própria aliança como da “ocasião da realização dessa aliança”. Portanto, Ele é um Deus que Se preocupa pessoalmente com Seu povo, o que O levou a estabelecer um sinal como lembrança. Não seria suficiente dizer apenas que Deus Se lembrou de Noé, mas deve-se acrescentar que Ele entrou em ação logo a seguir. A narrativa bíblica afirma que Deus “enviou um vento forte sobre a Terra, e as águas começaram a baixar” (Gênesis 8:1). Conforme citado anteriormente, Deus é poderoso o bastante para provocar a destruição por meio de uma inundação. Ele também é suficientemente poderoso para fazer retroceder a destruição que Ele trouxe, por causa de Noé, de sua família e dos animais que estavam com eles na arca. Esse segundo atributo de Deus permite-nos saber que, embora Ele precisasse purificar a Terra de sua impureza, Ele também Se lembrou de Suas criaturas proporcionando um meio de escape.
CONCLUSÃO
A história do Dilúvio é, portanto, a que tem cativado a mente de milhões ao longo da História e ocupa um lugar especial na cosmovisão do mundo judaico-cristão. Ao analisá-la, vemos que Deus é o Personagem central no relato. É Ele que age, enquanto os outros personagens que fazem parte do cenário estão simplesmente reagindo ao que Ele faz. Deus é retratado como poderoso, mas também misericordioso − Ele pronuncia o juízo contra a maldade humana e ao mesmo tempo revela a Sua misericórdia e graça salvadoras para com aqueles que O aceitaram. Assim, Deus Se revelou a Noé e sua família como Aquele que julga os pecadores não arrependidos e salva aqueles que se arrependem. Deus revela Suas ações, Sua aversão pelo pecado, Seu juízo sobre o pecado e, ao mesmo tempo, a sua graça salvadora para aqueles que confiam nEle, que O aceitam e obedecem a Sua Palavra.
Por meio de um discurso indireto, Deus é retratado como Alguém que está preocupado com a segurança e o bem-estar de Noé, de sua família e dos animais na arca, pois, mais tarde, “Ele Se lembra” deles, fazendo secar as águas. Finalmente, Deus, por Sua graça, em última análise, faz uma aliança com Noé e seus descendentes. Ao fazê-lo, Ele impôs limites a Si mesmo, a fim de continuar mostrando Sua misericórdia para com a humanidade.
Quer seja em meio à pandemia da COVID-19 ou em qualquer outra emergência − ou mesmo no próprio fim dos tempos − podemos enfrentar a incerteza com a certeza de que Deus, que é um poderoso Juiz, é também misericordioso, demonstra Seu cuidado por nós e se uniu a nós por meio de uma aliança para que possamos ser salvos.
Juan Esteban Mora (via Revista Diálogo)
"Que
compaixão pelo homem transviado, colocar o belo e diversificado
arco-íris nas nuvens, como sinal do concerto do grande Deus com o homem!
... Era Seu desígnio que ao verem os filhos das gerações futuras o arco
nas nuvens... seus pais lhes explicassem a destruição do mundo por um
dilúvio, porque o povo se entregara a toda sorte de impiedade, e que as
mãos do Altíssimo haviam curvado o arco e o posto nas nuvens, como sinal
de que jamais traria novo dilúvio de águas sobre a Terra. Este símbolo
nas nuvens devia estabelecer sua confiança em Deus, pois era sinal de
divina bondade e misericórdia para com o homem" (Ellen G. White - A Maravilhosa Graça de Deus, p. 156).
- A menos que de outra forma indicado, todas as referências bíblicas são citadas da Nova Versão Internacional.
- Ernest Kutsh, “berît”. No Theological Lexicon of the Old Testament, vol. 1,, Ernst Jenni, Claus Westerman, Mark E. Biddle, eds. (Peabody, Mass.: Hendrickson, 1997), p. 262. De acordo com essa entrada, a palavra covenant (aliança) não deve ser entendida usando-se a definição moderna. Em muitos casos na Bíblia, e nas cultoras antigas do Oriente Próximo, o temo “covenant” é melhor entendido como um tratado em que a parte mais forte promete impor a si mesma alguma coisa, e a parte mais fraca “pode aceitar essa obrigação autoimposta” (Ibid., p. 259). Há duas citações abertas aqui, mas apenas uma que mais se aproxima. CONFIRA!
- Nahum M. Sarna, Understanding Genesis: The World of the Bible in the Light of History (New York: Schocken Books, 1970), p. 57.
- H. Eising, “zākhār.”In Theological Dictionary of the Old Testament, vol. 4, G. Johannes Botterweck, Helmer Ringgren, eds. (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1980), p. id., 69, 7069.
- Ibid., p. 69, 70.
- Ibid., p. 71.
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