segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O DEUS DO DILÚVIO

A história do Dilúvio é uma das mais conhecidas da Bíblia. Embora várias histórias do Dilúvio apareçam em outros lugares − como na mitologia da Mesopotâmia, Chinesa e nas lendas da América Central − o que torna a narrativa bíblica única é a maneira como Deus é nela retratado (Gênesis 6:5 a 9:17) − primeiro, pelos nomes pelos quais Deus é chamado na passagem bíblica; segundo, por revelar o que Deus fala no texto e, finalmente, pelas próprias ações de Deus. Essas três perspectivas apresentam um quadro abrangente de Deus como um Ser santo, justo, mas também misericordioso, rico em ensinamentos, cuidadoso e relacional.

DEUS FALA NA NARRATIVA DO DILÚVIO

Para entender plenamente a narrativa do Dilúvio, vamos começar com o fato de que o texto-chave retrata Deus como o Ator Principal. Tanto o nome genérico para Deus (Elohim), como o tetragrama (YHWH) são usados ao longo da narrativa. Assim, o caráter de Deus, conforme expõe o escritor bíblico, domina toda a narrativa.

O ponto focal da história do Dilúvio é a descrição de Deus/YHWH e de Seu relacionamento com a humanidade, tendo Noé como Sua pessoa de contato. As partes referentes ao que Deus fala ocupam uma grande parte da narrativa e são essenciais para a compreensão de como Ele é retratado. Entre as primeiras palavras pronunciadas por Deus, está a Sua sentença: “Farei desaparecer da face da Terra o homem que criei, os homens e também os grandes animais e os pequenos e as aves do céu. Arrependo-me de havê-los feito” (Gênesis 6:7). Essa ação vem de Deus como um juízo que Ele faz cair sobre a raça humana, “pois toda a humanidade havia corrompido a sua conduta” (verso 12). Dessa forma, a primeira característica atribuída a Deus, de acordo com as palavras que Ele falou, é de que Ele é o Juiz de Sua criação. Além disso, Ele é o Soberano que executa os Seus próprios decretos. Essa dupla característica de Deus nos mostra a Sua onipotência − pois Ele é um Deus que não somente declara o que é certo ou errado, mas também tem em Si poder e autoridade inatos para fazer cumprir os Seus desígnios.

Considere a razão para Deus pronunciar a sentença. É por causa da grande maldade que o ser humano havia trazido sobre a Terra. A maldade humana impactou a Terra de maneira tão devastadora que Deus disse que iria fazer “desaparecer da face da Terra o homem” que havia criado. Ele iria agir também como protetor da Terra e de Suas criaturas, como também daqueles seres humanos que permaneceram fiéis a Ele. Isso nos apresenta Deus como (1) um Juiz contra a maldade; (2) que é poderoso o suficiente para realizar Seus desígnios; e (3) um Soberano amorável que age em favor de Sua criação e daqueles que são justos (Noé e sua família).

Em todas as coisas que Deus falou, vemos que Ele é não somente o Juiz, mas também o Salvador da humanidade. Em Seu primeiro pronunciamento a Noé (Gênesis 6:13-21), Deus revela a decisão de destruir a Terra (verso 13) e lhe ordena construir uma arca grande o suficiente para si mesmo, sua família, aqueles que iriam atender à Sua mensagem salvadora, como também “um casal de cada um dos seres vivos, macho e fêmea, para conservá-los vivos” com ele (verso 9; ver também verso 20). Isso revela a segunda característica de Deus: é somente por meio da Sua graça que a humanidade é capaz de sobreviver. Deus não apenas comunica a Noé Seus planos de destruir a Terra, mas também dá a ele instruções precisas sobre o que ele precisa fazer para impedir a sua própria destruição, de sua família e daqueles que decidirem se unir a eles e entrar na arca.

Além do mais, por meio das palavras ditas diretamente por Deus, nós também aprendemos a respeito da aliança que Ele deseja fazer com a humanidade. O tema dessa aliança aparece na narrativa do Dilúvio apresentada nas Escrituras. Ele aparece uma vez no início da narrativa (Gênesis 6:18), e em sua maioria, na última parte do relato do Dilúvio (Gênesis 9:9 e os versos seguintes). A palavra usada para aliança, em hebraico (berît) nos diz que Deus tem uma “obrigação Pessoal” de prover Sua graça, por meio da qual os seres humanos arrependidos podem encontrar o perdão e a salvação. Portanto, “a aliança [na narrativa do Dilúvio] é estritamente um ato da graça divina.” A repetição da palavra aliança na narrativa do Dilúvio indica a ênfase dada por Deus à aliança da graça que é confirmada pelo “arco-íris nas nuvens” (Gênesis 9:13). É a conclusão da aliança na história do Dilúvio que assegura aos seres humanos que “nunca mais haverá dilúvio para destruir a Terra” (Gênesis 9:11).

DEUS AGE NO DILÚVIO

Deus não somente fala na narrativa do Dilúvio, mas também age de acordo com o que diz. O texto bíblico declara: “O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na Terra”, pois, “toda a humanidade havia corrompido a sua conduta” (Gênesis 6:5, 12). Diz também que Deus declarou Seus juízos sobre a Sua Criação (ver Gênesis 6;7, 13 e os versos seguintes). Em todas essas atuações de Deus − de ver, sentir e julgar a maldade dos homens − Ele é descrito como Aquele que vê e que Se preocupa com Suas criaturas. Ao ver, Deus julga a Terra e expressa o Seu arrependimento por “ter feito o homem sobre a Terra, e isso cortou-Lhe o coração” (Gênesis 6:6).

A narrativa bíblica explica que depois que as águas inundaram a Terra, Deus “lembrou-Se de Noé e de todos os animais selvagens e rebanhos domésticos que estavam com ele na arca” (Gênesis 8:1). Na Bíblia, sempre que Deus “Se lembra”, “refere-se a pessoas ou a acontecimentos que são importantes para as pessoas.” Além disso, o objeto “é frequentemente uma pessoa” e não um evento ou uma coisa em si. Neste relato em particular, quando Deus fala nos versículos posteriores (Gênesis 9:1-17), Ele promete lembrar-Se tanto da própria aliança como da “ocasião da realização dessa aliança”. Portanto, Ele é um Deus que Se preocupa pessoalmente com Seu povo, o que O levou a estabelecer um sinal como lembrança. Não seria suficiente dizer apenas que Deus Se lembrou de Noé, mas deve-se acrescentar que Ele entrou em ação logo a seguir. A narrativa bíblica afirma que Deus “enviou um vento forte sobre a Terra, e as águas começaram a baixar” (Gênesis 8:1). Conforme citado anteriormente, Deus é poderoso o bastante para provocar a destruição por meio de uma inundação. Ele também é suficientemente poderoso para fazer retroceder a destruição que Ele trouxe, por causa de Noé, de sua família e dos animais que estavam com eles na arca. Esse segundo atributo de Deus permite-nos saber que, embora Ele precisasse purificar a Terra de sua impureza, Ele também Se lembrou de Suas criaturas proporcionando um meio de escape.

CONCLUSÃO

A história do Dilúvio é, portanto, a que tem cativado a mente de milhões ao longo da História e ocupa um lugar especial na cosmovisão do mundo judaico-cristão. Ao analisá-la, vemos que Deus é o Personagem central no relato. É Ele que age, enquanto os outros personagens que fazem parte do cenário estão simplesmente reagindo ao que Ele faz. Deus é retratado como poderoso, mas também misericordioso − Ele pronuncia o juízo contra a maldade humana e ao mesmo tempo revela a Sua misericórdia e graça salvadoras para com aqueles que O aceitaram. Assim, Deus Se revelou a Noé e sua família como Aquele que julga os pecadores não arrependidos e salva aqueles que se arrependem. Deus revela Suas ações, Sua aversão pelo pecado, Seu juízo sobre o pecado e, ao mesmo tempo, a sua graça salvadora para aqueles que confiam nEle, que O aceitam e obedecem a Sua Palavra.

Por meio de um discurso indireto, Deus é retratado como Alguém que está preocupado com a segurança e o bem-estar de Noé, de sua família e dos animais na arca, pois, mais tarde, “Ele Se lembra” deles, fazendo secar as águas. Finalmente, Deus, por Sua graça, em última análise, faz uma aliança com Noé e seus descendentes. Ao fazê-lo, Ele impôs limites a Si mesmo, a fim de continuar mostrando Sua misericórdia para com a humanidade.

Quer seja em meio à pandemia da COVID-19 ou em qualquer outra emergência − ou mesmo no próprio fim dos tempos − podemos enfrentar a incerteza com a certeza de que Deus, que é um poderoso Juiz, é também misericordioso, demonstra Seu cuidado por nós e se uniu a nós por meio de uma aliança para que possamos ser salvos.

Juan Esteban Mora (via Revista Diálogo)

"Que compaixão pelo homem transviado, colocar o belo e diversificado arco-íris nas nuvens, como sinal do concerto do grande Deus com o homem! ... Era Seu desígnio que ao verem os filhos das gerações futuras o arco nas nuvens... seus pais lhes explicassem a destruição do mundo por um dilúvio, porque o povo se entregara a toda sorte de impiedade, e que as mãos do Altíssimo haviam curvado o arco e o posto nas nuvens, como sinal de que jamais traria novo dilúvio de águas sobre a Terra. Este símbolo nas nuvens devia estabelecer sua confiança em Deus, pois era sinal de divina bondade e misericórdia para com o homem" (Ellen G. White - A Maravilhosa Graça de Deus, p. 156).

NOTAS E REFERÊNCIAS
  1. A menos que de outra forma indicado, todas as referências bíblicas são citadas da Nova Versão Internacional.
  2. Ernest Kutsh, “berît”. No Theological Lexicon of the Old Testament, vol. 1,, Ernst Jenni, Claus Westerman, Mark E. Biddle, eds. (Peabody, Mass.: Hendrickson, 1997), p. 262. De acordo com essa entrada, a palavra covenant (aliança) não deve ser entendida usando-se a definição moderna. Em muitos casos na Bíblia, e nas cultoras antigas do Oriente Próximo, o temo “covenant” é melhor entendido como um tratado em que a parte mais forte promete impor a si mesma alguma coisa, e a parte mais fraca “pode aceitar essa obrigação autoimposta” (Ibid., p. 259). Há duas citações abertas aqui, mas apenas uma que mais se aproxima. CONFIRA!
  3. Nahum M. Sarna, Understanding Genesis: The World of the Bible in the Light of History (New York: Schocken Books, 1970), p. 57.
  4. H. Eising, “zākhār.”In Theological Dictionary of the Old Testament, vol. 4, G. Johannes Botterweck, Helmer Ringgren, eds. (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1980), p. id., 69, 7069.
  5. Ibid., p. 69, 70.
  6. Ibid., p. 71.

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