terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

COMO ASSIM, “NÃO TOQUEIS NO UNGIDO DO SENHOR”?

Há várias passagens na Bíblia onde aparecem expressões iguais ou semelhantes a estas do título desta postagem: "A ninguém permitiu que os oprimisse; antes, por amor deles, repreendeu a reis, dizendo: Não toqueis nos meus ungidos, nem maltrateis os meus profetas" (1Cr 16:21-22; cf. Sl 105:15).

Todavia, a passagem mais conhecida é aquela em que Davi, sendo pressionado pelos seus homens para aproveitar a oportunidade de matar Saul na caverna, respondeu: “O Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, isto é, que eu estenda a mão contra ele [Saul], pois é o ungido do Senhor” (1Sm 24:6).

Noutra ocasião, Davi impediu com o mesmo argumento que Abisai, seu homem de confiança, matasse Saul, que dormia tranquilamente ao relento: “Não o mates, pois quem haverá que estenda a mão contra o ungido do Senhor e fique inocente?” (1Sm 26:9). Davi de tal forma respeitava Saul, como ungido do Senhor, que não perdoou o homem que o matou: “Como não temeste estender a mão para matares o ungido do Senhor?” (2Sm 1:14).

Esta relutância de Davi em matar Saul por ser ele o ungido do Senhor tem sido interpretado por muitos evangélicos como um princípio bíblico referente aos pastores e líderes a ser observado em nossos dias, nas igrejas cristãs. Para eles, uma vez que os pastores, bispos e apóstolos são os ungidos do Senhor, não se pode levantar a mão contra eles, isto é, não se pode acusá-los, contraditá-los, questioná-los, criticá-los e muito menos mover-se qualquer ação contrária a eles. A unção do Senhor funcionaria como uma espécie de proteção e imunidade dada por Deus aos seus ungidos. Ir contra eles seria ir contra o próprio Deus.

Mas, será que é isto mesmo que a Bíblia ensina?

A expressão “ungido do Senhor” usada na Bíblia em referência aos reis de Israel se deve ao fato de que os mesmos eram oficialmente escolhidos e designados por Deus para ocupar o cargo mediante a unção feita por um juiz ou profeta. Na ocasião, era derramado óleo sobre sua cabeça para separá-lo para o cargo. Foi o que Samuel fez com Saul (1Sm 10:1) e depois com Davi (1Sm 16:13).

A razão pela qual Davi não queria matar Saul era porque reconhecia que ele, mesmo de forma indigna, ocupava um cargo designado por Deus. Davi não queria ser culpado de matar aquele que havia recebido a unção real.

Mas, o que não se pode ignorar é que este respeito pela vida do rei não impediu Davi de confrontar Saul e acusá-lo de injustiça e perversidade em persegui-lo sem causa (1Sm 24:15). Davi não iria matá-lo, mas invocou a Deus como juiz contra Saul, diante de todo o exército de Israel, e pediu abertamente a Deus que castigasse Saul, vingando a ele, Davi (1Sm 24:12). Davi também dizia a seus aliados que a hora de Saul estava por chegar, quando o próprio Deus haveria de matá-lo por seus pecados (1Sm 26:9-10).

O Salmo 18 é atribuído a Davi, que o teria composto “no dia em que o Senhor o livrou de todos os seus inimigos e das mãos de Saul”. Não podemos ter plena certeza da veracidade deste cabeçalho, mas existe a grande possibilidade de que reflita o exato momento histórico em que foi composto. Sendo assim, o que vemos é Davi compondo um salmo de gratidão a Deus por tê-lo livrado do “homem violento” (Sl 18:48), por ter tomado vingança dos que o perseguiam (Sl 18:47).

Em resumo, Davi não queria ser aquele que haveria de matar o ímpio rei Saul pelo fato do mesmo ter sido ungido com óleo pelo profeta Samuel para ser rei de Israel. Isto, todavia, não impediu Davi de enfrentá-lo, confrontá-lo, invocar o juízo e a vingança de Deus contra ele, e entregá-lo nas mãos do Senhor para que ao seu tempo o castigasse devidamente por seus pecados.

O que não entendo é como, então, alguém pode tomar a história de Davi se recusando a matar Saul, por ser o ungido do Senhor, como base para este estranho conceito de que não se pode questionar, confrontar, contraditar, discordar e mesmo enfrentar com firmeza pessoas que ocupam posição de autoridade nas igrejas quando os mesmos se tornam repreensíveis na doutrina e na prática.

Não há dúvida que nossos líderes espirituais merecem todo nosso respeito e confiança, e que devemos acatar a autoridade deles – enquanto, é claro, eles estiverem submissos à Palavra de Deus, pregando a verdade e andando de maneira digna, honesta e verdadeira. Quando se tornam repreensíveis, devem ser corrigidos e admoestados. Paulo orienta Timóteo da seguinte maneira, no caso de presbíteros (bispos/pastores) que errarem:

“Não aceites denúncia contra presbítero, senão exclusivamente sob o depoimento de duas ou três testemunhas. Quanto aos que vivem no pecado, repreende-os na presença de todos, para que também os demais temam” (1Tm 5:19-20).

Os “que vivem no pecado”, pelo contexto, é uma referência aos presbíteros mencionados no versículo anterior. Os mesmos devem ser repreendidos publicamente.

Mas, o que impressiona mesmo é a seguinte constatação. Nunca os apóstolos de Jesus Cristo apelaram para a “imunidade da unção” quando foram acusados, perseguidos e vilipendiados pelos próprios crentes. O melhor exemplo é o do próprio apóstolo Paulo, ungido por Deus para ser apóstolo dos gentios. Quantos sofrimentos ele não passou às mãos dos crentes da igreja de Corinto, seus próprios filhos na fé! Reproduzo apenas uma passagem de sua primeira carta a eles, onde ele revela toda a ironia, veneno, maldade e sarcasmo com que os coríntios o tratavam:

“Já estais fartos, já estais ricos; chegastes a reinar sem nós; sim, tomara reinásseis para que também nós viéssemos a reinar convosco. Porque a mim me parece que Deus nos pôs a nós, os apóstolos, em último lugar, como se fôssemos condenados à morte; porque nos tornamos espetáculo ao mundo, tanto a anjos, como a homens. Nós somos loucos por causa de Cristo, e vós, sábios em Cristo; nós, fracos, e vós, fortes; vós, nobres, e nós, desprezíveis. Até à presente hora, sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e não temos morada certa, e nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando somos injuriados, bendizemos; quando perseguidos, suportamos; quando caluniados, procuramos conciliação; até agora, temos chegado a ser considerados lixo do mundo, escória de todos. Não vos escrevo estas coisas para vos envergonhar; pelo contrário, para vos admoestar como a filhos meus amados. Porque, ainda que tivésseis milhares de preceptores em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; pois eu, pelo evangelho, vos gerei em Cristo Jesus. Admoesto-vos, portanto, a que sejais meus imitadores” (1Co 4:8-17).

Por que é que eu não encontro nesta queixa de Paulo a repreensão, “como vocês ousam se levantar contra o ungido do Senhor?” Homens de Deus, os verdadeiros ungidos por Ele para o trabalho pastoral, não respondem às discordâncias, críticas e questionamentos calando a boca das ovelhas com “não me toque que sou ungido do Senhor,” mas com trabalho, argumentos, verdade e sinceridade.

“Não toque no ungido do Senhor” é apelação de quem não tem nem argumento e nem exemplo para dar como resposta.

Augustus Nicodemus Lopes (via Elevados)

Nota do blog: Ellen G. White toca neste assunto em alguns textos:

"Frequentemente tem-se de dizer claramente a verdade e os fatos aos que erram, a fim de os levar a verem e sentirem o erro, para que se reformem. Mas isto deve ser feito sempre com piedosa delicadeza, não com aspereza ou severidade, mas considerando a própria fraqueza, não seja ele próprio tentado também. [...] Especialmente os erros dos pastores empenhados na obra de Deus devem ser conservados dentro do menor círculo possível, pois há muitas pessoas fracas que disso se prevalecerão, caso saibam que aqueles que ministram na palavra e na doutrina têm fraquezas como os outros homens. Coisa mui cruel é serem as faltas de um pastor expostas a descrentes, caso seja ele considerado digno de trabalhar futuramente pela salvação de almas. Bem algum pode vir de assim o expor, mas unicamente mal. O Senhor Se desagrada com essa atitude, pois ela destrói a confiança do povo naqueles que Ele aceita para levarem avante Sua obra. O caráter de todo coobreiro deve ser zelosamente guardado pelos irmãos do ministério. Disse Deus: 'Não toqueis nos Meus ungidos, e não maltrateis os Meus profetas' (1Cr 16:22; Sl 105:15). Cumpre nutrir amor e confiança. Há maior poder no amor, do que jamais se encontrou na censura. O amor abrirá caminho por entre barreiras, ao passo que a censura fechará toda entrada da alma" (Testemunhos Seletos, vol. 1, pp. 302-304).

"É Deus quem permite que os homens sejam colocados em posições de responsabilidade. Quando erram, tem poder para corrigi-los, ou para retirá-los do cargo que exercem. Devemos acautelar-nos de não tomar em nossas mãos o direito de julgar, que pertence a Deus. A conduta de Davi para com Saul contém uma lição. Por ordem de Deus, Saul foi ungido como rei de Israel. Devido à sua desobediência, o Senhor declarou que o reino lhe seria tirado, e contudo quão amável, atenciosa e paciente foi a conduta de Davi para com ele! Procurando Davi para lhe tirar a vida, Saul dirigiu-se para o deserto, e sozinho penetrou justamente na caverna em que Davi, com seus homens de guerra, estava escondido: 'Então, os homens de Davi lhe disseram: Eis aqui o dia do qual o Senhor te diz: Eis que te dou o teu inimigo nas tuas mãos, e far-lhe-ás como te parecer bem a teus olhos. ... E disse aos seus homens: O Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, ao ungido do Senhor' (1 Samuel 24:4 e 6). Ordena-nos o Salvador: 'Não julgueis, para que não sejais julgados, porque com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós' (Mateus 7:1-2). Lembrai-vos de que cedo o relato da vossa vida passará em revista diante de Deus. Lembrai-vos de que Ele disse: 'És inescusável quando julgas, ó homem; ... pois tu, que julgas, fazes o mesmo' (Romanos 2:1)" (A Ciência do Bom Viver, p. 484).

O “ungido do Senhor” pode errar, mas deve ser tratado com carinho e respeito. Portanto, precisamos aprender “a criticar” de forma positiva o seu pastor. Segue abaixo algumas dicas do pastor Rafael Stehling (via Revista Adventista) para que você consiga ajudá-lo, sem impor sobre ele uma carga maior.

1. Ore por seu pastor e peça sabedoria divina para sua fala. Deus lhe dará palavras sábias e sensatas e preparará o coração do seu pastor para ouvir as observações.

2. Não o convide para ir à sua casa a fim de criticá-lo. Pense num time que joga fora de campo. É chato ir a uma visita e sair de lá criticado. Tenha o carinho de visitar seu pastor no seu escritório ou em sua casa para realizar tal conversa.

3. Entenda a dificuldade do seu pastor em separar crítica ao trabalho de crítica pessoal. Ele não tem trabalho; o ministério pastoral é uma vocação. É a vida dele. Então, seja carinhoso.

4. Evite comparar com outros pastores. Cada ministro tem suas características e estilo. Muitas vezes, um pastor compensará justamente naquilo que o anterior era falho e agradará pessoas diferentes. Então, respeite essas peculiaridades e aproveite ao máximo o seu pastor naquilo que ele é bom.

5. Evite fazer críticas inúteis. Algumas vezes criticamos mais para nosso alívio do que por um objetivo efetivo. Questionar a simpatia ou o temperamento do pastor, por exemplo, não ajuda. Talvez ele já não goste de algo em sua personalidade há anos. Se a crítica não tiver a chance de motivar uma mudança, esqueça-a.

6. Critique sem condenar. Tenha empatia e se coloque no lugar dele. Reflita sobre como seu pastor vai ouvir suas palavras. Talvez a “verdade” precise ser melhor trabalhada no amor.

7. Compartilhe seus sentimentos. Isso significa contar sobre suas lutas e falhas, mostrar que você entende seu pastor. Falar de suas batalhas aproxima o pastor de seu ponto de vista.

8. Não use as mídias sociais. O avanço das tecnologias de informação está facilitando muito a vida de todos, mas também complicando as coisas. A conversa direta não tem comparação com uma mensagem de texto enviada friamente por WhatsApp ou Facebook.

9. Ouça o ponto de vista dele. Muitas observações são injustas por falta de conhecimento de causa. O pastor precisa manter sigilo sobre muitos casos. Considere a possibilidade de você estar equivocado. Não foram poucos os casos em que fui questionado por decisões administrativas que, se expostas a público, seriam prontamente apoiadas.

10. Esteja disposto a ajudar. A pior coisa é receber críticas de quem nada faz. Sugira mudanças práticas, comprometa-se em ajudar e seja ativo em sua realidade.

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