quarta-feira, 15 de setembro de 2021

BATE-SEBA: CÚMPLICE OU VÍTIMA?

Bathsheba - Pintura de Artemisia Gentileschi
Ela era uma linda e jovem mulher casada, sem filhos, no frescor da feminilidade dos seus 19 anos. Não judia, de família honrada e nobre, era filha de Eliã, um dos 30 principais valentes do exército israelita, e seu avô Aitofel era um sábio estrategista, conselheiro de guerra do rei Davi. Seu marido, Urias, heteu convertido ao judaísmo, era um dentre os 30 mais fiéis soldados-heróis do exército de Israel.

Bate-Seba veio a se tornar o pivô da mais triste e lamentável nódoa na biografia do bom e querido rei Davi, com ingredientes hollywoodianos de adultério, traição e assassinato frio e premeditado por parte daquele que se considera como tendo sido o maior rei de Israel.

VISÃO DO TERRAÇO
No recôndito indevassável do jardim interno de seu lar, numa casa típica das famílias nobres de Jerusalém, estava Bate-Seba tomando banho, alheia ao fato de que, do privilegiado terraço do palácio real, Davi a espionava, invadindo sua privacidade, e que, extasiado com sua beleza, a desejou com todo o vigor da virilidade dos seus cerca de 40 anos.

Não era para o rei estar ali. Era primavera, época em que os reis saíam à guerra, e ninguém poderia sequer imaginar que Davi, cuja vitória sobre o gigante Golias o catapultara instantaneamente à invejável condição de herói nacional, e cujo máximo prazer era liderar seu exército à frente de renhidas batalhas, desta vez havia ordenado que Joabe e seus comandados fossem à guerra sem ele.

Quedou-se Davi mentalmente a degustar as glórias de sua fama em função de suas fantásticas conquistas, num afago ao ego por sua reconhecida e decantada inteligência e valentia: bonito, atraente, poeta, músico, cantor, salmista, temido e respeitado guerreiro, não existia rei como ele! E permitiu que seus pensamentos fluíssem ao léu, dando asas à imaginação…

Ao flagrar Bate-Seba em seu banho (cerimonial, de purificação?), sob o rubor da integridade moral estampado em sua face, Davi deveria ter desviado o olhar e fugido em respeito à intimidade dela, ainda mais sendo ele o líder espiritual de Israel.

Deveria, mas não o fez. Ao contrário, quanto mais se demorava em contemplar a estonteante beleza de Bate-Seba, obcecado por cada gesto, mais o fogo da paixão o inflamava, a tal ponto que racionalizou: “Afinal, não sou o rei? Aos reis nada é vedado. Tenho esse direito.”

Davi indagou quem era aquela mulher, e recebeu informações pormenorizadas dos informantes, talvez na sutil esperança de demovê-lo de suas previsíveis más intenções: “É Bate-Seba, filha de Eliã, mulher de Urias, heteu, fiel soldado do seu exército, que está no campo de batalha, arriscando a própria vida em defesa do nosso povo…” (ver 2Sm 11:3). Porém, o grande dominador Davi deixou-se dominar por seus instintos carnais, e ninguém o demoveria de sua decisão. Ordenou que fossem buscá-la.

Intrigada, sem sequer imaginar as pretensões do rei, Bate-Seba, sem hesitar, os acompanhou servilmente, como era próprio das mulheres e dos súditos da época. E então, surpreendida, acuada, subjugada por um rei todo-poderoso, sem outra opção, ela se submeteu passivamente aos irrefreáveis caprichos e desejos de Davi.

Mas por que não resistiu? Por que não gritou? Simples: de que adiantaria? Quem se arriscaria a tentar livrá-la de um rei considerado pelo próprio Deus um guerreiro sanguinário? (1Cr 28:3).

Ato contínuo, saciado em sua avassaladora e inconsequente volúpia, indiferente aos mais íntimos sentimentos de Bate-Seba, ele a despediu secretamente. Mas aquilo com que Davi não contava aconteceu. Discretamente, ela lhe enviou uma mensagem: “Estou grávida!”

No laconismo desse recado, evidenciam-se dois fatos: (1) seu banho realmente não havia sido uma exibição sensual e provocativa, a fim de atrair a atenção do rei, como alguns insinuam (um forjado álibi dos “advogados” de Davi, para atenuar a extensão de sua queda); (2) durante um mês inteiro, Bate-Seba, na solidão da sua casa, quedou-se reclusa no seu canto, sem buscar contato com Davi, o que seria próprio de uma mulher leviana e chantagista, como se busca injustamente imputar ao seu caráter, e só o contactou após se certificar de sua gravidez, com a quebra do ciclo menstrual (não havia exames laboratoriais).

O PLANO ESTRATÉGICO
O estrategista Davi, então, arquitetou um “infalível” plano. Usando suas prerrogativas de comandante-em-chefe do exército, mais que depressa mandou tirar Urias do campo de batalha, levou-o até o palácio, e, com palavras lisonjeiras, ofereceu-lhe um lauto banquete, regado com o melhor vinho, após o que, com presentes e um salvo-conduto real, instou-o a ir para casa e gozar as legítimas delícias matrimoniais com sua jovem e bela mulher, como se fosse um prêmio por sua bravura.

O relato evidencia a intenção de Davi em que a gravidez fosse atribuída ao próprio marido. Quem sabe, se Urias tivesse caído na armadilha, sob os auspícios e a liberação do rei, e estivesse com Bate-Seba, além de lhe atribuir a paternidade do seu filho, Davi poderia até condená-lo a apedrejamento, por ter infringido as práticas de guerra da época.

No entanto, Urias era mais nobre e fiel ao Deus de Israel do que o Seu ungido: “A arca, Israel e Judá ficam em tendas. Joabe, meu senhor, e os servos de meu senhor estão acampados ao ar livre. Como poderia eu ir para casa, comer e beber e me deitar com a minha mulher? Juro pela vida do rei que não faria tal coisa” (2Sm 11:11).

Davi tudo fez para convencer Urias, oferecendo-lhe novo banquete mais farto e embebedando-o com o mais fino dos vinhos de sua adega real. Mas Urias manteve firme sua consciência religiosa e ética, e não desceu à sua casa. Com obstinada fidelidade, acabou por levar em mãos sua própria sentença de morte, assinada pelo rei, numa trama sórdida e ­calculista, acobertada pelo general Joabe, que mais tarde traiu sua fidelidade a Davi.

Respeitados os dias de luto (segundo o costume, uma semana), na vã tentativa de ele próprio assumir a gravidez, Davi tomou Bate-Seba como sua mulher. Mas ambos sofreram amargamente a doença mortal que atingiu seu inocente primogênito, com apenas um aninho de vida.

Desse casamento legítimo, posto que Bate-Seba havia ficado viúva, mas imoral, dadas as artimanhas que o possibilitaram, nasceram mais quatro filhos, dentre os quais o rei Salomão, de cuja descendência veio ninguém menos que o Salvador da humanidade! E o evangelista, apesar de evitar mencionar seu nome, inclui Bate-Seba na genealogia de Jesus (Mt 1:6)!

O PECADO DO REI
Não há como atribuir culpa alguma a Bate-Seba em todo esse imbróglio, na velada intenção de atenuar a culpa de Davi. Sintomaticamente, a Bíblia e Ellen White silenciam sobre sua participação, um silêncio eloquente, referindo-se única e exclusivamente ao “pecado de Davi”. Mas por que, na ausência de registro contra ou a favor, opta-se pelo contra? Seria por se tratar de uma mulher, via de regra incriminada como corruptora?

Várias opções têm sido oferecidas: (1) Bate-Seba banhava-se “em público”, “sensualmente”, para atrair a atenção de Davi; (2) sabendo-se muito bonita, ela teria se envaidecido por ter sido escolhida dentre todas as mulheres de Israel, que adorariam estar em seu lugar; (3) ela não teria sido forçada pelos emissários do rei, tendo aceitado ir ter com Davi espontaneamente; (4) ela teria participado na trama da morte de Urias, para livrar a própria pele do apedrejamento; (5) Davi e Bate-Seba tiveram vários encontros de prazer, até que ela engravidou, o que foge totalmente da revelação direta da Palavra (2Sm 11:4, 5). Quanta imaginação fértil, tendenciosa, sem a mais remota evidência escriturística!

Em contraposição, nas sete vezes em que Ellen White se refere a Bate-Seba, em nenhuma delas a mulher tem sua conduta moral desabonada. Em duas dessas referências, a mensageira indica, de forma sensível e cristalina, que ela não foi cúmplice, mas vítima: “Passando-se o tempo, o pecado de Davi contra Bate-Seba se tornou conhecido, e despertou a suspeita de que ele havia tramado a morte de Urias” (Patriarcas e Profetas, p. 720). “Davi tinha cometido um grave pecado, tanto contra Urias como contra Bate-Seba, e intensamente o sentia. Mas infinitamente maior era seu pecado contra Deus” (p. 722).

A inteligente alegoria que o profeta Natã, inspirado pelo Espírito Santo, enunciou a Davi, comparando Bate-Seba a uma ovelhinha frágil, indefesa, inocente, que o “homem rico” matou (moralmente), é tão contundente que Davi se sentiu sensibilizado e, num impulso de justificada ira e revolta, foi movido a usar de sua autoridade e declarar uma sentença real: “Morte a esse homem!” Ao dizer isso, Davi estava sentenciando a si mesmo, tanto que o profeta Natã lhe disse: “Também o Senhor perdoou o seu pecado; você não morrerá” (2Sm 12:13).

O drama (i)moral que Bate-Seba involuntariamente protagonizou era de tal gravidade para a cultura oriental que seu avô Aitofel bandeou-se para o lado de Absalão, como que para “lavar a honra” maculada de sua família pelo ato de Davi.

Felizmente, para nosso ensino e advertência, a Palavra de Deus revela, sem rodeios e subterfúgios, as gravíssimas consequências dos impensados e condenáveis atos de Davi e, por extensão, de todos nós. Mas, de igual modo, para nossa inspiração, nos belíssimos e tocantes Salmos 32 e 51 está registrada a profundidade do seu arrependimento, num arroubo poético de rara beleza e sinceridade.

É bonito constatar que, por divina inspiração, a Bíblia relata que Davi teve a honestidade moral e espiritual de assumir as consequências dos seus atos pecaminosos, eximindo totalmente Bate-Seba de culpa (ver Sl 32:1-5; 51:3, 4, 7, 8).

Atente-se para a dramaticidade do registro do seu profundo remorso e o patético relato de seu jejum, por sete dias, intercedendo em angústia pelo filho de apenas um aninho, acometido de mortal enfermidade, fruto inocente de sua insensatez (2Sm 12:15-23).

Embora Deus tivesse dito a Samuel que encontraria um homem segundo o Seu coração para suceder Saul, foi a partir do inspirador desfecho dessa amarga experiência que ao nome de Davi, como num sobrenome restaurador, se acrescentou carinhosamente o qualificativo “o homem segundo o coração de Deus” (1Sm 13:14; At 13:22). Os evangelistas e os contemporâneos de Jesus se referem a Ele como “filho de Davi”, admirado e até hoje muito amado.

Após esse triste episódio, Davi reinou ainda por cerca de 30 anos e, como havia profetizado Natã, a espada nunca se afastou do seu reinado (2Sm 12:9-15).

Queira Deus que, mercê da imerecida graça divina, tenhamos o privilégio e a alegria de testemunhar a comovente cena do reencontro entre Urias, Bate-Seba, Davi e o anônimo bebê, num longo e forte abraço de perdão e restauração, sob o sorriso feliz e o satisfeito olhar de Jesus!

Francisco Gonçalves (via Revista Adventista)

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