Pouco depois da morte dos apóstolos, o cristianismo começou a ser influenciado pelos ensinos de filósofos gregos pré-cristãos, especialmente Platão e Aristóteles. Por isso, os teólogos cristãos passaram a descrever Deus como desprovido de emoções, autossuficiente e incapaz de sofrer. Deus passou a ser visto como Alguém que não Se interessa por nada fora de Si mesmo e que não pode ser afetado por nada.1
Essa idéia de um Deus impassível (sem emoções) prevaleceu entre os cristãos até o século 19, quando alguns começaram a defender uma compreensão mais bíblica sobre Deus. Uma notável diferença entre o ensino bíblico e a filosofia grega é que, segundo as Escrituras, Deus experimenta emoções, como sofrimento, tristeza e angústia.2
Deus sofre? - Sem dúvida, uma consequência inevitável da capacidade de amar é a possibilidade de sofrer. E, visto que Deus ama profundamente os seres humanos, é impossível que nossa maneira de viver deixe de afetá-Lo intensamente. Quando vivemos em harmonia com os ideais de Deus para nós, proporcionamos-Lhe alegria. Por outro lado, quando recusamos ser dirigidos por esses ideais, causamos a Deus intenso sofrimento.
Vários estudiosos também percebem essa relação direta entre a habilidade de amar e a capacidade de experimentar o sofrimento. Por isso, "defendem que a ausência de sofrimento por parte de Deus seria incompatível com Seu perfeito amor".3
Quando vamos às Escrituras, uma das mais claras referências ao sofrimento divino está em Gênesis 6:6. Ao falar sobre o pecado dos antediluvianos, o texto afirma: "Então, Se arrependeu o Senhor de ter feito o homem na Terra, e isso Lhe pesou no coração." Outras versões bíblicas dizem que "isso cortou-Lhe o coração" (Nova Versão Internacional) e que Deus "teve o coração ferido de íntima dor" (Bíblia Fácil, Centro Bíblico Católico). Além disso, Isaías 63:9 declara que, em toda a aflição do povo de Israel, Deus "também Se afligiu" (Nova Versão Internacional).
Por que Deus sofre? - Antes de responder a essa pergunta, precisamos entender que a causa do sofrimento divino se encontra totalmente fora de Deus. Ele não possui nenhum defeito ou imperfeição em Si mesmo que possa levá-Lo a sofrer, nem realiza quaisquer ações capazes de Lhe trazer aflição. Entre as causas do sofrimento de Deus, estão as seguintes:
1. O sofrimento de Cristo. Deus, o Pai, sofreu com Jesus, especialmente durante a agonia que Ele experimentou nos momentos antes de Sua crucificação. Nas palavras de Ellen G. White, Deus "sofreu com Seu Filho. Na agonia do Getsêmani, na morte no Calvário, o coração do amor infinito pagou o preço da nossa redenção".4
2. A existência do mal e as consequências do pecado. Deus Se preocupa com a devastação provocada pelo pecado na vida de Suas criaturas. Pais humanos se sentem profundamente tristes ao ver um filho se destruir pelo uso de drogas. Mas, sem dúvida, Deus sofre muito mais ao contemplar as consequências destrutivas do pecado nos seres humanos. Wade Robinson declara: "A vida de Deus é um contínuo sofrimento. Sua mente pura não pode existir na presença do mal sem experimentar intensa aflição."5 De acordo com Ellen G. White, "durante longos séculos, Deus suportou a angústia de contemplar a obra do mal".6
3. O fracasso humano em atingir o ideal de Deus. Ellen G. White afirma: "O amor divino derrama lágrimas de angústia devido a seres humanos formados à semelhança do Criador, mas que não aceitam Seu amor e se recusam a ser restaurados à imagem divina."7 A mesma escritora afirma que "cada ação de crueldade, cada fracasso da natureza humana para atingir Seu ideal, traz-Lhe pesar".8
4. Simpatia por toda a dor e sofrimento humano. Se "Deus é amor" (1Jo 4:8,16), então Ele sente a dor e a angústia dos seres humanos. Ele não contempla o sofrimento humano como um espectador distante, insensível e desinteressado, mas participa de todo o sofrimento do mundo. Com a mais profunda simpatia, sofre por todos, individualmente. A dor, angústia e tristeza de cada um se tornam as dEle.
Paul Little afirma: "Deus não é um soberano distante, indiferente, impenetrável, afastado de Seu povo e do sofrimento dele. Deus não apenas está consciente do sofrimento, mas o sente. Por mais que possamos sofrer, precisamos nos lembrar de que Deus é o grande sofredor."9 Ellen G. White diz que "Jesus garante a Seus discípulos a simpatia de Deus para com eles em suas necessidades e fraquezas. Nenhum suspiro se desprende, nenhuma dor é sentida, desgosto algum magoa o coração, sem que sua vibração se faça sentir no coração do Pai".10
5. A destruição final dos não arrependidos. A eliminação dos não arrependidos, no juízo final, será o momento da mais intensa aflição de Deus. Às vezes, penso que essa aflição provocará em Deus um sentimento eterno de vazio de cada pessoa que se perder.
Por que isso é importante? - O seguinte texto de Ellen G. White resume muito bem o que dissemos até aqui: "Poucos tomam em consideração o sofrimento que o pecado causou a nosso Criador. Todo o Céu sofreu com a agonia de Cristo; mas esse sofrimento não começou nem terminou com Sua manifestação em humanidade. A cruz é uma revelação, aos nossos sentidos embotados, da dor que o pecado, desde o seu início, acarretou ao coração de Deus."11 O sofrimento divino existirá durante todo o período em que o pecado estiver presente, mas haverá um dia em que ambos chegarão ao fim.
Neste momento, surge a pergunta: Qual é a importância prática de tudo isso para os seres humanos em geral, e para os cristãos em especial? A resposta para essa pergunta inclui várias linhas de pensamento:
1. O sofrimento de Deus é uma consequência da presença do mal no mundo. Portanto, os cristãos devem fazer todo o possível, com a ajuda divina, para apressar o dia em que o mal e o sofrimento serão eliminados do Universo.
2. Ao contemplar as consequências destrutivas do pecado na vida dos seres humanos, Deus experimenta grande sofrimento. Então, pelo poder do Espírito Santo, devemos nos afastar daquilo que é contrário à vontade de Deus. Pastores, professores e pais devem buscar persuadir, respectivamente, membros da igreja, estudantes e filhos a evitar o pecado.
3. Como a eliminação final dos não arrependidos será a ocasião de maior sofrimento para Deus, os cristãos devem fazer todo o possível para conduzir homens e mulheres à salvação. Precisamos proclamar a mensagem do evangelho de forma atrativa, e isso inclui apresentar uma perspectiva correta sobre Deus (Suas emoções) e uma perspectiva realista sobre a humanidade (os efeitos do pecado).
4. Sendo que Deus simpatiza com o sofrimento do mundo, os seres humanos podem ter a certeza de que, em cada momento de angústia, o grande Deus também sente a dor deles e procura confortá-los. Essa certeza traz consolo e paz ao coração.
5. Crer que Deus sofre devido à presença do mal no mundo nos ajuda a entender o antigo problema da teodiceia. (Teodiceia é a tentativa de justificar Deus como um Deus de amor diante da existência do mal e do sofrimento.) O conceito de que Deus realmente pode sofrer é um componente importante de qualquer resposta válida a esse problema.12 Mesmo crendo que Deus é amor, podemos entender a presença do mal e do sofrimento ao saber que Ele compartilha desse sofrimento.
6. As Escrituras ensinam que Deus criou Seus filhos com livre-arbítrio, capazes de provocar-Lhe intenso sofrimento quando utilizam a liberdade de forma equivocada. Isso é um testemunho irrefutável não apenas do infinito amor de Deus pelos seres humanos, mas também de nosso valor e importância para Ele.
Walter M. Booth (via Revista Adventista)
Referências
1. Veja Christopher Stead, A Filosofia na Antigüidade Cristã (São Paulo: Paulus, 1999).
2. Veja Fernando L. Canale, "Doutrina de Deus", em Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia, ed. Raoul Dederen (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira).
3. H. P. Owen, Concepts of Deity (Londres: Macmillan, 1971), p. 144.
4. Ellen G. White, Caminho a Cristo, p. 13, 14.
5. Wade Robinson, The Philosophy of the Atonement and Other Sermons (Londres: J. M. Dent & Sons, 1912), p. 46.
6. Ellen G. White, Parábolas de Jesus, p. 72.
7. ______, The Spirit of Prophecy (Battle Creek, MI: Seventh-day Adventist Publrshing Association, 1878), v. 3, p. 123.
8. ______, Educação, p. 263.
9. Paul E. Little, Know Why You Believe (Downer"s Grove, IL: Inter Varsity Press, 1988), p. 138, 139.
10. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, p. 356.
11. ______, Educação, p. 263.
12. Warren McWilliams, The Passion of God: Divine Suffering in Contemporary Protestant Theology (Macon, GA: Mercer University Press, 1985), p. vii.
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