Você já imaginou Deus no topo de Sua escada celestial pedindo ao mundo: “Alguém, por favor, Me ouça?” Nossa vida é cercada de ruído. O problema é que o barulho nos atrapalha, impedindo-nos de viver com propósito e que o propósito de Deus se cumpra na Terra. Existe apenas um modo de diminuir o ruído de nossa incessante tagarelice, de romper com nosso narcisismo e colocar o foco de nossa atenção em Deus, em nossa alma e nas provações e lutas que nos cercam: a prática das disciplinas espirituais mencionadas na Bíblia.
Apesar de a palavra "disciplina" e seu conceito não serem muito apreciados, há uma longa tradição cristã que olha com grande consideração para as disciplinas espirituais. Ignorar essas disciplinas é um perigo para nós. As disciplinas espirituais são aqueles hábitos que nutrem a saúde e a maturidade da espiritualidade – ou da santificação, se preferir. A Bíblia fala delas com frequência, embora isso não apareça no texto bíblico de forma sistematizada, como ocorre também com outras doutrinas e práticas. O caminho é selecionar e organizar o que as Escrituras dizem sobre o assunto, a fim de estabelecer categorias e listas sobre o tema.
Ao longo dos séculos, vários escritores cristãos coletaram e definiram disciplinas espirituais de acordo com sua tradição religiosa. O que se vê é que não há uma lista definitiva, ainda que muitas categorias sejam sinônimas e sobrepostas. Hábitos como orar, estudar a Palavra, louvar, adorar, confessar, doar e viver em comunidade são recorrentes. Porém, outras disciplinas são menos citadas, como caridade, contemplação, jejum, serviço e simplicidade. A maioria delas aparece com uma longa lista de versos bíblicos que podem ser facilmente compilados numa rápida consulta a uma concordância bíblica. As três disciplinas mais citadas são oração (240 vezes), louvor (mais de 200) e adoração (cerca de 150).
A DISCIPLINA MAIS NEGLIGENCIADA
No entanto, uma disciplina espiritual nunca é mencionada nessas listas, apesar de ser apresentada com frequência nas Escrituras: escutar ou ouvir, duas palavras tratadas como sinônimas na Bíblia, e que têm cerca de 700 ocorrências no texto sagrado. Quase 500 dessas menções estão na forma imperativa ou de instrução, como uma prática a ser seguida. A mais conhecida delas é a Shema, a oração mais importante para os judeus: “Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor” (Dt 6:4). Essa mesma ideia aparece no Novo Testamento com a expressão “aquele que tem ouvidos, ouça” (Mt 11:15; Mc 4:9; Ap 2:7, 11, 17, 29; 3:6, 13, 22).
Escutar está implícito em disciplinas como oração e meditação, mas a prática de escutar não costuma ser encarada como uma disciplina em si. Na Bíblia, há muitos textos para listar com os termos “ouvir” e “escutar”. E os livros que mais enfatizam esse hábito são os de instrução, profecia e evangelho: Levítico, Deuteronômio, Samuel, Jó, Salmos, Provérbios, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos e Apocalipse.
O BENEFÍCIO DE OUVIR
A Bíblia associa “escutar” e “ouvir” a muitas virtudes. Entre elas estão compaixão (Êx 22:27); justiça (Dt 1:16, 17; Mq 3:9); sabedoria e conhecimento (Dt 4:1; Jó 5:27; 34:16; Pv 1:5; Mt 15:10); reverência (Dt 4:10); disciplina (Dt 4:36); felicidade (Lc 11:28; Ap 1:3); percepção da presença, orientação e atuação de Deus (1Rs 8; 2Rs 19:16; Jr 22:29; 36:3; Is 30:21; Ez 3:17); contrição (Ne 1:6); atitude de louvor (Is 24:16); humildade (Jr 13:15; Ne 9:17); confiança (Mq 7:7); coragem para ser fiel e testemunhar (Zc 8:9; 3Jo 4; Mt 11:4; Sl 66:16); obediência (Dt 5:27; 31:12); senso de pertencimento à família de Deus (Lc 8:21; Jo 8:47); e fé (Jo 9:27; 11:42). Seria difícil compilar uma lista mais piedosa do que esta!
Como se pode observar, a disciplina de escutar é crucial para o desenvolvimento da espiritualidade, porque ela nos ajuda a distinguir a vontade de Deus da nossa. Tomado por egoísmo, nosso coração é enganoso e humanamente incurável (Jr 17:9). Mesmo entre os cristãos bem-intencionados, muitas atitudes equivocadas podem ser tomadas em nome de Deus, que na verdade mais prejudicam do que ajudam. Daí a ênfase bíblica em “dar ouvidos” a Deus. Ouvir a voz Dele ilumina a alma (Sl 19:8).
COMO ESCUTAR A DEUS
Como qualquer disciplina, esse hábito requer prática. E a principal maneira de exercitá-lo é por meio do contato com a Palavra de Deus, escrita e falada. A Bíblia é o padrão para identificar a voz Dele; por isso, a centralidade das Escrituras é absoluta no desenvolvimento da espiritualidade.
Em segundo lugar, é preciso afinar a percepção à direção do Espírito, e isso se dá por meio da oração, confissão e solitude. O Espírito da verdade fala diretamente ao ouvido do nosso coração.
Um terceiro elemento é ser mentoreado por alguém. Conselheiros espirituais nos ajudam também a ouvir a Palavra de Deus, quando esse acompanhamento envolve submissão e prestação de contas. De Josué a Samuel e Elias, e dos apóstolos a Timóteo, o orientação pessoal faz parte desse desenvolvimento (2Tm 4:11).
O último passo tem que ver com a experiência – tentativa e erro. Isso é vital, mas precisa ser precedido e moldado pelos passos anteriores. Caso contrário, corremos um risco maior de fazer uma interpretação seletiva da Palavra de Deus, seguindo apenas o que gostaríamos que Ele nos dissesse. O ponto é que geralmente fazemos o contrário: primeiro tentamos acertar por meio de tentativa e erro, para depois recorrer à orientação da Palavra, do Espírito e de conselheiros espirituais.
OUVIR UNS AOS OUTROS
As disciplinas espirituais são recursos para nos conectarmos com Deus. No entanto, aprendê-las pode ser difícil, especialmente ouvir Alguém que não está presente em “carne e osso”, e a quem poucas pessoas já ouviram audivelmente. É por isso que ouvir a Deus envolve três dimensões: contato com Ele, com os outros e consigo mesmo.
Na Bíblia, ouvir está associado a relacionamento e empatia entre seres humanos (Jó 31:35; Gn 23:13-15) e ao amor romântico (Ct 2:14; 8:13). A Bíblia encoraja o escutar recíproco (Jz 9:7) e observa que o silêncio ocorre como um caminho para a sabedoria e a compreensão (Jó 33:31, 33; 34:2, 10, 16).
Na conversação, é comum elaborar seu ponto de vista enquanto o outro fala e esperar que ele dê uma “brecha” para que você expresse sua opinião. Em outras palavras, não estamos realmente escutando. A mudança está em incorporar a mentalidade de Cristo para nossos relacionamentos interpessoais (Fp 2:5). Fazer o favor de realmente ouvir alguém é um ato cristão tanto quanto doar alimento aos famintos e visitar prisioneiros (Mt 25:40). Além disso, Deus pode Se comunicar conosco por meio das pessoas; mas, para ouvi-Lo, precisamos estar atentos a elas.
A Bíblia está repleta de conceitos que não são intuitivos para a humanidade que está desligada de Deus, “como os últimos serão os primeiros”, “os mansos herdarão a terra”, “perder a vida é ganhá-la” e o “líder é servo de todos”. Poderíamos acrescentar outros dois paradoxos: “Eu me sinto poderoso quando falo, mas sou poderoso quando escuto” e “Quanto maior for a posição de liderança, mais o líder precisa escutar”. Entender isso nos fará ver que um ouvido atento para um desabafo pode ser tão poderoso quanto uma pregação eloquente no púlpito. Isso ocorre porque argumentos convincentes podem vencer uma oposição espiritual, mas deixam um rastro de perdas, enquanto escutar com intencionalidade pode gerar a mesma mudança por mais tempo e causando menos danos.
Por sua vez, a Bíblia também encoraja escutar a si mesmo. A conscientização da alma é mencionada em muitos versos (1Sm 1:15; Jó 7:11; Sl 31:9; 35:3; 42; 62:1-5; 130:5; 131:2; Pv 19:8) e está associada à satisfação e à vida renovada (Is 55:2, 3). Ouvir a si mesmo permite que você identifique suas necessidades e leve isso em conta, em vez de ignorá-las. Agindo assim, você estará mais disponível para aceitar e receber o amor curador de Deus.
Historicamente, os protestantes são receosos quanto a um tom muito intimista na espiritualidade, porque isso pode levar à autossuficiência ou escorregar para o misticismo. Contudo, o livro de Salmos, o mais extenso da Bíblia, é o que aprensenta a maior densidade de linguagem introspectiva. Imagine essa coletânea de hinos e poesias sem poderosas expressões que vieram do íntimo da alma humana. Tente remover todas as declarações “eu”, “a mim” ou “meu” dos Salmos e veja como a leitura fica pobre e ineficaz.
Foi em reconhecimento da própria dor, angústia, ira e alegria que os salmistas irromperam em canção, buscaram ao Senhor compaixão e louvaram Seu nome com naturalidade.
JESUS SABIA OUVIR
Os evangelhos apresentam Jesus como Alguém que tinha muita habilidade em ouvir. Ele poderia ser chamado também de Mestre nessa técnica. Em primeiro lugar, Ele ouviu Seu Pai. Cristo disse várias vezes que Seu ministério era cumprir os planos que tinha ouvido de Deus (Jo 6:38; 7:16). Ele também adiantou que Seu sucessor, o Espírito, faria o mesmo (Jo 16:13).
De fato, fazer a vontade do Pai exigiu do Filho escutar muito. Isso deve ter ocorrido nos diversos períodos longos em que Jesus passou em oração, alguns a noite toda (Mc 1:35; Lc 5:16; 6:12; Mt 14:23). Talvez Ele não tenha passado todo esse tempo falando, mas ouvindo também. No Getsêmani, por exemplo, Ele orou para ser dispensado da agonia da cruz, mas demonstrou submissão à voz do Pai e encarou o Calvário.
Em segundo lugar, Jesus escutou os outros. Ao ouvir o Pai, Seu coração se tornou hipersensível aos que O rodeavam, ao ponto de conseguir ouvir os clamores não expressos e mesmo desconhecidos. Nicodemos, a mulher no poço, Zaqueu e o paralítico que foi descido pelo telhado, entre outros, tiveram seus pedidos atendidos por Ele. Ao ouvir o clamor deles, Jesus revelou o coração amoroso do Pai.
O terceiro ponto é que Jesus era sensível ao falar de Si mesmo. As muitas horas passadas em oração testificam a consciência de Sua necessidade do Pai. Ele chorou pela Jerusalém rebelde (Mt 23:37), clamou para não ter que enfrentar a cruz (Mc 14:35) e, próximo de Sua morte, pediu ajuda porque estava com sede (Jo 19:28). Cristo conhecia as próprias necessidades e tinha uma percepção apurada do que se passava ao Seu redor, de modo que conseguiu diferenciar um toque proposital de um aleatório empurrão da multidão (Lc 8:45, 46).
Por fim, a Bíblia apresenta Deus como “El Shama”, Aquele que ouve (Gn 16:11). Aliás, se no vasto Universo existe Alguém que escuta tudo, é Ele. Deus ouve cada oração, sabe quando um pardal cai e quantos fios de cabelo há em nossa cabeça (Lc 12:6, 7). Uma das singularidades da fé cristã é que adoramos um Deus que está ansioso por Se comunicar conosco e demonstrar que responde nosso clamor por salvação. Para nos ouvir, Ele Se fez um de nós e habitou entre nós (Jo 1:14).
Essa é parte da teologia que envolve a disciplina de ouvir a Deus. O desafio agora é experimentar ouvi-Lo diária e mais claramente. Quando você pretende começar?
Daniel Reynaud e Paul Bogacs (via Revista Adventista)
"A consciência é a voz de Deus, ouvida em meio ao conflito das paixões humanas; quando resistida, o Espírito de Deus é entristecido" (Testemunhos para a Igreja 5, p. 120).
“A Bíblia é a voz de Deus a falar-nos exatamente como se pudéssemos ouvi-Lo com os nossos ouvidos” (Nos Lugares Celestiais, p. 135)
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