quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

CIDADÃOS DE DOIS MUNDOS: OS ADVENTISTAS E A RESPONSABILIDADE SOCIAL

Através dos séculos, os cristãos têm debatido a questão de seu relacionamento com a vida e os problemas do mundo presente. Como aplicar as famosas metáforas do fermento, do sal e da luz do mundo que Jesus usou à nossa experiência como cidadãos de dois mundos distintos?

Devem nossos valores morais fazer uma diferença, não apenas na nossa vida espiritual, mas também na da sociedade em que vivemos? Devemos separar as coisas religiosas (como a adoração, por exemplo) dos assuntos seculares (como o envolvimento na política)? Em nosso testemunho através do evangelismo pessoal e comunitário, será que temos que escolher entre o evangelismo e o serviço?

Fizemos recentemente uma pesquisa com uma percentagem dos adventistas dos Estados Unidos, investigando o resultado de seu engajamento religioso em relação à assuntos sociais. 

Embora estejamos conscientes de que esse é um assunto complexo e sensível, queremos examinar nesse artigo uma área de nossa pesquisa e relacioná-la aos ensinos bíblicos sobre a relação entre o envolvimento religioso e o social. É muito provável que nossos comentários serão úteis para os adventistas em outros países também.

Duas Perspectivas

Nossa pesquisa revelou que a experiência religiosa da maioria dos adventistas norte-americanos tem um impacto reduzido e pouco visível em suas atitudes político-sociais. Como acontece com outras denominações evangélicas contemporâneas, parece que somos vitimas da influência restringente da cultura em geral, e temos pouco a dizer sobre conceitos sociais mais amplos.1 Nossa moralidade tornou-se quase que exclusivamente pessoal e individualista.

No que se refere aos assuntos sociais, os cristãos escolheram duas maneiras básicas de encará-los. A primeira, isto é, perspectiva evangelística, advoga que nossa obrigação principal é de ganhar almas para Cristo. Todas as atividades e programas da igreja são canalizadas nesta direção. Segundo esse ponto de vista, a maioria, senão todos os problemas sociais podem ser resolvidos se os corações das pessoas forem transformados. Cristãos que, como nós, vivem na expectativa da iminente volta de Cristo, veem os problemas sociais como parte da deterioração progressiva da sociedade que precedera o fim deste mundo. Essa lógica nos leva a aceitar as coisas como elas são, porque esses eventos foram preditos e anunciam que a volta de Jesus esta as portas.

A segunda perspectiva, a que envolve engajamento social, critica o ponto de vista evangelístico do cristianismo como sendo infiel as exigências radicais de justiça que as Escrituras requerem. Os cristãos que aceitam esse ponto de vista veem-se como mordomos da terra, chamados a segurar os ventos da destruição. O mal e visto como entranhado nas instituições e estruturas da sociedade. Consequentemente, a moral pode ser estabelecida somente através de envolvimento ativo visando mudar a estrutura que oprime o pobre. A igreja deveria não somente aliviar o sofrimento, mas transformar também as instituições que causam o sofrimento.

Esses dois pontos de vista têm base nas Escrituras e encontram apoio na tradição cristã. Qualquer um deles, quando levado a extremos, presume que se possa separar assuntos materiais e espirituais. Ambos são oriundos da filosofia grego-platônica sobre a compreensão da realidade e dos seres humanos. A perspectiva reducionista do evangelismo da a alma um valor primordial em detrimento do corpo — o celestial acima do terrestre, o eterno acima do temporal. A perspectiva estrita do engajamento social põe ênfase na outra face da moeda — a matéria acima do espírito, a sociedade acima do indivíduo.

Os Adventistas do Sétimo Dia têm recebido uma compreensão mais completa da natureza dos seres humanos, de seus objetivos e do seu destino. Na realidade, talvez a nossa missão profética seja de proclamar pela pregação e pelo exemplo uma compreensão "global" da realidade e da salvação. A nossa mensagem, então, manterá os dois pontos de vista acima mencionados num equilíbrio dinâmico.

Razões Para o Não-Envolvimento

Uma revisão na história de nossa demonização revela que em seu começo — como outras denominações em seu início — ela esteve envolvida ativamente em assuntos sociais. Entretanto, quando um movimento religioso cresce e toma-se "bem-sucedido", ele tende a diluir as reivindicações radicais do evangelho, preferindo dom esticar e espiritualizar a mensagem. Nosso estudo sugere que muitos adventistas foram realmente espremidos dentro da forma do mundo que nos rodeia (Romanos 12:2, Phillips).

Existem pelo menos quatro razões que fazem com que a maioria dos adventistas norte-americanos tende a apoiar o status quo. A primeira e a aplicação estrita da separação entre a igreja e o estado, que leva ao não envolvimento no processo politico. Para alguns de nós, o governo representa uma instituição corrupta, um mal necessário, enquanto que a tarefa da igreja e a proclamação do evangelho. Consequentemente, o envolvimento em assuntos seculares vai apenas distrair-nos de nossa missão real. Entretanto, essa posição é perigosa, porque nega o fato de serem os humanos criaturas essencialmente sociais. A Bíblia advoga uma "visão global" da existência humana. As pessoas não estão separadas em compartimentos distintos, cada um separado do todo.

A segunda razão segue logicamente a primeira — a resposta da neutralidade. É melhor continuar "neutro" que arriscar envolver-se em assuntos políticos e sociais que podem colocar em perigo a nossa missão. Temos sido mais pragmáticos que coerentes na aplicação de princípios morais.3 Entretanto, não e possível deixar de tomar posição na sociedade democrática. Uma posição neutra, na realidade, apoia o lado que vence na campanha para o poder político. Algumas vezes o lado vencedor mantém posições que estão de acordo com os valores morais de alguns; mas, na maioria das vezes, primamos interesses pela riqueza, poder e privilégios sociais. Mais que isso, a posição neutra indica que a Bíblia não tem nada a dizer sobre assuntos sociais e econômicos.

A terceira razão consiste na adoração, por parte de muitos adventistas, do individualismo como um valor básico. Essa perspectiva pressupõe que cada indivíduo deve assumir a responsabilidade pessoal no que tange a problemas políticos, econômicos e sociais. Por conseguinte, muitos cristãos fazem a equação entre o conservantismo político e a ortodoxia religiosa.4 De acordo com nossas descobertas, muitos adventistas norte-americanos creem que o capitalismo é o sistema aprovado por Deus. Isso implica, logicamente, que o socialismo não é aprovado por Deus. Entretanto, os princípios básicos do individualismo econômico-reducionismo, responsabilidade individual e benévolo interesse próprio — são valores seculares. Igualar o capitalismo ou o socialismo ao cristianismo e perder de vista a ideologia transcendente do evangelho.

Essa ênfase no individualismo faz com que nossos membros se envolvam em diversos assuntos políticos e sociais. Contudo, a igreja como um corpo oficial, representando a comunidade mundial da fé, evita tomar uma posição publica nesses assuntos. Essa perspectiva não representa os ensinamentos bíblicos e pode causar confusão. Citamos aqui Jan Paulsen:

"As atividades nas quais indivíduos se envolvem a fim de exprimir seu dever cristão, não podem ser em princípio diferentes daquelas que a igreja vê como sua missão. A situação fica intolerável se os cristãos se engajam individualmente em atividades sociais, éticas e políticas que a igreja considera alheias a sua missão e natureza. Uma diferença marcante entre o dever cristão e a missão da igreja parece ambígua e difícil de ser mantida".5

A quarta razão, que resulta dos fatores precedentes, e uma ênfase limitada no modelo evangelístico. Mesmo se os adventistas adotam uma ideia global da natureza humana quer dizer, uma integração inseparável de todas as esferas da vida — nossa crença escatológica na breve volta de Jesus tende a criar um dualismo que desvaloriza a existência terrestre e exalta a esperança futura. Algumas vezes a proclamação da Segunda Vinda torna-se uma "desculpa para escapar a responsabilidade ética".6

As Raízes Bíblicas do Aspecto Social

Os adventistas aceitam as Escrituras como base de autoridade para a instrução e conduta moral. A Bíblia não fala de um Deus remoto, insensível as necessidades humanas, mas sim de um Deus que tem um interesse profundo em Sua criação, interesse esse que O leva a agir em favor dos mais vulneráveis na sociedade.

Deus está presente nas experiências humanas as mais desesperadoras, tais como o sofrimento, a dor e a morte. Deus revela Seu caráter através de Suas ações. Sua influencia na história prova que as realidades espirituais são inseparáveis das realidades materiais. No Velho Testamento nós O encontramos usando José corno um representante político para prevenir uma fome generalizada. Deus sentiu a dor de Seu povo e os ajuda a se livrar da opressão de Faraó. Ele deu instruções a Seu povo para suprir as necessidades dos pobres e dos órfãos. Ele enviou Natã a fim de confrontar o rei Davi em seu estado de pecado. Ele deu poder a Amós, um pastor de ovelhas do deserto, para condenar os poderosos que exploravam os pobres.

Comentando os princípios sociais delineados no Velho Testamento, Ellen White escreveu:

"Se os homens dessem mais atenção aos ensinamentos da Palavra de Deus, eles achariam a solução para os problemas que os atormentam. Muito pode ser aprendido no Velho Testamento com respeito as questões do trabalho e do socorro aos pobres. Era o plano de Deus que cada família em Israel tivesse uma casa no campo, com suficiente terra para ser cultivada. Assim, eles teriam tanto os meios quanto o incentivo para uma vida útil, laboriosa e independente. Nenhum plano humano jamais igualou ao plano divino. Ao contrário, a pobreza e miséria de nosso mundo e em grande parte o resultado do abandono do plano de Deus. Se esses princípios fossem colocados em prática hoje, que lugar diferente seria o mundo".8

Ao analisarmos o Novo Testamento, encontramos um Deus que se tornou completamente encarnado na humanidade e se identificando totalmente com as necessidades humanas. Jesus ensinou que o fato de segui-lo implica tanto aliviar o sofrimento como levar a esperança da vida eterna. Os que mantém que a vida e a mensagem de Jesus não tiveram nenhuma consequência política, não compreenderam a evidencia bíblica.9 Na Sua primeira declaração publica, Jesus ligou Sua missão como chamado para justiça social, citando o profeta Isaias:

"O Espírito do Senhor esta sobre mim, pois me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a apregoar liberdade aos cativos, e dar vista aos cegos; a por em liberdade os oprimidos; a anunciar o ano aceitável ao Senhor" (Lucas 4: 18, 19, Isaías 61:1,2).

Ao ligar o Seu ministério com a tradição profética, Cristo proclamou seu objetivo de reestruturar totalmente a sociedade. Seus seguidores deveriam fazer parte de uma nova ordem social baseada no amor "ágape", que e o fundamento do Seu reino.

As ações de Jesus mostram um ministério de integração não somente dos pobres, dos párias da sociedade, das mulheres, mas também dos ricos. Jesus nunca aceitou o status quo de qualquer situação. Quando Ele visitou os ricos, Ele apelou para que eles repartissem suas riquezas. Ele respondeu com lições de humildade ao desejo de poder expressa do pelos discípulos. No julgamento final, como Jesus explicou em Mateus 25, os que andam com Deus serão considerados mais importantes que os que falam de Deus.

Um exame mais minucioso da vida de Jesus e de seu ministério revela uma perspectiva radical que toca cada aspecto da vida humana. Mesmo se Jesus não se identificou ou endossou a agenda atual dos movimentos políticos palestinos, sua mensagem e atos ameaçaram as estruturas sociais das instituições políticas e religiosas daquela época.

Um Apelo a Conversão

A missão de Cristo requeria a inauguração de uma nova ordem diametralmente oposta a presente.11 Ele também chamou o povo a conversão, isto é, a um novo começo. (João 3:3-7). Quando a conversão acontece, todas as esferas da vida — a espiritual, intelectual, emocional, social, econômica, política — são tocadas pela renovadora influencia do Espírito.

Os gregos do primeiro século estavam preocupados com uma compreensão intelectual correta, enquanto que os primeiros cristãos estavam mais preocupados com a transformação total da aparência e do comportamento. A conversa nunca foi algo abstrato e fora do contexto histórico. As pessoas são sempre chamadas em contextos históricos específicos. Elas vivem sua experiência de conversão dentro da história. Embora a experiência seja profundamente pessoal, ela nunca e privada. Na verdade, "qualquer ideia sobre a conversão que seja alheia a realidade política e social da época, não é bíblica".12

O objetivo da conversão e de ajudar a trazer o reino de Deus para a vida das pessoas deste mundo como uma antecipação da Nova Terra que está por vir. A conversão da idolatria é um tema bíblico que se repete. Os nossos ídolos hoje — riqueza, poder, orgulho, prazer — são bem semelhantes aos de ontem. Voltar-se para Deus, implica não somente uma entrega total de nossa vida, mas também o dar as costas a cada ídolo moderno. Isto também implica um novo começo. "Assim que, se alguém esta em Cristo, nova criatura e: as coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo" (2 Coríntios 5:17, NEB).

A conversão não somente a reorganização do eu interior, mas também a reorganização do eu em relação ao mundo social. O significado da história de Zaqueu (Lucas 19:1-10) e que logo depois de sua conversão ele fez uma restituição aos que tinha lesado. Ele também distribuiu os seus bens aos pobres. Zaqueu reconheceu que tinha cometido um pecado social e que sua conversão requereria uma reparação e reconciliação com aqueles que tinha explorado. Sua conversão envolveu um papel inverso: de opressor ele tornou-se um servo em um doador. Voltar-se para Jesus significa identificar-se com Ele no mundo.

Enquanto que a conversão é inteiramente de origem divina, colocá-la em pratica exige cooperação humana. Sob a direção do Santo Espírito, os cristãos passam por uma transformação que inclui uma mudança de aparência e de relacionamento. Como Jesus, eles se identificam com os pobres e os necessitados. Como Ele, eles procuram liberar as pessoas de sua pobreza material e espiritual. Em solidariedade com a humanidade sofredora, os cristãos encontram uma compreensão mais profunda de Deus. Ellen White escreveu:

"Foi-me mostrado que os guardadores do sábado têm se tornado mais egoístas a medida que se tornam mais ricos. Seu amor por Cristo e Seu povo esta diminuindo. Eles não veem as necessidades dos pobres, nem sentem seus sofrimentos e tristezas. Eles não compreendem que ao negligenciarem os pobres e necessitados eles negligenciam a Cristo, e que ao aliviar, tanto quanto possível, as necessidades dos pobres, eles estão ministrando em favor de Jesus".13

Precisamos estar melhor informados das maneiras sutis através das quais o mal se torna institucionalizado e legitimado, mesmo por valores e instituições religiosas. Isso nos permite decidir e agir com sabedoria, baseados em princípios cristãos. "A igreja que educa para o discipulado deve educar também para a cidadania".14

Numa sociedade democrática, o processo político pode produzir mudanças em muitas áreas de caráter social, tanto no âmbito nacional como internacional. Ao mesmo tempo precisamos olhar para além do presente, lembrando-nos de que nada na história, nada que é humano, é absolutamente seguro. Por quê? Porque a natureza humana e corrupta e egoísta em suas raízes. Portanto, quando os cristãos considerarem um envolvimento político, eles devem examinar cuidadosamente as intenções e pretensões das plataformas políticas e das personalidades.15

A verdadeira conversão então leva os cristãos a se verem como cidadãos de dois mundos, com responsabilidades em ambos. Sob a direção do Santo Espírito, nós aprenderemos a ser fieis a todos os ensinamentos da Bíblia. Procuraremos estabelecer um equilíbrio dinâmico entre o presente e o futuro. Assim, proclamaremos que só há salvação em Cristo, mas também ajudaremos de maneira pratica os necessitados. Almejamos o dia em que a terra será renovada, mas continuaremos a quebrar a escravatura da injustiça nesta terra.

Roger L. Dudley e Edwin I. Hernandez (via Revista Diálogo)

Notas

  1. Robert N. Bellah, Richard Madsen, William M. Sullivan, Ann Swidler, e Steven M. Tipton, Habits of the Heart (San Francisco: Harper & Row, 1985), p. 231.
  2. Veja David O. Moberg, The Great Reversal (Philadelphia: J. B. Lippincott, 1977).
  3. Michael Pearson, Millenial Dreams and Moral Dilemmas (Cambridge, England: Cambridge University Press, 1990), p. 51.
  4. Richard Perkins, Looking Both Ways (Grand Rapids, Mich.: Baker Book House, 1987), pp. 111-112.
  5. Jan Paulsen, "Is Social Service Our Mission?" Adventist Review, (August 31, 1989), pp. 17-20; citação da p. 20.
  6. John Brunt, Now and Not Yet (Hagerstown, Md.: Review e Herald Publ. Assn., 1987), p. 15.
  7. David O. Moberg, Wholistic Christianity (Elgin, Il.: Brethren Press, 1985), p. 32.
  8. Ellen G. White, Welfare Ministry (Washington, D.C.: Review and Herald Publ. Assn., 1952), pp. 195- 196.
  9. Veja, por exemplo, John H. Yoder, The Politics of Jesus (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1972); e Richard J. Cassidy, Jesus, Politics, and Society (Maryknoll, N.Y.: Orbis Books, 1988).
  10. Veja Frederick Herzog, God-Walk (Maryknoll, N.Y.: Orbis Books, 1988).
  11. Veja Jim Wallis, The Call to Conversion (San Francisco: Harper & Row, 1982).
  12. Wallis, op. cit., p. 5.
  13. White, op. cit., p. 39.
  14. John Coleman, "The Two Pedagogles: Discipleship and Citizenship," pags. 35-75 em Mary C. Boys, ed., Education for Citizenship (New York: The Pilgrim Press, 1989), pag. 57.
  15. Veja Glenn Tinder, The Political Meaning of Christianity (New York: Harper Collins Publishers, 1991), pp. 151-195.

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