quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

ELLEN G. WHITE E OS SINDICATOS

Muitos adventistas do sétimo dia utilizando-se da Bíblia Sagrada e, principalmente, dos escritos de Ellen G. White, afirmam categoricamente que é um erro os cristãos adventistas se filiarem a sindicatos e participarem de movimentos reivindicatórios e grevistas. E aproveitam as redes sociais ou mesmo as "rodas de conversas" para condenar a participação de cristãos adventistas em qualquer greve ou manifestação por direitos. Passagens bíblicas são tiradas de seus contextos para dizer o que, de fato, não pretendem dizer. Mas afinal, o que a Bíblia Sagrada e Ellen G. White dizem sobre o assunto? É mesmo um pecado os cristãos adventistas participarem de sindicatos e suas atividades? Esse artigo tem por objetivo refletir em alguns pontos sobre este assunto complexo, mas sem pretender esgotá-lo e oferecer uma resposta universal e encerrada. As situações e contextos são muito diferentes, mas creio que podemos chegar ao bom senso cristão comum, digamos assim.

Antes de prosseguir na explanação do tema em questão, devo fazer o seguinte esclarecimento: As ideias inseridas no texto não representa de forma alguma o pensamento oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia, mas tão somente reflexo da minha opinião pessoal, decorrente de minhas reflexões. Dito isto, prossigamos na análise do tema.

Ellen G. White e os Sindicatos
É verdade que a escritora cristã Ellen G. White fala dos sindicatos numa perspectiva muito negativa. A maior parte de sua vida foi vivida no século XIX, nos Estados Unidos da América do Norte. Nesse tempo, as questões trabalhistas já eram objeto de movimentos grevistas, e isso passou a gerar implicações de grande alcance. Em face desse problema, ela escreveu:

“Em razão de monopólios, sindicatos e greves, as condições da vida nas cidades estão-se tornando cada vez mais difíceis” (A Ciência do Bom Viver, p. 364).

“Essas cidades estão repletas de toda espécie de iniquidade – com conflitos e assassínios e suicídios. Satanás está nelas, controlando os homens em sua obra de destruição” (Vida no Campo, p. 25).

“Buscam os homens conseguir que os elementos empenhados em diferentes profissões se filiem a certos sindicatos. Esse não é o plano de Deus, mas de um poder que não devemos jamais reconhecer” (Testemunhos Seletos, v. 3, p. 115).

“Os sindicatos trabalhistas rapidamente se agitam e apelam à violência se suas reivindicações não são atendidas. Mais e mais claro está se tornando que os habitantes do mundo não estão em harmonia com Deus” (Eventos Finais, p. 23).

“Os sindicatos serão um dos instrumentos que trarão sobre a Terra um tempo de angústia tal como nunca houve desde o princípio do mundo” (Vida no Campo, p. 16).

“Não devemos ter nada que ver com essas organizações. Deus é o nosso Soberano, o nosso Governador” (Eventos Finais, p. 116).

Muitos valem-se destas e de outras citações dela para criticar os seus irmãos, afirmando que os mesmos incorrem em erro ao participarem de sindicatos e eventualmente de movimentos paredistas. Todavia, ao fazerem tal julgamento, tais pessoas desprezam uma das características fundamentais do método científico de análise literária: todas as declarações de um autor sobre determinado assunto a ser estudado devem ser cuidadosamente consideradas, levando-se sempre em consideração o contexto socioeconômico, político e religioso em que foram escritas. Se levarmos isso em conta evitaremos as más interpretações dos escritos dos autores. Esse princípio básico de compreensão de texto deve-se aplicar nas declarações supracitadas de Ellen G. White.

É importante que se diga que, as greves sindicais nos Estados Unidos na época de Ellen G. White eram marcadas por forte violência, que prejudicavam a própria causa dos trabalhadores, em vez de beneficiá-la. No seu artigo “O Sindicalismo nos Países industriais”, Carlos Fernando de Almeida, afirma que no final do século XIX, “os métodos de ação [dos sindicatos] revelavam grande dose de empirismo e improvisação. O recurso à greve, à sabotagem e à violência era frequente”. (http://analisesocial.ics.ul.pt/.../1224161582B5aYZ8dg3Hs9...).

Isso explica o fato dela escrever sobre o assunto de forma tão negativa. Vale ressaltar ainda que, ao escrever dessa forma dos sindicatos “a intenção de Ellen White não era tolher os direitos dos trabalhadores, mas simplesmente incentivá-los a assegurar seus direitos de forma pacífica, sem o uso da violência, característica das greves sindicais da época. É por essa razão que a Igreja Adventista não proíbe seus membros de se vincularem aos sindicatos modernos, mas apenas os orienta a não desconhecerem os princípios da não violência ensinados por Cristo (ver Mat. 5:38-42). (...)

“Desconhecendo o contexto da época, alguém poderia acusar o próprio apóstolo Paulo de discriminação sexual, ao ordenar que as mulheres ficassem caladas na igreja (ver 1Co 14:34 e 35). Isso confirma mais uma vez o princípio básico de que, para conhecermos o pensamento de um autor (inclusive de Ellen White), não podemos confiar meramente nas opiniões dos seus apaixonados advogados ou dos seus acérrimos inimigos, mas devemos estudá-los por nós mesmos, para ver se as coisas são "de fato, assim" (ver Atos 17:11)” (Revista Adventista, agosto de 1998. Casa Publicadora Brasileira, p. 33).

É evidente que os sindicatos de hoje são muito mais organizados do que os dos séculos passados. Não se observa mais a violência que caracterizavam as greves norte-americanas no século XIX. Carlos Fernando de Almeida ainda afirma que “as características dos sindicatos modernos são, na verdade, amplamente distintas das dos sindicatos dos fins do século XIX. As formas de organização, os métodos, os objetivos foram-se modificando, à medida que os sindicatos se iam mostrando capazes de vencer as primeiras resistências, de conquistar a confiança dos trabalhadores e de se implantar solidamente na sociedade” (http://analisesocial.ics.ul.pt/.../1224161582B5aYZ8dg3Hs9...).

O que diz a Bíblia?
Evidentemente que as Escrituras Sagradas nada dizem sobre as greves, como as que conhecemos hoje. Até porque nos tempos bíblicos não existia essas formas de organizações, que são modernas. Os sindicatos nascem na primeira metade do século XIX, como reação às precárias condições de trabalho e remuneração a que estão submetidos os trabalhadores no capitalismo. Porém, a Bíblia apresenta princípios que devem nortear o comportamento dos cristãos. Vamos analisar alguns textos comumente citados quando o assunto está em discussão, e que supostamente poderiam nos dar alguma orientação.

Aqueles que são contra a participação dos cristãos em movimentos paredistas são useiros e vezeiros das célebres palavras de Jesus: “dai a César o que é de César e dai a Deus o que é de Deus” (Lc 20:25). Indubitavelmente, quando Jesus profere estas palavras está ensinando sobre a obediência civil. Que devemos pagar impostos, obedecer as leis e respeitar as autoridades. Porém, penso que é possível o cristão fazer greve dentro da lei, respeitando as autoridades.

É preciso lembrar que greve é um direito constitucional do trabalhador. É legal. Na minha opinião, participar de uma greve quando é permitida por lei é algo lícito ao cristão. Vejamos o que diz a “lei da greve” ou LEI Nº 7.783, DE 28 DE JUNHO DE 1989.

• “Art. 1º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

• Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se legítimo exercício do direito de greve a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador.

• Art. 3º Frustrada a negociação ou verificada a impossibilidade de recursos via arbitral, é facultada a cessação coletiva do trabalho.

Essa lei possui 19 artigos reguladores das greves, mas somente esses três já no servem como um grande filtro de ética. Se a greve em questão não for pacífica nenhum cristão deve participar. É crime segundo a lei brasileira e segundo a lei de Deus. Segundo, se a greve começou sem nenhuma tentativa de resolução do problema por vias normais nenhum cristão deve participar. A greve é um último recurso que deve ser evitado, não um atalho para resolver logo qualquer tipo de problema.

Esta lei define também, que: “Art. 6º. [...] § 1º Em nenhuma hipótese, os meios adotados por empregados e empregadores poderão violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem. [...] § 3º As manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa”. Uma greve que não obedece a isso, além do restante da lei e às decisões judiciais, seria ilegal ou abusiva, sendo, em minha opinião, não conveniente a participação do cristão. Quando ocorrem atos de violência e vandalismo os cristãos não devem fazer parte desses movimentos. O crente adventista deve sempre tomar uma posição pacífica e estar pronto para negociar. É importante evitar extremos e violência. A justiça é muito importante, mas a paz também é. Jesus afirmou: “Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5:9, NVI).

A atitude do cristão adventista durante uma greve vai afetar seu testemunho. É preciso que ele saiba como defender sua posição sobre a situação de uma forma moderada e sensata, sem insultar ninguém. Fora ou dentro da greve, o cristão deverá ser “sal e luz” e manter sua fidelidade a Cristo (Mt 5:13, 14).

Ademais, é preciso analisar a justiça da greve. Se os salários dos trabalhadores estão defasados e as condições de trabalhos são precárias, o cristão pode participar de movimentos reivindicatórios. Quando cumpre a lei, a causa é justa e outros métodos pacíficos falham, os cristãos podem, sim, fazer greve. A greve é um recurso de última instância que serve para corrigir abusos por parte do patronato. Os trabalhadores só devem recorrer à greve quando não têm mais opções. A Bíblia não condena a luta pacífica pela justiça. Se a greve é justa, o cristão não se deve sentir culpado se participar. A greve é uma forma pacífica e legítima de resolver injustiça. Muitas vezes os trabalhadores sentem dúvidas ou até mesmo lesados em seus direitos, e quando isso acontece, o Sindicato o qual o trabalhador pertence, poderá orientá-lo como exigir o cumprimento dos seus direitos.

Os Sindicatos têm condições de tentar a solução dos problemas através de negociação, denuncia a Delegacia Regional do Trabalho, Procuradoria do trabalho se necessário, e em última instância ingressar com ação na Justiça do Trabalho.

Por vezes permitir que a injustiça continue causará mais problemas que uma greve. A greve prejudica o patronato temporariamente para resolver uma situação de injustiça permanente. Por exemplo, sem recurso a greve as mulheres nunca teriam conseguido o direito de igualdade salarial. Às vezes não podemos ficar indiferentes. Se Martin Luther King pensasse como muitos de nós, os negros americanos ainda estariam segregados. Foi ao custos de muitas greves, boicotes e manifestações que a América se dobrou às reivindicações daquele jovem pastor.

Um outro texto bíblico bastante utilizado por aqueles que são contra a participação dos cristãos nos sindicatos e nas greves, é Lucas 3:14: "Não pratiquem extorsão nem acusem ninguém falsamente; contentem-se com o seu salário". E, então eles concluem: os adventistas não devem participar de sindicatos e greves porque a Bíblia diz que devemos nos conformar com nosso salário. Eles ignoram o fato de que, quando João Batista falou aos soldados estas palavras estava advertindo contra a extorsão que praticavam para ganhar mais dinheiro (“a ninguém trateis mal nem defraudeis”). Portanto, não se trata de desqualificar a luta por melhores salários ou condições dignas de trabalho. Se a partir disso formularmos uma regra genérica de que “o cristão deve contentar-se com seu salário”, o simples fato de mudar de emprego ou estudar para passar num concurso para obter melhor remuneração já seria uma desobediência a Deus e, portanto, pecado.

Um outro texto empregado por aqueles que são contrários os cristãos participarem de sindicatos e greves, é Romanos 13:1, onde Paulo exorta-nos a submeter-nos às autoridades constituídas. Isso significa que devemos fazer o nosso trabalho bem e respeitar nossos chefes. O cristão não é um desordeiro que gosta de provocar confusão nem causar danos a outros. A ética normal de trabalho do cristão promove sempre a excelência. Não significa isso que não temos que lutar por melhores condições de salário e de trabalho. Por outro lado, a Bíblia diz que devemos lutar pela causa dos oprimidos. “Aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva” (Isaías 1:17, NVI). Cada cristão pode escolher se submeter a opressão individual mas tem o dever de defender outros. Quando uma pessoa oprime outra, quem tem poder para mudar a situação e não faz nada comete pecado (Tg 4:17). Uma greve nunca é uma questão individual; trata de situações de injustiça coletiva. Ao aderir a uma greve, o cristão adventista não está lutando apenas por um direito particular, mas pela classe que representa. Portanto, ele luta pelo bem comum.

Outro texto comumente empregado por aqueles que são contrários aos sindicatos e suas ações é Efésios 6:5-8. O apóstolo Paulo afirma: “Vós, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne, com temor e tremor, na sinceridade de vosso coração, como a Cristo”. Note que o apóstolo está falando sobre realizar um trabalho honesto, e sobre não fingir que está trabalhando (“não servindo à vista”). Além disso, a relação de trabalho do trecho citado é de escravidão, permitido pela lei vigente. Não havia, entre os autores bíblicos, a intenção de incentivar seus destinatários a se rebelar contra a lei (1Co 7.20-24).

Finalmente, concluo retomando a questão do título do artigo: Pode um cristão adventista participar de Sindicato e de greves? Diante do exposto afirmo que SIM! Contudo, acredito que isso é uma questão de foro íntimo. Se o crente adventista sente-se desconfortável em filiar-se a um sindicato de sua categoria e de participar de greves, que não participe. Porém, se um outro percebe que sua participação não afeta sua vida espiritual com Deus, obedecendo os critérios da justiça, legalidade e do princípio da não violência, que participe. Cada um é livre para participar ou não na constituição de um sindicato e dele se tornar sócio. Ambos devem respeitar-se mutuamente.

Querido irmão, antes de sair por aí condenando cristãos que aderem as greves, consideremos a legitimidade de suas reivindicações. Como por exemplo, uma remuneração que lhes permita oferecer conforto e dignidade à sua família. O Deus revelado nos evangelhos está atento ao clamor dos trabalhadores! Ou não foi isso que Tiago disse em sua epístola?

“Vede! O salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando. Os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor Todo-poderoso.” Tiago 5:4

E como fazer vista grossas às passagens abaixo?

“Não oprimirás o teu próximo, nem o roubarás. O salário do operário não ficará em teu poder até o dia seguinte.” Levítico 19:13.

“Não explorarás o assalariado pobre e necessitado, seja ele teu irmão, seja ele estrangeiro que mora na tua terra e nas tuas cidades.” Deuteronômio 24:14.

Ricardo André (via facebook)

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