terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

TOLERÂNCIA ZERO

Um dia alguém me perguntou: “O que é que eu tenho a ver com o pecado de Adão e Eva? Por que Deus não resolveu esse problema lá entre eles, em vez de permitir que as consequências desse erro passassem de pai para filho e se espalhassem por toda a humanidade?”

A pergunta é pertinente, não somente do ponto de vista existencial, mas teológico, principalmente se considerarmos dois textos que parecem contraditórios. Em Ezequiel 18:20, lemos que o filho não levaria a iniquidade do pai, enquanto em Êxodo 20:5 o fim do segundo mandamento diz que Deus visitaria o pecado até a quarta geração dos transgressores.

Afinal, a iniquidade dos pais é ou não transmitida aos filhos? Como podemos harmonizar os dois textos anteriores e a constatação de que o pecado de Adão e Eva tem deixado um rastro de destruição ao longo da história da humanidade?

NÍVEIS DE GRAVIDADE
Penso que temos aqui três níveis de transgressão com suas respectivas consequências. Ezequiel faz referência às faltas de menor gravidade cometidas pelos pais, e cujos resultados seriam colhidos exclusivamente por eles. Por sua vez, o princípio contido no segundo mandamento talvez se refira às falhas e defeitos de caráter mais graves, cujas implicações são sentidas não somente pelos pais, mas também pelos filhos, netos, bisnetos e trinetos.

Nessa segunda categoria poderíamos incluir os males hereditários enumerados por Ellen G. White, como alcoolismo (Ciência do Bom Viver, p. 331), paixões sensuais (Mensagens Escolhidas, v. 2, p. 423), degenerescência mental e física causada por um estilo de vida doentio (Temperança, p. 56, 174), inclinação para o uso de drogas (Temperança, p. 85) e temperamento irascível (Testemunhos Para a Igreja, v. 2, p. 74). Segundo a pioneira adventista, Jacó viu repetir-se em seus filhos o pecado que ele havia cometido (Patriarcas e Profetas, p. 238).

A desobediência de Adão e Eva, no entanto, está num terceiro nível de gravidade. Essa falta foi tão séria que suas consequências foram genéticas, passando a fazer parte da própria natureza humana. Porém, assim como questionou a pergunta inicial deste artigo, o que houve de tão grave no Éden para que toda a humanidade fosse atingida? A punição não foi desproporcional ao tipo de infração? Dois exemplos podem nos ajudar a explicar a lógica do pecado.

IMPACTO DE UM ERRO
À primeira vista, pode-se ter a impressão de que os conflitos entre palestinos e israelenses começaram com a criação do Estado de Israel, em 1948. Contudo, as sementes desse embate foram lançadas na época de Abraão. O patriarca esperou dez anos pelo cumprimento da promessa divina de que ele teria um herdeiro. Porém, aos 85 anos e com a esposa estéril, preferiu dar uma “mãozinha” para Deus. Com a aprovação de Sara, sua mulher, ele deitou-se com Hagar, e a serva da família lhe deu um filho: Ismael (Gn 16:16).

A infração “leve”, que poderia nem ter sido encarada como um erro pela cultura da época, contrariou a vontade de Deus e teve consequências de longo prazo. Quatorze anos depois, a promessa seria cumprida, mas o deslize do patriarca contribuiria para um conflito étnico milenar entre os descendentes de Isaque (judeus) e Ismael (árabes).

Uma experiência contemporânea e com acompanhamento científico também nos ajuda a entender como o pecado opera. Em 1969, o professor Phillip Zimbardo, da Universidade de Stanford (EUA), conduziu uma experiência de psicologia social. Dois carros idênticos foram estacionados em lugares distintos. Um foi deixado no Bronx, bairro pobre e perigoso de Nova York, e o outro em Palo Alto, região nobre e tranquila da Califórnia.

O comportamento das duas vizinhanças foi observado por alunos de Zimbardo. O resultado foi que o carro abandonado no Bronx começou a ser vandalizado em poucas horas. Levaram tudo que fosse aproveitável, e aquilo que não puderam levar destruíram. Em Palo Alto, por sua vez, o veículo permaneceu intacto por uma semana, até que os próprios pesquisadores quebraram uma janela dele. Imediatamente se desencadeou o mesmo processo de desmanche do Bronx.

Por que a quebra do vidro de um veículo num bairro nobre desencadeou um processo de vandalismo? A explicação é que aquele primeiro delito transmitiu uma ideia de deterioração e despreocupação com os códigos de convivência, dando a impressão de que aquele era um ambiente em que valia tudo.

Tempos depois, James Q. Wilson e George Kelling desenvolveram com base nesse experimento a Teoria das Janelas Quebradas, que, do ponto de vista criminalístico, concluiu que os delitos são mais recorrentes nos lugares em que o descuido, a sujeira e a desordem são maiores. Por isso que no trânsito, quando “pequenas faltas” como estacionar em lugar proibido, exceder um pouco o limite de velocidade ou cruzar um sinal vermelho não são punidas, logo começam a ser cometidas faltas mais graves. Salomão parece ter falado também sobre esse processo (Ec 8:11).

TOLERÂNCIA ZERO
A Teoria das Janelas Quebradas foi aplicada pela primeira vez na década de 1980 no metrô de Nova York, o qual havia se convertido no ponto mais perigoso da cidade. O caminho foi combater as pequenas infrações, como pichar os banheiros, jogar lixo nos vagões e evadir a estação sem pagar a passagem. Os resultados foram evidentes, e o metrô se tornou um lugar seguro.

Posteriormente, em 1994, Rudolph Giuliani, então prefeito de Nova York, promoveu uma política de “tolerância zero” para toda a cidade. A punição exemplar para quem não cumprisse as normas de convivência urbana reduziu todos os índices de criminalidade na metrópole.

A expressão “tolerância zero” pode soar autoritária e repressiva, mas seu princípio está vinculado à prevenção e promoção de condições sociais de segurança. Não é tolerância zero em relação aos infratores, e sim em relação ao próprio delito. Creio que foi assim que Deus lidou com o pecado de Adão e Eva no Éden. A punição deles foi exemplar, pois já sentiram dentro e fora deles as primeiras consequências de sua rebeldia.

Porém, a maldade continuou aumentando, até que Deus precisou destruir o mundo antigo por meio das águas do dilúvio e precisará repetir isso com fogo. O “pequeno” deslize de Adão e Eva resultou numa tragédia gigantesca que ainda não chegou ao fundo do poço. Quando Deus deixar de conter a ação do mal (Ap 7:1), haverá cenas de maldade e crueldade que ninguém pode descrever, segundo Ellen White no livro Educação, página 180.

PEQUENAS BRECHAS
A Palavra de Deus nos lembra de um princípio muito importante: “Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito; e quem é injusto no pouco, também é injusto no muito” (Lc 16:10). Adão e Eva foram injustos no pouco, e eles e seus descendentes se tornaram injustos no muito.

Por isso, Deus requer fidelidade absoluta. Ele não pode “fechar os olhos” para os pequenos delitos, porque sabe que, com o tempo, a infidelidade cresce e assume proporções incontroláveis. É grande a longanimidade de Deus com o pecador, mas com o pecado Sua tolerância é zero.

É fato que grandes catástrofes podem começar com pequenas falhas não detectadas e não corrigidas a tempo. Por exemplo, o rompimento da represa de Saint Francis, a 64 quilômetros de Los Angeles, iniciou com pequenas rachaduras e vazamentos que o engenheiro responsável por sua construção considerou normais para uma represa de concreto com 55 metros de altura e 183 de largura, uma obra-prima da engenharia da época. No entanto, na noite de 12 de março de 1928, a represa se rompeu com um estrondo semelhante a um terremoto, e uma muralha d’água de 40 metros de altura se projetou sobre o desfiladeiro, matando cerca de 600 pessoas.

Se nos lembrarmos de que a “pequena” desobediência de Adão e Eva levou Cristo a morrer na cruz, nós teremos a real dimensão das consequências extremas de deslizes aparentemente insignificantes. Assim, em vez de culpar nossos primeiros pais por nos ter transmitido sofrimento e morte, aceitaremos a solução divina.

Rubem Scheffel (via Revista Adventista)

Ilustração: Escultura grega God of Father de 1682

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