terça-feira, 12 de abril de 2022

OS CRISTÃOS E OS PETS

O mundo passa por uma crise ecológica sem precedentes que ameaça a vida no planeta. Enquanto cresce a quantidade de reuniões entre cientistas, políticos e líderes religiosos visando à preservação da nossa “casa comum”, há o aumento da emissão de gases de efeito estufa, do consumo de animais e, é claro, da ganância do ser humano. Um volume considerável de livros, artigos e documentários tem sido produzido nas últimas décadas alertando a população sobre a sustentabilidade e a preservação do meio ambiente.

Anualmente, desaparecem cerca de cinco mil espécies de organismos no planeta, e com eles se perdem informações fundamentais para o futuro da vida. Não apenas a extinção dos animais tem despertado a atenção dos cientistas, mas também a velocidade com que ela ocorre.

Em meio a tantas preocupações com o meio ambiente, emerge uma questão importante: qual deve ser a postura do ser humano no trato com os animais? Veremos que os extremos devem ser evitados: a desvalorização e a supervalorização dos animais.

Desvalorização dos animais

Em 2019, foram mortos no Brasil 32,4 milhões de cabeças de bovinos, 5,8 bilhões de aves e 46,3 milhões de porcos (para saber mais, clique aqui). O abate geralmente ocorre em matadouros, onde os animais são submetidos a asfixia, tiros na cabeça, choques elétricos, golpes de marreta e escaldagem, entre outros procedimentos brutais.

Ao longo dos séculos, pessoas têm se posicionado contra essa atividade exploratória (ver Lília M. V. A. P. Cadavez, “Crueldade contra os animais: uma leitura transdisciplinar à luz do sistema jurídico brasileiro”, Direito & Justiça 34 [2008], p. 88-120). No antigo Egito, o papiro de Kahoun revela preocupação com o cuidado e a cura dos animais. No Código de Hamurabi, são encontradas normas que preveem obrigações dos humanos em relação à saúde dos animais. O filósofo grego Pitágoras, o primeiro a falar sobre o direito dos animais, questionou o consumo desenfreado de carne e a matança excessiva dos seres vivos. Outras personalidades como Francisco de Assis, Jeremy Bentham, Peter Singer e Tom Regan também se opuseram ao “especismo” (discriminação humana com as outras espécies) e defenderam a causa animal. A própria Constituição brasileira, promulgada em 1988, é considerada “ambientalista”.

A Bíblia, por sua vez, afirma que Deus valoriza os animais (Sl 36:6; 104:10-12; 26-30) e aponta que os seres humanos devem ser bondosos com eles (Nm 22:27-32; Pv 12:10). Na lei mosaica, Deus incluiu regras relacionadas ao tratamento dos animais. Deuteronômio 25:4 diz: “Não amarrem a boca do boi quando estiver pisando o trigo”. Segundo o Comentário Bíblico Adventista, “este preceito mosaico não só protegia o animal de um tratamento cruel, mas tinha o propósito de inculcar a bondade – traço incomum entre os pagãos” (CPB, 2013, v. 1, p. 1145).

No livro Beneficência Social, Ellen White concorda com essa prescrição divina: “Embora a lei de Deus requeira supremo amor a Deus e amor imparcial ao próximo, o vasto alcance dos seus reclamos toca também às criaturas mudas que não podem expressar em palavras suas necessidades e sofrimentos. […] Aquele que ama a Deus não somente amará o seu semelhante, mas considerará com terna compaixão as criaturas que Deus fez” (p. 48).

A autora inspirada demonstrou cuidado pelos animais não somente em seus escritos, mas também na vida prática. James Nix afirma que, “quando criança, Ellen usava as pequeninas mãos para ajudar a irmã gêmea, Elizabeth, a passar por cima de troncos ou desatolar a vaca leiteira da família” (Alberto Timm e Dwain Esmond [eds.], Quando Deus Fala [CPB, 2017], p. 419). Ela não suportava “ver animais sendo maltratados porque, como dizia, ‘eles não podem nos contar seus sofrimentos’” (p. 426).

Enquanto morou na Austrália, Ellen White teve um cachorro chamado Tiglate-Pileser (nome do rei Assírio). Embora o mantivesse fora dos cômodos de sua casa, Ellen White dispensava ­carinho especial a ele, a quem carinhosamente chamava de “Tig”.

No entanto, Ellen White alertou quanto ao amor excessivo aos animais em detrimento da valorização do ser humano: “Há nas grandes cidades multidões que recebem menos cuidado e consideração do que os que são concedidos a mudos animais” (A Ciência do Bom Viver, p. 189). Sobre essa tendência, observa-se na sociedade atual um estranho e perigoso paradoxo, como declarou Richard Klein (“The power of pets”, The New Republic, 10 de julho de 1995): a animalização dos seres humanos e a humanização dos animais. Ambos os extremos são perigosos.

Supervalorização dos animais

Os brasileiros amam os pets. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação, o Brasil tem a segunda maior população de cães, gatos e aves ornamentais do mundo e é o terceiro maior país em população total de animais de estimação. O país tem mais cães e gatos do que crianças em seus lares. Em 2019, o Brasil se tornou o quarto maior mercado pet do mundo, cujo setor faturou 22,3 bilhões de reais. Atualmente, ele representa 0,36% do PIB brasileiro.

Há algumas décadas, essa “explosão pet” não era uma realidade na cultura ocidental. No início da modernidade, a ideia de família era exclusivamente humana. As relações de proximidade com animais eram proibidas. A presença de animais de estimação provocava suspeita moral, principalmente se fossem admitidos à mesa ou no quarto. Entretanto, hoje se fala em “famílias multiespécies”. Nessa nova configuração, cães, gatos e até ratos passam por um processo civilizatório: recebem nome próprio, ganham roupas, brinquedos, cama confortável (ou dormem na cama dos donos), têm página nas redes sociais, passeiam em shoppings, frequentam spas e hotéis, recebem herança dos donos e até são “estrelas” em filmes de Hollywood. É a onda pet ­friendly, uma espécie de fetiche da sociedade urbana contemporânea.

Embora demonstrar afeto pelos animais seja uma iniciativa bela e elogiável, vários estudos advertem quanto ao perigo de colocá-los no mesmo patamar dos seres humanos, considerando-os “filhos” ou “amigos”. Segundo Fernando Delarissa, “percebemos que muitas das vezes os animais são utilizados como uma alternativa para se esquivar dos contatos humanos, tidos como traumáticos e angustiantes” (“Animais de estimação e objetos transicionais”, dissertação de Mestrado em Psicologia, Unesp, 2003, p. 50). É mais fácil amar os pets do que os seres humanos, pois não há crítica, confronto de ideias nem adaptação de gostos e personalidades.

No âmbito espiritual, existe outra questão ainda mais crucial: Será que o amor aos pets (atenção, cuidado, tempo e dinheiro investidos) tem superado o amor a Deus e ao próximo (Mt 22:36-40)? Nas palavras de George Knight, “pecado é amor direcionado para a coisa errada. É amar mais a criatura do que o Criador” (Pecado e Salvação [CPB, 2016], p. 40). Não estariam os cristãos errando ao devotarem aos seus animais uma atenção exagerada? Pode-se também argumentar que essa seja uma inversão de valores: em vez de exercer domínio, o ser humano passa a ser “dominado” pelos animais. Para entender essa questão, precisamos voltar às origens.

Domínio equilibrado

Após ter criado o ser humano à Sua imagem (Gn 1:27), Deus ordenou que ele “sujeitasse” e “dominasse” a Terra (Gn 1:28), além de “cultivar” e “guardar” o Jardim do Éden (Gn 2:15). Essas ordens, como visto pelo uso dos próprios verbos, carregam uma função real, como se o homem fosse um suserano sobre a Terra ou um tipo de sacerdote servindo num santuário. Deus é o Dono (Sl 24:1); o ser humano é um administrador. Laurence Turner destaca que o verbo radah (“dominar”) aparece apenas em Gênesis 1:26-28 e “trata-se de um verbo usado para descrever o relacionamento de superiores com inferiores, tais como senhores com seus servos, e chefes com trabalhadores” (­Anúncios de Enredo em Gênesis [TMR, 2017], p. 20).

A relação entre as pessoas e os pets deve ser de proteção e cuidado. Deus não criou os seres vivos para serem explorados pelo homem. Animais não são coisas, mas também não são seres humanos. Nosso dever é cuidar do planeta com equilíbrio e responsabilidade, como se estivéssemos cuidando de nós mesmos.

Milton Andrade (Artigo publicado na Revista Adventista de abril de 2022)

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