quinta-feira, 26 de maio de 2022

BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO?

A cada episódio de violência em que criminosos levam a pior no confronto com a polícia ou mesmo com cidadãos armados, velhas e virulentas representações sobre o crime e a justiça veem à tona numa forma de quase histeria ou celebração coletiva. Se utilizando do discurso de ódio, de “bandido bom é bandido morto”, milhares de pessoas celebram nas redes sociais a morte de um criminoso por policiais. Tal discurso se alastra pela sociedade, pelo consciente e inconsciente das pessoas, e, espalhado pelo meio social não encontra limite apenas nas pessoas que se conceituam como pessoas de bem.

O Datafolha, reconhecido instituto de pesquisa de opinião pública, revelou em 2015 uma pesquisa aterradora. Segundo esta pesquisa, mais da metade da população brasileira acredita que BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO. Quando mais da metade da população quer ver o sangue cobrindo as ruas, quer ver a polícia ou quem vier a fazê-lo, a matar os indesejados, os excluídos, os marginais, quando mais da metade da população se regozija com isso, qualquer voz que se levante falando pela dignidade humana será execrada e levada à matilha para que seja ali devorada, em praça pública, sob o holofote das redes sociais.

A extrema direita política usa esses episódios de tortura, justiçamento ou assassinato de criminosos pela polícia para propagar um discurso de ódio, ancorado exatamente na visão reacionária de que “bandido bom é bandido morto”. A violência urbana não vai diminuir com mais polícia, mais grupos de operações especiais, mais pessoas armadas. O discurso do ódio é vazio, superficial e anticristão. É muito perigoso, está crescendo e precisa ser combatido.

Expressões como ‘bandido bom é bandido morto’, ‘tá com dó? leva pra casa’, ‘deveriam ter matado mais’, entre outras, estão cada vez mais presentes no pensamento de inúmeras pessoas atualmente, todavia, o que causa-nos estranheza, é que boa parte dessas pessoas que apoiam e promovem este tipo de discurso são professos cristãos. Devem os seguidores de Jesus incorporar em suas vidas e reproduzir essa ideologia? Há base bíblica para essa retórica?

O presente artigo não pretende, de forma alguma, fazer apologia à impunidade de pessoas que merecem ser julgadas e punidas no rigor da lei por seus próprios atos. Antes, o texto propõe um autoexame para o coração e um olhar para o problema, a fim de, fundamentado na ética cristã encontrada na mensagem do evangelho, ir em busca de caminhos mais parecidos com os de Jesus frente ao desafio que temos de nos relacionar com criminosos.

O que diz a Bíblia Sagrada?
É evidente que o problema da segurança pública é latente e quem o sente de forma mais dura são os trabalhadores, as mulheres, os homossexuais e os negros, que muitas vezes são agredidos, violentados e até assassinados. Com tal violência crescente e a ineficiência do Estado em proteger a população, gerando um sentimento de impunidade, é natural que muitos de nós estejamos indignados. Essa indignação quando é com base no que é justo não só é um direito, mas também é um dever. Posicionamo-nos contra a injustiça e os desmandos que nos afetam. Ocorre que existe um sem número de pessoas que extrapolam o âmbito daquilo que é justo. Deixam-se levar pelas emoções, deixam aflorar aquilo que há de pior em si mesmas, e toda essa raiva e revolta, não poucas vezes, redundam em atitudes desequilibradas e injustas. Vivem exatamente o inverso da lógica: um erro não justifica outro.

Quando estudamos a Bíblia percebemos nitidamente que a retórica do “bandido bom é bandido morto” é incompatível com os valores do evangelho. Logo, tal discurso pernicioso não condiz com aqueles que professam ser cristãos, pelas seguintes razões:

1) Porque Jesus ensinou a amar os inimigos. “Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem”, ordena-nos Ele. (Mateus 5:44, NVI). Nos versículos precedentes Ele já nos disse que não devemos ter pensamentos de ódio e desejos pecaminosos, que nossos pensamentos e palavras devem ser puros. Naturalmente, Jesus exigiu algo muito difícil. Como pode alguém fazer tais coisas? Exatamente. Amar nossos inimigos não é normal, mas é uma atitude cristã, e nos versos seguintes Jesus nos diz por que isso é cristianismo (versos 45-48). Portanto, um cristão que propaga nas redes sociais a retórica do bandido bom é bandido morto está confrontado com o claro ensino de Jesus.

2) Porque Jesus ensinou a perdoar como somos perdoados por Deus. Disse Jesus: “Pois se perdoarem as ofensas uns dos outros, o Pai celestial também lhes perdoará. Mas se não perdoarem uns aos outros, o Pai celestial não lhes perdoará as ofensas" (Mateus 6:14,15, NVI). Cristo fala categoricamente do dever do cristão em perdoar os que nos fazem mal. Mateus 6:12, 14 e 15 não são os únicos lugares no primeiro Evangelho onde se enfatiza a lição de passarmos adiante a outros o perdão que recebemos de Deus. Em Mateus 18:21-35 aborda também a questão da reciprocidade do perdão. Portanto, precisamos demonstrar tanto espírito de perdão aos outros quanto Deus tem demonstrado por nós (v. 33). O que significa ser cristão? Ser cristão é imitar a Jesus; ser semelhante a Ele, viver a vida que Ele viveu. Pois bem, não devemos odiar, por que Ele perdoava e mesmo na cruz foi capaz de orar: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lucas 23:34). Como cristãos, precisamos aprender a perdoar. Isso exige graça, graça transformadora e graça capacitadora.

Ademais, quem nunca cometeu um erro? O grande desafio de mantermo-nos fiéis à pregação da mensagem cristã encontrada na Bíblia Sagrada tão ignorada hoje em dia, é que ela nos dá um grande tapa na cara, nivelando-nos a todos por baixo! Todos são pecadores! Diz-nos o apóstolo Paulo: “Pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus” (Romanos 3:23, NVI). Todos são maus! Todos estão condenados! Pregar essa mensagem cancela todo orgulho, toda altivez, todo mérito. Essa mensagem impossibilita qualquer pessoa da raça humana a se colocar em posição de superioridade diante de quem quer que seja.

O julgamento que Jesus condena é exatamente esse! É o julgamento de quem olha para o outro com ar de superioridade e coração desprovido de amor. Que bate no peito e diz: “Ó Deus, graças te dou, porque não sou como os demais homens, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano!” (Lc 18-10-14). É o julgamento de quem pensa não ter a mesma capacidade de cometer pecados tão grandes ou maiores do que qualquer outro ser humano. É o julgamento daquele que não percebeu ainda que nada é, e não aprendeu ainda a gloriar-se apenas e tão somente nos méritos de Cristo. Queremos e até pregamos algumas partes do evangelho que consideramos ‘radicais’, ‘revolucionárias’, ‘loucas’, mas essa que diz que distantes de Cristo, somos miseráveis pecadores condenados a morte eterna, e de que fomos chamados a amar nossos inimigos, ó não, esta não, esta nós ignoramos.

Quem se acha superior a quem quer que seja, não sabe quão corrupta é a alma humana e quão capazes somos de fazer o mal. Não sabe quão suja é a lama do pecado de onde Cristo nos tirou. Então, perguntamos: e se fôssemos tratados por Deus com a mesma justiça que vomitamos nas redes sociais contra os nossos semelhantes? Será que não estamos com o coração no lugar errado? Será que não nos está faltando discernimento para entender o coração subversivo daquele que nos ordena a amar nossos inimigos?

3) Porque Jesus rejeitou a vingança como forma de fazer justiça. “Não resistam ao perverso. Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra” (Mateus 5:39, NVI). Oferecer o outro lado da face simboliza o espírito não vingativo, humilde e manso que deve caracterizar os cristãos. Jesus está nos ensinando que não é papel de cristãos individualmente “castigar o que pratica o mal” (Romanos 13:4), mas a polícia e os tribunais de justiça, com base na lei. Não devemos impor a lei com as próprias mãos. Não devemos viver uma vida de retaliação. Devemos viver de acordo com as bem-aventuranças, devemos ser pacificadores e amar nossos inimigos. Devemos deixar a vingança com Deus, pois está escrito: “Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira de Deus, porque está escrito: Minha é a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor.” Em outra passagem, Salomão escreveu: “Não digas: vingar-me-ei do mal; espera pelo Senhor e ele te livrará” (Provérbios 20:22). Ao contrário: “Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele”. “Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem” (Romanos 12:19-21, NVI).

Lucas nos conta que Jesus havia iniciado sua última viagem para Jerusalém. Lá ele seria entregue, julgado e crucificado. Enquanto seguia a viagem, Jesus continuou a proclamar o reino de Deus, a ensinar seus discípulos e a curar os enfermos. Quando estavam próximos de uma aldeia samaritana, ele enviou discípulos que o precedessem para preparar um lugar no qual pudessem repousar. Mas diferente de uma outra cidade samaritana, aquela da história registrada em João cap. 4, que se converteu a Jesus, esta aqui recusou-se a recebê-lo.

Então, diante disto Tiago e João, os “filhos do trovão”, perguntam a Jesus: “O Senhor quer que nós ordenemos que caia um fogo do céu que consuma estes samaritanos. Esse episódio mostra nitidamente que os irmãos fizeram a indagação a Jesus motivados por sentimentos de retaliação e vingança. Para suas surpresa, Jesus os repreendeu, dizendo: “Vocês não sabem de que espécie de espírito são, pois o Filho do homem não veio para destruir a vida dos homens, mas para salvá-los" (Lucas 9:51-56, NVI).

A Bíblia, inclusive, exorta-nos a não se alegrar quando o nosso inimigo fracassa: “Quando cair o teu inimigo, não te alegres, e quando tropeçar, não se regozije o teu coração; para que o Senhor não o veja, e isso seja mau aos seus olhos, e desvie dele, a sua ira.” (Provérbios 24:17-18).

Portanto, reações descontroladas e pautadas no ódio e na vingança da parte de gente que não tem compromisso nenhum com a fé e com a moral cristã são lamentáveis, mas de uma forma ou de outra, compreensíveis, tendo em vista o estado de escuridão e ódio que uma pessoa dominada pelo pecado pode chegar. Entretanto, alguém que se diz seguidor de Cristo compactuar com esse tipo de coisa é inadmissível. Reproduz apenas o triste eco de uma geração cristã ególatra, que não sabe quem de fato é, não sabe de onde Cristo a tirou, não tem Cristo e este crucificado como Senhor e referência de seu coração, é biblicamente analfabeta e vazia do Espírito Santo de Deus.

4) Porque Jesus andou com os pobres e miseráveis. E em nossa sociedade desigual e racista, a imagem do bandido é sempre de pobres e negros. Certa vez Jesus encontrava-se na casa do publicano Levi Mateus. Ele estava sentado à mesa comendo na companhia daqueles que a sociedade julgava “indesejáveis”: publicanos e pecadores (Mt 9:10-13). Sendo interrompidos pelos fariseus, que perguntaram se era apropriado que Ele Se misturasse com pessoas tão desprezíveis, Jesus os desafiou a aprender o significado de misericórdia, em contraste com sacrifício. “Vão aprender o que significa isto: ‘Desejo misericórdia, não sacrifícios’. Pois eu não vim chamar justos, mas pecadores (Mt 9:13, NVI).

Reflitamos sobre esta incrível verdade de que Aquele que fez todas as coisas (Jo 1:3) assumiu a humanidade e, na carne, misturou-se com os seres humanos caídos e os ajudou. Essa verdade, que nos traz muita esperança, de alguma forma, deve afetar o modo como nos relacionamos com os outros.

O sistema não é justo. Os mortos da guerra às drogas são jovens, negros e pobres. 77% dos mortos por homicídio no Brasil são negros. É a pobreza que está sendo criminalizada.

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Muitos presos estão ali mesmo sem condenação, cerca de 45%. São pessoas muito jovens, 74% têm até 34 anos e 64% são negros. Quanto à escolaridade, 75% da população prisional brasileira não chegou ao ensino médio. Menos de 1% dos presos tem graduação.

Os números indicam que a questão é muito mais profunda e complexa do que as explicações da extrema direita. Como explicar esses números sem entender que a questão da violência, do crime, do encarceramento é uma questão social, que está relacionada ao racismo e às desigualdades latentes da sociedade capitalista?

Ademais, o mantra “bandido bom é bandido morto” não diminui a quantidade de crimes, não traz mais segurança para a população, como pensam muitos, mas, para além de difundir um pensamento que é criminoso por si só, acaba espalhado pelo meio social, atingindo a todos com sua mensagem de morte e intolerância, de abandono do estado de direito.

Quem pensa que uma polícia mais violenta é saída para melhorar a segurança pública está redondamente enganado. Estudos revelam que a cada ano a polícia mata mais, e a cada ano a violência aumenta mais, os homicídios aumentam mais. Portanto, o discurso do ódio “bandido bom é bandido morto” não traz mais segurança para ninguém. A Polícia Militar brasileira é uma das mais violentas do mundo e isso não nos torna mais seguros. Todo jovem e negro da periferia sabe disso. A ação da PM traz mais morte, mais violência, mais preconceito.

Conclusão
Concluímos dizendo que, o julgamento que somos chamados a fazer é segundo a reta justiça, com total fundamento, não em nosso ódio pecaminoso, mas no amor. Se alguém deve ser punido, que seja com todo rigor, com base na legislação penal de nosso país, contudo, não porque somos melhores, mas porque é justo, e a paz é fruto da justiça. Temos de agir sempre no intuito de sermos fiéis a Deus, na esperança de vermos vidas arrependidas e restauradas pelo poder do evangelho. Nossa ação deve ser fruto de alguém que sabe que nada é, e que chora por ver a própria miserabilidade e a miserabilidade dos que estão ao seu redor. Nosso posicionamento deve sempre ter um norte: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.

Em um tempo de tanta animosidade, tantas discussões, tanta rivalidade e tantas polarizações, somos chamados a ser sal da terra, somos chamados a andar na contramão do sistema e em humildade, agir como pacificadores com base na justiça do Reino. É tempo de buscarmos sabedoria e sensatez para nossos posicionamentos públicos como cristãos.

Justiçamento e vingança não devem fazer parte nem do vocabulário, nem da vida dos cristãos! Seja Cristo o Senhor das nossas mentes, e que Ele nos dê sabedoria e discernimento em nossa forma pública de viver neste mundo caótico e sofrido. Sejamos luz, como nos pede o Senhor (Mt 5:14)!

Ricardo André (via A Verdade Como é em Jesus)

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