quinta-feira, 12 de maio de 2022

ESCRAVO DOS VÍCIOS

Ansiar por Deus faz parte de nossa essência. Igualmente, desejar a liberdade é algo que procede do âmago do nosso ser. Por isso, temos uma repulsa natural por qualquer coisa que tente determinar indevidamente o que somos e o que podemos ou não fazer.

No entanto, essa não é toda a história. Somos vítimas de uma revolta inicial contra a autoridade de Deus e abusamos da nossa liberdade. Assim, nosso ser ficou dividido. Paulo refletiu sobre essa realidade em Romanos 7:15-19: “Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto. [...] Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço.” Por que isso ocorre? Tem que ser assim?

PADRÃO DESTRUTIVO
O problema se chama dependência ou vício. Definimos dependência como uma forma de ser e um modo de vida em que nossos desejos ficam “apegados” e nossas energias são escravizadas por condutas, coisas ou pessoas específicas. Esses objetos de apego são nossos ídolos, substitutos do Deus que rejeitamos. Porém, eles não são em nada parecidos com Deus. Nossos ídolos não podem se comparar com Sua bondade nem satisfazer nossas necessidades. Por isso, eles se transformam em obsessão, tirando nossa liberdade e regendo nossa vida. O resultado é um padrão destrutivo expresso no abuso de substâncias, pessoas ou coisas às quais ficamos ligados.

A dependência não deve ser confundida com hábito ou habilidade. Os hábitos e as habilidades são comportamentos aprendidos, como as dependências. Por exemplo, tenho o hábito de comer pão e fruta no desjejum. Meus filhos preferem pão e manteiga de amendoim. Minha esposa é muito hábil na leitura da pauta de música de piano, enquanto eu julgo ser mais hábil em tocar violão. No entanto, qualquer uma das atividades mencionadas pode ser livremente descontinuada sem que daí resulte dor ou sintoma de desabituação.

Por outro lado, tomar bebidas alcoólicas, fumar, praticar sexo de forma desregrada e usar narcóticos não desaparecem apenas por um ato da nossa vontade. As dependências são compulsórias e coercivas; elas nos tiranizam, tornando-se uma lei para nós (Rm 7:17). Vários passos levam à dependência:

1. Tolerância. Trata-se de um período de ajustamento durante o qual nos acostumamos ao objeto da dependência. Com o passar do tempo, as reações adversas do corpo, da mente ou do espírito diminuem, tornando-nos tolerantes ao uso desse objeto – ou até dependentes dele.

2. Autoengano. Nossa mente torna-se criativa para justificar e perpetuar o comportamento dependente (por exemplo, negação, racionalização, a atitude de que “eu pararei quando quiser”).

3. Perda da força de vontade. As mensagens contraditórias entre querer ser livre e ansiar por mais criam uma tensão insuportável que nos força a optar pela atitude de menor resistência: desistimos de lutar contra a dependência.

4. Atenção distorcida. A pessoa dependente torna-se tão preocupada com o objeto desejado que o resto da sua vida e as pessoas ao seu redor sofrem as consequências.

5. Ocultação. O sentimento de vergonha e o medo de ser descoberto esgotam ainda mais as energias do dependente.

6. Cumplicidade. Os amigos que compartilham a mesma dependência fornecem frequentemente apoio e um sentimento de normalidade. 7. Desistência. À medida que o tempo passa e nos tornamos mais hábeis no uso das nossas “muletas”, a libertação da dependência parece impossível e desistimos de lutar.

VISÃO BÍBLICA
A Bíblia fala de vários modos acerca da dependência. Primeiro, ela introduz o conceito de tentação. Não há uma razão especial para desejar algo, não há uma necessidade real. Simplesmente parece que “a grama do vizinho é mais verde”, e somos tentados a cobiçá-la. Nesse momento ainda somos livres. Podemos fugir da tentação se evitarmos aquele lugar, a multidão, a indulgência no pensar sobre ela. Ou podemos encorajar nosso fascínio por ela. Ainda nada aconteceu. Tudo vai bem.

Se resistirmos ao primeiro ataque, podemos permanecer livres durante algum tempo. Se não resistirmos, podemos ficar curiosos sobre as consequências que advirão no caso de decidirmos experimentar só uma vez. Assim, passamos a examinar a questão bem de perto – erro fatal! As consequências raramente aparentam ser horríveis o suficiente para desestimular a atração de se fazer algo fora do comum e errado. Quanto mais olhamos, mais perto nos chegamos, mais fascinante a atração parece, e a queremos ainda mais (Gn 3:1-6). “Cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz”, disse Tiago (1:14). Sem um ato direto e radical da vontade, capacitada pela graça, nada pode nos levar para longe do mal.

No livro Addiction and Grace (Dependência e Graça), Gerald May faz o seguinte comentário: “Apesar de várias perspectivas sobre a fonte e o propósito da tentação, as fontes bíblicas revelam um claro acordo quanto à sua natureza: ela é o ponto de partida de uma dependência. Quer a vejamos como simplesmente nossa capacidade biológica para nos apegarmos a algo ou como uma sedução pelas forças das trevas, ou ambas, a tentação é sempre o primeiro passo, a oportunidade preliminar, para a dependência. Logo que o apego está totalmente realizado, nossas motivações tornam-se tão confusas que a liberdade de escolha é seriamente comprometida. Mas no estágio da tentação, em que existe apenas o potencial para o apego, nosso sim ou nosso não fazem toda a diferença” (p. 115-116).

Ao deixarmos de dizer “não”, o desejo certamente exigirá ser atendido, até que ele dá à luz o pecado, o qual, quando plenamente desenvolvido, traz a morte (Tg 1:15), incluindo a morte da nossa liberdade e de quem éramos até então. Um ato pecaminoso nunca permanece apenas como um ato, um incidente do momento. Quando o pecado entra em nossa vida, agarra-se a nós e usurpa o controle da nossa alma (Hb 12:1). Nosso ser é modificado pelo nosso agir de tal forma que nossas ações tornam-se cada vez mais apegadas ao novo estilo de vida. Em Romanos 7, Paulo descreveu dois egos em competição e guerra: um agindo em harmonia com o que ele sabe ser bom e o outro conduzindo sua vontade em outra direção.

Logo as dependências invadem nosso ser. Por nós mesmos somos impotentes para resistir ao poder da dependência e para nos tornarmos novamente livres. “Pode o etíope mudar a sua pele ou o leopardo as suas manchas?”, perguntou o profeta. “Então, poderíeis fazer o bem, estando acostumados a fazer o mal” (Jr 13:23). Precisamos de ajuda vinda de fora de nós – a ajuda da graça de Deus e do apoio dos nossos amigos e de profissionais atentos.

RELAÇÃO COM O PECADO
Antes de darmos uma breve olhada no papel efetivo da graça para oferecer esperança aos que se debatem com a dependência, devemos primeiro examinar a relação existente entre a dependência e o pecado. A Bíblia não usa o termo “dependência”. Podemos usar esses termos como sinônimos?

Em primeiro lugar, não há boas dependências. O álcool e a nicotina são substâncias perigosas que nos prejudicam. Trabalho e alimentos saudáveis são bons em si mesmos. Entretanto, podemos ficar dependentes deles, e isso vai nos prejudicar também. Paulo disse: “Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas” (1Co 6:12).

A dependência é sempre um mal moral, e os males morais levam ao pecado. No entanto, o pecado não precisa da dependência para prosperar. Os atos pecaminosos podem não estar relacionados a determinado apego e, ainda assim, ser igualmente prejudiciais para nós e o próximo. A dependência é uma das muitas manifestações do pecado.

Ainda na década de 1970, o psiquiatra Karl Menninger publicou um livro intitulado Whatever Became of Sin? (O que Aconteceu com o Pecado?) no qual advertiu contra a tendência de se rejeitar a responsabilidade moral pelos nossos atos e considerar as dependências um tipo de doença. Ele observou que, para a mentalidade moderna, chamar um alcoólatra de pecador é considerado algo condenador, uma total ausência de compaixão. Segundo alguns, deve ser colocado mais peso sobre a genética, a química cerebral e o condicionamento psicológico, e menos sobre o caráter, a responsabilidade moral, a vontade ou o relacionamento com Deus. Menninger deplorou essas tendências, e outros têm se juntado a ele.

No capítulo “Sin, Addiction, and Freedom” (Pecado, Dependência e Liberdade), publicado no livro Reconstructing Christian Theology (Reconstruindo a Teologia Cristã), Linda A. Mercadante sublinhou dois pontos que apoiam as preocupações de Menninger:

1. Alguns acham que chamar a dependência de pecado cria um exagerado sentimento de culpa em alguém que já está aprisionado e impotente. Mas minimizar a responsabilidade pessoal pelas escolhas pode ir longe demais na direção da irresponsabilidade, enfraquecendo a força de vontade necessária para vencer a batalha contra a dependência.

2. A dependência é uma situação complexa, e muitos especialistas apelam para que se adote uma abordagem integrada, em que várias disciplinas estejam envolvidas na restauração do equilíbrio da pessoa dependente. Ignorar a genética, a química do cérebro ou o condicionamento psicológico seria irresponsabilidade. Ao mesmo tempo, ignorar as dimensões espirituais leva a soluções parciais. É um erro apenas oferecer um diagnóstico, juntamente com capacidades de gestão da situação, sem prestar atenção às necessidades espirituais.

Qualquer coisa pode tornar-se objeto de apego e substituir Deus. Trabalho em excesso, carreirismo, mobilidade ascendente, excesso de ansiedade, pornografia, excesso no comer, “síndrome de messias” (o sentimento de que ninguém consegue me substituir)... Tudo isso pode ser tão perigoso como álcool, tabaco e drogas. As palavras “Não terás outros deuses diante de Mim” se aplicam a todos nós – até mesmo aos membros da igreja.

O VÍCIO NÃO MENCIONÁVEL
A dependência sexual é uma preocupação de muitas igrejas na atualidade. Os cristãos não estão livres desse problema, caracterizado por quatro níveis: (1) obsessão em reprimir a sexualidade, como a anorexia sexual; (2) comportamento sexual impróprio passivo, como fantasias sexuais; (3) comportamento sexual impróprio ativo, como a prostituição; e (4) comportamento sexual ativo criminoso, como a pedofilia.

Classificado no nível 2 acima e amplamento disseminado, o vício da pornografia é uma dependência de excitação, em oposição a uma dependência de saciedade, como a do álcool ou a da cafeína. Pessoas dependentes usam os olhos para “beber” imagens sexuais que são armazenadas na mente, de modo a ser recordadas a qualquer momento. Qualquer imagem ou pessoa pode ser sexualizada e usada pela pessoa dependente para se sentir poderosa ou especial.

Os viciados em pornografia não se envolvem com esse hábito somente enquanto olham para imagens eróticas. Eles podem estar transitando pela rua, aguardando na fila do banco, cantando na igreja ou ajoelhados em oração enquanto recuperam mentalmente essas imagens. A dependência está sempre viva mesmo abaixo da superfície e não se mostra facilmente na vida da pessoa. A natureza secreta dessa dependência contribui para a dificuldade do tratamento e da reabilitação.

A recuperação de dependência da pornografia começa quando a pessoa admite que é incapaz de controlar tal comportamento. Isso geralmente ocorre quando as consequências de prosseguir no comportamento são severas. Para alguns, pode ser a percepção de que perderam o amor e o respeito da família e dos amigos. Para outros, pode ser a perda de um emprego, o desprezo dos colegas ou uma humilhação pública. Mais cedo ou mais tarde, a pessoa dependente é confrontada com a decisão radical de perder os direitos e privilégios sociais ou fazer uma mudança radical de estilo de vida.

Os dependentes de pornografia, assim como outros dependentes, vêm frequentemente de lares disfuncionais e precisam de ajuda. “O Salvador deu Sua preciosa vida a fim de estabelecer uma igreja capaz de cuidar de pessoas aflitas e tentadas”, afirmou Ellen White (O Desejado de Todas as Nações, p. 640). Contudo, ajudar não significa acobertar crimes.

Essa dependência é uma doença que requer plena restauração espiritual, psicológica e emocional para aquele que se debate com o problema e para aqueles que compartilham a vida com ele. A reabilitação é possível por meio da graça salvadora de Cristo e daqueles que são formados para proporcionar um tratamento cheio de graça e de compaixão.

O PODER DA VONTADE
A vontade tem um papel fundamental na busca da vitória sobre a dependência. “O tentado necessita compreender a verdadeira força da vontade”, escreveu Ellen White em A Ciência do Bom Viver (p. 176). “É este o poder que governa na natureza do homem: o poder de decisão, de escolha. Tudo depende da devida ação da vontade.”

No entanto, além de querer a mudança, a pessoa deve buscar a ajuda divina. A autora completa: “Mediante o devido exercício da vontade, uma completa mudança pode ser realizada na vida. Entregando a vontade a Cristo, aliamo-nos com o divino poder. Recebemos força do alto para nos manter firmes.”

O PAPEL DA GRAÇA
Podemos nadar num oceano de graça. A igreja não pode se dar ao luxo de chamar o pecado pelo seu nome sem também chamar a graça pelo seu verdadeiro nome. Na experiência de Israel, o êxodo era o “nome” da graça, a mudança da escravidão para a liberdade. E foi no contexto desse gracioso acontecimento que a lei foi dada. Mercadante escreveu: “A melhor razão para se pregar sobre o pecado está em sublinhar o poder e a alegria da graça” (p. 240). As Escrituras nos ensinam que o pecado é uma mercadoria cara. Consequentemente, a graça de Deus não é barata (Rm 6:1); ela é grátis, mas não é barata. A graça flui livremente para o coração que está disposto a correr o risco sem dependência. Gerald May notou que “viver na graça exige aceitar os riscos da fé” (p. 127). E os riscos são muitos.

A graça de Deus nos pede que abandonemos nossas dependências, a fim de abrir espaço para Deus. May observou: “Nossas dependências enchem os espaços do nosso interior, espaços onde a graça pode fluir” (p. 17). Mas um apelo para que simplesmente abandonemos nossas dependências não funcionará. Falharemos vez após vez. Apesar disso, a Palavra de Deus nos ensina que a falha não deve nos desencorajar: “porque sete vezes cairá o justo e se levantará” (Pv 24:16). Note que o justo cai como cai o ímpio. A diferença está no fato de que o justo ergue-se de novo.

Na nossa viagem para a liberdade, Deus protege zelosamente nossa dignidade. Ele sabe bem que as pessoas dependentes são incapacitadas pelo medo e pela vergonha. Ele nos deixa tomar nossas próprias decisões, mesmo quando preferiria tomá-las por nós. Mas, se voltarmos a nos prejudicar, Ele estará ao nosso dispor. Isso não significa permissividade, mas oportunidade para recomeçar e responsabilidade para mudar.

A igreja é o lugar perfeito em que o crescimento na graça pode ser alimentado, lugar em que os pecadores podem experimentar vitórias na sua viagem rumo ao lar. É o lugar em que todos nós podemos encontrar o Especialista supremo que pode curar nossas dependências. Em Caminho a Cristo (edição de luxo, p. 63-64), Ellen White escreveu: “Há os que já conheceram o poder perdoador de Cristo e que realmente desejam ser filhos de Deus, mas percebem que seu caráter é imperfeito, sua vida cheia de faltas, e chegam a duvidar se seu coração já foi renovado pelo Espírito Santo. Quero dizer para esses que não recuem em desespero. Muitas vezes, teremos que nos prostrar e chorar aos pés de Jesus por causa de nossas faltas e erros, mas não devemos desanimar. Mesmo quando formos vencidos pelo inimigo, não seremos rejeitados nem abandonados por Deus.”

Miroslav Kis (via Revista Adventista)

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