quarta-feira, 15 de junho de 2022

DESEJOS MODERNOS

Desejo ou paixão não tem nada que ver com as necessidades básicas do ser humano. Com a queda de Adão e Eva, nossas necessidades se desvirtuaram e, assim, o pecado encontra projeção nos desejos disfarçados em necessidades. As vozes do mundo nutrem desordenadamente nossos desejos e nos tornamos escravos da vontade. O grande perigo é a transformação dos desejos em necessidades básicas, porque a força do desejo é mais perigosa que a da razão. Aparentemente, somos saciados quando conquistamos esse ou aquele objeto do desejo. Mas, nesse cenário, vemos que a obtenção de determinado objeto não é o que realmente importa. Na verdade, a concretização do desejo chega a ser decepcionante, uma vez que não se cumpre a promessa abstrata de realização ou prestígio. Assim, quando o desejo é “saciado” a decepção mostra o absurdo desse jogo. Sobra, então, um “eu” envergonhado e um novo objeto a ser desejado.

Deseja-se o que o outro deseja e não apenas o que pertence ao reino das coisas, mas até mesmo o outro, ou seja, ser o outro. Renê Girard descreve essa realidade como produto de um mundo em que o homem é o centro.1 Esse é o evangelho humano: o homem como alvo de imitação e desejo. Esse mesmo homem se orgulha de ser escravo dizendo-se livre e independente, mas nunca está completo, nunca está satisfeito. Sua verdade é que lá é sempre melhor do que aqui. O externo dá as referências e o herói, agora, não é mais o divino, é o comum.

Comparando algumas épocas, percebemos que, até certo ponto, determinadas sociedades se inspiravam em alguns referenciais ou magnetizadores de seus desejos como o pai, o rei, o juiz, o sacerdote e Deus, por suas qualidades superiores. Mas, para a nossa realidade pós-moderna, Deus está morto. Entretanto, é inerente ao homem a necessidade de adoração. Mas o que se imita quando não há um referencial? Um ao outro. O que se deseja nessa situação? Ser igual ao outro. Sendo assim, o homem toma o lugar de Deus. E essa imitação cria um indivíduo hipnotizado e entorpecido pela inveja, tal a força dos desejos egoístas que o motivam. Então, nesse esquema em que a transcendência vem para a Terra e o homem passa a ser o deus do homem, nota-se que Deus não é excluído, mas substituído. Por quem? Pelo outro, por si mesmo e pelas coisas materiais. Acontece que essa divinização do eu e do outro cria abismos emocionais e uma falsa espiritualidade. A busca da realização de qualquer desejo moderno é, ao mesmo tempo, rota para a infelicidade e insatisfação. Detesta-se a felicidade tranquila e calma do amor verdadeiro porque é preciso competir (com o outro), é preciso ter mais (do que o outro), é preciso ser melhor (do que o outro). Essa é uma idéia absolutamente oposta a todo princípio bíblico de realização, serviço e grandeza. “Sede sóbrios” (1Pe 5:8). “Não nos deixemos possuir de vanglória, provocando uns aos outros, tendo inveja uns dos outros” (Gl 5:26).

Onde há separação de Deus, há a divinização do eu e do outro. Interessante é que, dentro dessa realidade, considerar-se cristão não faz a mínima diferença. Dizer-se participante dessa ou daquela comunidade religiosa não isenta ninguém das armadilhas, desejos e sentimentos modernos. Todos são vítimas em potencial. Hoje, mais do que nunca, qualquer cidadão está condenado à vaidade e ao reino do nada.

Diante desse quadro, percebemos que este mundo, por incrível que pareça, é extremamente espiritual e nada materialista. Na supervalorização das coisas, não é o objeto em si que interessa, mas o conceito espiritual que ele carrega, com a promessa de preencher o vazio existencial. Todas as pessoas anseiam por algo melhor. Todas as ações, empreendimentos, projetos, sonhos e decisões são, no fundo, um reflexo da busca pela felicidade.

Isso nos mostra que fomos criados para uma vida completa e plena de felicidade. C. S. Lewis diz: ‘As criaturas não nascem com desejos, a menos que exista satisfação para eles. […] Se eu encontrar em mim mesmo um desejo que nenhuma experiência neste mundo possa satisfazer, a explicação mais provável é que fui feito para outro mundo.”2 Este é o ponto: Só teremos nossos desejos saciados se estivermos com Deus. Agrada-te do Senhor, e Ele satisfará os desejos do teu coração” (Sl 37:4).

Deus usa esse desejo intrínseco de felicidade para nos impulsionar para Cristo. Ele é “o desejado de todas as nações” (Ag 2:7). Os desejos dos homens de todas as eras só podem ser completos nEle. Ele “é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos” (Ef 3:20). O homem não tem seu fundamento em si. Ellen G. White afirma: “Por toda parte os homens estão descontentes. Anseiam qualquer coisa que lhes supra a necessidade da alma. […] Falharão todo recurso e dependência humanos. As cisternas ficarão vazias, os poços se secarão; nosso Redentor, porém, é uma fonte inesgotável.”3

Assim, percebemos que abrir mão dos nossos desejos modernos é abrir mão do que temos de mais nocivo. Devemos ansiar por Deus, desejar Deus, querer mais dEle. Ellen White diz: “Temos de buscar a plenitude da graça de Cristo, permitir que nosso coração se encha de intenso desejo por Sua justiça, cujo efeito a Palavra de Deus declara ser paz, e cuja operação é repouso e segurança para sempre.”4 Não há alternativa! Só nEle há paz, repouso e segurança. Caso contrário, todos nós nos tornaremos marionetes nas mãos de um inimigo vencido, com proposta barata de felicidade, onde o predomínio das paixões desliza para a animalização do ser humano. Nessa concorrência de vaidades, nesse vaivém histérico, o que sobra são sentimentos dilacerados, pois o mundo dos desejos não salva, não redime, “vão é o socorro do homem” (Sl 108:12).

Qual é a alternativa, então? Deus. Isso implica nobreza espiritual superior, uma vida espiritual ativa. O Espírito Santo quer abrir nossos olhos e, por meio de Sua atuação, desconstruir nossos falsos conceitos de felicidade. Se ouvirmos Sua voz, haverá uma decisão voluntária em favor do que é eterno, e uma indiferença genuína aparecerá diante das vaidades humanas. “Então, o Espírito de Deus, mediante a fé, produz nova vida na alma. Os pensamentos e desejos são postos em obediência à vontade de Cristo […] então, a lei de Cristo é escrita na mente e no coração, e podemos dizer como Cristo: ‘Deleito-Me em fazer a Tua vontade, ó Deus meu”!

Creriane Nunes Lima (via Revista Adventista)

Referências
1. Girard, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Editora Estadual Paulista, 1º edição; 1990.
2. Citado por Zadcrison, James W. Eclesiastes (Lição da Escola Sabatina, 2007), p. 84.
3. White, Ellen G. O Desejado de Todas as Nações, p. 187.
4. White, Ellen G. Atos dos Apóstolos, p. 566.
5. White, Ellen G. O Desejado de Todas as Nações, p. 176.

Nenhum comentário:

Postar um comentário