quarta-feira, 3 de agosto de 2022

VENENO PARA A ALMA

Relacionamentos são muito importantes na vida. Eles nos ensinam sobre nós mesmos por meio de experiências que não podem ser vivenciadas isoladamente. Por isso, é desafiador enxergar nossas virtudes e defeitos por meio da lente de aumento que uma convivência íntima proporciona. Mas viver sem se relacionar não é possível, afinal, “nenhum homem é uma ilha”, como afirmou John Donne, poeta inglês do século 17.

Na jornada das relações, talvez você já tenha experimentado uma situação tóxica e/ou abusiva. Apesar de diferentes, relacionamentos assim são igualmente prejudiciais, pois comprometem a qualidade de vida dos seus envolvidos. Entretanto, o pior de tudo é que eles podem nos tornar uma pessoa diferente da que gostaríamos de ser. Por acaso, isso poderia estar acontecendo com você?

Primeiramente, é importante entender a diferença entre os comportamentos tóxico e abusivo. Nessas relações, a intensidade dos danos e consequências é que farão a distinção. Quando são tóxicas, ocorrem prejuízos psicológicos capazes de arruinar o bem-estar, a alegria e o ânimo da pessoa. Isso pode ocorrer em relacionamentos variados, como os familiares, de trabalho, no namoro ou amizades. Eles sempre irão contagiar a pessoa com pensamentos negativos capazes de gerar medo constante sobre questões da vida.

Já nas relações abusivas, além de danos psicológicos, os prejuízos também podem ser físicos, pois normalmente o abusador acaba manifestando agressividade. As vítimas acreditam que sempre fazem tudo errado e, frequentemente, desenvolvem culpa, ansiedade, isolamento, pânico, depressão e até pensamentos suicidas. Em ambos os casos, é comum atestar baixa autoestima e afastamento de outras pessoas com a finalidade de não desagradar o opressor.

EGOÍSMO, MANIPULAÇÃO E VIOLÊNCIA
No início, em um relacionamento abusivo e/ou tóxico, a violência costuma ser lenta e sutil. São comentários supostamente “inofensivos”, brincadeiras que menosprezam a pessoa e, sobretudo, um jogo emocional que faz o outro aceitar o mal que é imposto a ele. A vítima aceita isso porque seu agressor se comporta de forma ambígua, ora ferindo, ora agradando. Além disso, manipula tão habilmente a situação, que faz a vítima acreditar que ela é a culpada.

Nesse caso, a referência do que é adequado passa a ser dada pelo outro. Lentamente, tortura após tortura, a vítima vai acreditando que tem a sorte de ser amada por alguém, apesar de ela mesmo ser “detestável”. Assim, quem sofre o abuso é levado a se adequar e abrir mão de gostos e relacionamentos para não desagradar o abusador. Vale lembrar ainda duas coisas: (1) quem comete esse tipo de violência geralmente é sedutor e muito convincente; e (2) os relacionamentos tóxicos e abusivos não acontecem apenas numa relação amorosa, mas também no contexto profissional, de amizade e entre pais e filhos, dificultando assim a identificação dos sinais de alerta.

SERÁ QUE EU SOU O ABUSADOR?
O abuso nem sempre é percebido por quem o sofre. Mas será que você pode ser a pessoa abusadora e não perceber? Pode ser difícil de acreditar, mas grande parte dos abusadores não se enxerga assim. Pelo fato de não exercitarem a autocrítica, eles tendem a acreditar que fazem tudo por um motivo justo. Por isso, é importante reconhecer que existem limites que devem ser respeitados e que certos comportamentos não podem ser vistos como “normais”. Por exemplo, querer controlar alguém nunca é normal! No entanto, para reconhecer o que está fora de lugar, é necessário fazer uma avaliação das próprias atitudes e assumir a responsabilidade de fazer diferente. Alguns comportamentos que podem evidenciar se você está cometendo abuso contra alguém são:

1. Controlar as decisões que o outro toma sem respeitar a liberdade dele. Muitas vezes, as decisões alheias contrariam nossas expectativas. Porém, ainda que seja com o intuito de proteger alguém, decidir no lugar de outro adulto é uma forma de controle. Você pode sugerir, mas nunca decidir por ele, pois isso esvazia a autonomia e o poder de decisão dele.

2. Manipular o outro com chantagens e se descontrolar quando é contrariado. Não é simples perceber a manipulação, porque ela pode se apresentar de maneiras diferentes. As chantagens variam desde manter silêncio com a intenção que a outra pessoa ceda até ameaças de suicídio. No fim, se o desejo do abusador não é atendido, ele geralmente reage gritando, brigando ou intimidando com violência.

3. Monitorar as relações e comunicações do outro. Se você confia no seu parceiro, amigo ou familiar, não precisa fazer isso, mas talvez não tenha se dado conta de que esteja invadindo a privacidade de alguém, tentando controlar aonde a pessoa vai e “supervisionando” com quem ela se relaciona. O jogo da vigilância pode incluir a proibição de a pessoa ir a eventos em que você não esteja e a verificação constante de mensagens no celular, e-mails e mídias sociais.

4. Invalidar os sentimentos do outro, principalmente quando a queixa é você. Ouvir críticas é doloroso e rapidamente levantamos nossas defesas quando isso acontece. Mas é importante, em qualquer tipo de relacionamento, conseguir ouvir o que o outro diz sobre nosso comportamento. Talvez você tenha o hábito de se justificar e não refletir no que escuta. Deslegitimar o outro, dizendo que seus sentimentos são bobagem, drama ou exagero é uma forma cruel de desqualificar o ponto de vista alheio. O resultado dessa forma de abuso é o abalo da autoconfiança pois, em pouco tempo, a outra pessoa vai duvidar da própria capacidade de analisar as situações e provavelmente vá evitar falar com você sobre isso. 

5. Destruir a autoestima da outra pessoa para garantir seu controle sobre ela. Se a constatação do sucesso do outro lhe incomoda e você tende a minimizar as suas conquistas por inveja ou insegurança, tem algo muito errado acontecendo com você. Fazer o outro se sentir sem valor é sabotagem pesada. Apoiar as pessoas em seus projetos individuais é um gesto generoso, mas ficar incomodado com o crescimento alheio, principalmente quando isso acontece independentemente de você, pode ser um indício de que o mais importante é garantir seu controle na relação.

6. Ofender o outro e dizer que é “só brincadeira”. Esse comportamento abusivo pode não ser consciente, mas é mais comum do que se imagina e geralmente entra no ciclo repetitivo de pedir desculpas e fazer novamente. Ocorre, principalmente, na presença dos outros, quando a pessoa é pega de surpresa e não consegue se defender. Comentários sutis minam as defesas e perturbam a interpretação objetiva da situação. Ridicularizar a opinião e os gostos do outro é, no mínimo, grosseria.

DE FRENTE PARA O ESPELHO
Há muitas formas de um relacionamento abusivo se expressar. Se você identificou alguns desses comportamentos em si mesmo, é hora de mudar. Sabemos que comportamentos assim não surgem da noite para o dia e podem ter raízes mais profundas na sua história de vida. Por isso, a psicoterapia pode ser uma ajuda importante para refletir e trabalhar mudanças necessárias. Mesmo que existam razões na sua trajetória pessoal que contribuam para essas ações, nada justifica atitudes abusivas.

Ainda que pareça surpreendente, muitas vezes o comportamento abusivo ocorre por medo do abandono, da rejeição e de não ser amado. Quando estamos atentos e desejamos a mudança, é muito bom, mas nem sempre será suficiente. Construir relacionamentos com base no afeto e não no controle é difícil para quem já se sentiu ferido no passado. Por isso, uma atitude sempre bem-vinda é o exercício da empatia. Principalmente para não criar regras que você mesmo não gostaria de cumprir.

A intenção ao tratar desse tema não é julgar ninguém, mas oferecer compreensão e apoio. É muito importante nos questionarmos sempre sobre as razões que nos mantêm em nossos relacionamentos. Relações mais saudáveis podem surgir quando aumentamos o autoconhecimento, resgatamos nossas potencialidades e fortalecemos a tomada de consciência sobre o que acontece na prática, sem idealização ou negação da realidade.

Talita Castelão (via Revista Quebrando o Silêncio)

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