Quase diariamente vemos pelas notícias os prejuízos do falso testemunho. O juiz William Douglas, em O Poder dos Dez Mandamentos, comenta como os juízes estão sempre enfrentando essa situação nos tribunais. “Em nome da amizade ou de compensações (financeiras ou não), muitas testemunhas mentem descaradamente. Isso dificulta a ação do juiz, pois a falta com a verdade pode conduzir a um erro judiciário. Muitas vezes, a testemunha pode até não mentir, mas omitir a verdade. O peso e as consequências são os mesmos” (p. 177).
No dia a dia somos desafiados pelo nono mandamento, ao escolher falar bem ou mal de alguém, esclarecer um fato ou interpretá-lo mal, exaltar a virtude de alguém ou expor seus defeitos, falar a verdade ou mentir. Calar diante de alguém injustamente acusado, falar a verdade fora de hora, com intenções distorcidas, dar ouvidos a fofocas e repeti-las a outros também são formas veladas de desobedecer ao nono mandamento.
O Poder das Palavras
Quanto poder há num simples elogio! A Bíblia, em diversas ocasiões, demonstra e chama a atenção para esse poder que um elogio ou uma palavra de afeto possui, especialmente no livro de Provérbios: “Favos de mel são as palavras agradáveis, doçura para a alma e saúde para os ossos” (Pv 16.24); “Como maçãs de ouro em salvas de prata, assim é a palavra dita a seu tempo” (Pv 25.11). No entanto, com o mesmo poder que uma palavra pode salvar, infelizmente também pode destruir. A Bíblia, igualmente no livro de Salomão, demonstra a importância e o cuidado que devemos ter com o poder das palavras por meio de mensagens de aviso e também de condenação: “Os lábios mentirosos são abomináveis ao Senhor, mas os que agem fielmente são o seu deleite” (Pv 12:22); “O que diz a verdade manifesta a justiça, mas a falsa testemunha diz engano” (Pv 12:17); “a falsa testemunha não fica impune e o que profere mentiras não escapará” (Pv 19:9). Entre muitos outros textos sobre o assunto, sem dúvida o mais conhecido é o nono mandamento em Êxodo 20:16 – “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.”
Ao olharmos para o nono mandamento do decálogo, logo nos vem à mente a idéia de mentira, ou o ato de mentir. Contudo, o nono mandamento deve ser entendido de forma mais profunda, pois assim como os outros mandamentos, não se limita a uma simples sentença negativa ou a uma simples regra, mas a uma norma de conduta e de relacionamento entre Deus e os homens. Os Dez Mandamentos nos convida a descobrir nossas obrigações com relação a Deus, ao próximo e à sociedade. Por isso o conceito de “lei” em toda a Bíblia se resume no amor, pois está baseado em relacionamentos, primeiro entre Deus e os homens e depois entre o homem e seu próximo. E não há relacionamento verdadeiro sem amor.
Olhando Além da Mentira
“Não dirás falso testemunho” pode ser entendido como falar falsamente, dizer algo com o intuito de enganar, contrariar a verdade. Ellen White amplia o alcance do texto ao dizer que “por um relance de olhos, um movimento da mão, por uma expressão do rosto pode-se dizer falsidade tão eficazmente como por palavras” (Patriarcas e Profetas, p. 309). Essa afirmação é confirmada pelo texto original, na língua hebraica, no qual a palavra “ta’aneh”, traduzida como “dirás”, também pode ser expressa como “dar a entender”, portanto, não se refere apenas ao falar, mas também ao agir.
Se recorrermos ao dicionário, poderemos ter definições ainda mais enriquecedoras, e abrangentes como: dar indicação contrária à realidade, cessar de ser bom, criar intriga, tirar a boa fama, desacreditar… e por este primeiro grupo de definições podemos entender outra implicação do nono mandamento: a difamação, ou seja, o esforço no sentido de prejudicar a reputação, a “fama” de alguém. Podemos adicionar ainda outra tradução possível para o termo em hebraico mencionado anteriormente: “concordar”. Desta forma, não somente aquele que difama, mas também aquele que concorda com o que é falado ou permite que falem enganosamente de outro sem se manifestar contra, transgride o nono mandamento, uma vez que possibilita a outros serem tentados a acreditar e repetir tudo o que é indigno para aqueles cuja opinião ou atitude pretendem reprovar. Também está incluso aqui a paradoxal declaração “mentir para o bem”, isto é, “insinuar ou divulgar informações à desvantagem pessoal de outros, como se fossem justificados em pensar mal de alguém que entendem estar agindo errado” espalhando suspeitas sobre as motivações da conduta ou do outro. Motivo pelo qual os homens atraem tanta culpa a si próprios e criam tantos problemas para outros.
Em um segundo grupo de definições, observamos outra possibilidade de aplicação: disfarçar, encobrir as intenções, fingir, simular, não revelar os sentimentos, ocultar…, essas definições demonstram uma intenção que não consiste somente em prejudicar o próximo, como na anterior, mas em obter algum benefício próprio por não mostrar a verdade ou por mostrá-la de forma incompleta. Podemos mencionar diversos exemplos, como simular uma doença para receber atenção, fingir simpatia por alguém importante para ganhar algum beneficio de sua amizade, como diz J. H. Brokke: “O falso testemunho nem sempre é engano, por vezes é adulação” (A Lei é Santa, p. 97). Forjar uma prova para inocentar-se de alguma acusação ou para acusar outro em seu lugar, como o exemplo bíblico dos irmãos de José que sujaram sua túnica nova com sangue de um animal como prova de que ele estava morto, também é dizer falso testemunho. Temos ainda outro exemplo bíblico em Gênesis, onde Abraão apresenta Sara como sua irmã omitindo que era também sua esposa. Deste modo, essa definição não se limita a ação consciente contra alguém, mas abrange também o resultado ulterior e, ás vezes, inesperado das palavras falsas, pois as mentiras que dizemos, ou as verdades que ocultamos para satisfazer e ou justificar a nós mesmos, sempre refletirão contra alguém e poderão produzir efeitos imensuráveis de sofrimento, amargura e ódio.
Olhando para os Efeitos
Uma última definição encontrada no dicionário que me chamou a atenção foi “atenuar o efeito de”. Um importante aspecto está implícito nessa definição, visto que a ordem de Deus para não dizer falso testemunho nos faz atentar, em primeiro lugar, para o grande valor da verdade. O relativismo do atual mundo pós-moderno considera as preferências pessoais acima do conceito de verdade e entende a liberdade de expressão como premissa para o direito de dizer o que quiser, doa a quem doer, já que “os direitos são mais importantes que as responsabilidades”, tornando a aplicação da verdade apenas local e temporal. Através da mídia e do excesso de informações, o valor da verdade se torna cada vez menos relevante e cada vez mais conceitual, de forma que os mandamentos e a as verdades bíblicas, eternas e atemporais, são incluídas imperceptivelmente no mesmo paradigma, sob uma máscara de aculturação ou abertura a novas idéias, por aqueles que deveriam defendê-las como tal. É fácil observar como o relativismo mina a verdade e a vida da mente mesmo quando aparece mascarado de esclarecimento e tolerância. Portanto, não dizer falso testemunho abarca não “atenuar o efeito” que a verdade tem, não reter uma verdade que precisa ser dita. Em outras palavras, abarca defender a verdade para que o seu valor não seja diminuído.
Num outro aspecto, o nono mandamento também nos previne para o grande valor do nome de uma pessoa. Para os judeus, o nome de Deus, representado pelo tetragrama de quatro consoantes “YHWH”, era tão sagrado que usavam uma pena diferente e especial para escrevê-lo nas Escrituras e só era pronunciado uma vez ao ano pelo Sumo Sacerdote. Considerando que os seres humanos foram criados à “sua imagem e semelhança”, eles também devem ter seus nomes protegidos contra falsos testemunhos. Deste modo, “mentir se torna mais grave do que roubar”, já que o ladrão leva apenas coisas materiais que podem ser repostas, enquanto o mentiroso tira algo que talvez nunca mais possa ser restituído. William Shakespeare, sobre este assunto, declarou: “Quem me rouba a bolsa, escória rouba… Mas quem me surrupia o bom nome, furta aquilo que em nada lhe enriquece e que a mim me deixa na miséria.” Portanto, “atenuar o efeito” de um bom nome é o mesmo que roubar o valor de uma pessoa. E, por conseguinte, é o mesmo que prejudicar todos os seus relacionamentos como família, igreja e sociedade. Pois quando a verdade é substituída pela fraude em qualquer relacionamento, este perde seu valor.
Num terceiro aspecto, o nono mandamento nos faz atentar para o valor da palavra de uma pessoa . Em Mateus 12:34, Jesus diz: “A boca fala do que está cheio o coração”, ou seja, pode-se ver o estado do coração de um homem mediante as palavras que pronuncia, pois as palavras não são apenas sons vocalizados pela boca, mas idéias que resultam do “bom ou mau tesouro do coração” (v. 35), são símbolos da condição espiritual de uma pessoa. Certamente não há nada tão revelador como as palavras. Destarte, revelamos continuamente o que somos mediante o que dizemos e por isso a palavra de uma pessoa é tão importante. “Atenuar o efeito” da palavra de alguém é como tirar o valor de suas intenções mais íntimas sem conhecê-las. Por outro lado, é possível que muitas das palavras que um homem pronuncia em público sejam finas e nobres, e que suas conversações privadas sejam o oposto, grosseiras e maldosas. A palavra que se diz com muito cuidado pode ser uma hipocrisia calculada. Assim, o hipócrita pode ser incluído nesse aspecto como aquele que “atenua o efeito” de suas próprias palavras, pois não age de acordo com elas, não dá valor a elas e, conseqüentemente, não valoriza a si mesmo, pois não se mostra como é verdadeiramente. Reprime as palavras que estão em seu coração, mas fala as que provêm de seu orgulho. Cada homem deve analisar-se a si mesmo. Deve examinar suas palavras para poder descobrir o estado de seu coração. E deve recordar que Deus não o julga pelas palavras que pronuncia com cuidado e premeditação, mas sim pelas que pronuncia quando desapareceram todas as barreiras convencionais e os verdadeiros sentimentos de seu coração aparecem na superfície.
Olhando Internamente
No Novo Testamento, a lei é repercutida no Sermão da Montanha, em que Cristo nos mostra uma interpretação mais profunda e uma aplicação mais “atualizada” da lei de Moisés. Jesus, nas bem-aventuranças, aplica a lei ao caráter; nas metáforas do sal e da luz, aplica a lei à influência que Seus seguidores deveriam exercer no mundo. Ao dizer que não veio “ab-rogar, mas cumprir” (Mt 5:17), Jesus aplica a lei à justiça confirmando sua autoridade. Nas comparações entre os dois senhores, entre as coisas terrenas e celestiais, Jesus aplica a lei às motivações e desejos do homem. Em suma, no Sermão da Montanha Jesus aplica a lei ao relacionamento entre Deus e o homem e entre o homem com o seu próximo , e assim como foi dito anteriormente, o amor deve ser o elo desses relacionamentos, pois este é o grande mandamento da lei: “amarás a teu Deus de todo o teu coração, de toda tua alma e de todo o teu entendimento… e ao próximo como a ti mesmo” (Mt 22:37-39).
Como vimos, o nono mandamento não se resume em somente não mentir, mas envolve muitos outros aspectos relacionais, de modo que, se o Sermão do Monte é uma ampliação da aplicabilidade da lei nos relacionamentos humanos, deve então ampliar a nossa visão sobre o nono mandamento. John Stott comenta que com bastante frequência o olho nas Escrituras é equivalente ao coração, isto é, “colocar o coração” e “fixar os olhos” em alguma coisa são sinônimos. O que vemos, fisicamente, nos afeta e nos influencia, da mesma forma, o que vemos espiritualmente (aquilo em que fixamos nosso coração) afeta toda a nossa vida. “Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (Mt 6:21). Por isso Jesus pede a seus ouvintes que não ajuntem tesouro na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, mas no céu, pois o materialismo e a ganância nos faz perder o senso de valores e o discernimento das coisas temporárias e as eternas. Esse verso é seguido pela analogia dos olhos, que Jesus compara com a lâmpada do corpo: “Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso; se, porém, os teu olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas” (v. 22, 23). Portanto, o olho bom é como um binóculo que amplia o alcance ou como uma lente que melhora a visão distorcida pelo pecado e o olho mau é como uma catarata que obscurece a visão, ou como uma venda que cega e conduz às trevas.
O Nono Mandamento no Olhar
A palavra nesse texto traduzida como “bom” tem um sentido bastante comum no grego do Novo Testamento, como generoso ou generosidade, como no livro de Tiago que diz, com respeito a Deus, que ele dá a todos “generosamente” (Tiago 1:5). E o advérbio que usa em grego, é o mesmo que aparece no texto como adjetivo. Por oposição, a palavra traduzida por “mau” tanto no Novo Testamento como na Septuaginta, também significa miserável ou mesquinho. Assim sendo, Jesus está afirmando que não há nada como a generosidade para nos permitir ver a vida e as pessoas de maneira correta e não há nada como a avareza para fazer com que nossa visão das coisas e das pessoas seja incorreta. Olho bom é aquele olhar que busca dar e não receber, que olha para ajudar, para entender, para compartilhar, para agradecer… olha com amor. Ao contrário, o olho mau é aquele olhar que só busca receber, olha com cobrança, com julgamento, esperando algo que ele mesmo não tem, sempre querendo mais e sempre insatisfeito.
Seguindo essa interpretação, podemos dizer que o nono mandamento nos conduz a dar um melhor significado a coisas duvidosas. Leva-nos a esperar o que é bom sobre o nosso próximo, ou pelo menos dar ao próximo o benefício da dúvida, mesmo que ele tenha feito algo de errado, visto que toda pessoa é capaz de mudar de idéia. A calúnia não é só incriminar e achar erro no inocente onde não há razão para isso, mas é também dar o pior significado a coisas ditas de forma comum. Um olho mau desconfia, entende coisas ditas, correta ou ambiguamente, da pior forma possível. Isso não significa que devemos ser ingênuos ou ignorar o óbvio, mas que devemos ser generosos em nossos julgamentos com respeito a outros. Uma das características da natureza humana é pensar sempre o pior, e encontrar um prazer maligno em repetir o pior. Todos os dias vêem assassinar a boa reputação de pessoas perfeitamente inocentes na fofoca de pessoas cujos julgamentos estão impregnados de veneno. O mundo se veria sacado de muito sofrimento se tratássemos de pensar o melhor, e não o pior, com respeito a nossos próximos, e se nossa interpretação de suas ações fosse sempre “generosa”.
Que Deus nos capacite a honrar esse mandamento, elevando as pessoas ao redor, promovendo assim o reino de Deus nos ambientes onde estiver!
[Com informações de CPB e Pastor Adventista]
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