"É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil", esta é a frase que consta no primeiro artigo da Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, data que simboliza o Dia da Abolição da Escravatura.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil foi o país da América que mais "importou" africanos para serem escravizados. Entre os séculos XVI e meados do século XIX, cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças foram trazidos a força para o Brasil.
No século XXI, pretos e pardos são 55% da população brasileira. No entanto, de acordo com Censo 2022, eles também são maioria entre os que vivem em habitações sem esgoto adequado, por exemplo.
Pesquisadores alertam que a Lei Áurea não garantiu direitos fundamentais, como moradia, educação e saúde, e nem "humanizou" as pessoas que eram escravizadas. "No dia 12 de maio os negros eram escravizados, no dia 13 eram livres, e no dia 14 eram 'sem' [sem teto e sem direitos]", diz a professora Matilde Ribeiro, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.
Para os pesquisadores, a abolição no Brasil aconteceu por questões políticas e econômicas, e não por benevolência da princesa Isabel ou do Imperador D. Pedro II. Essas questões já eram articuladas há anos no país.
Em 2023, mais de 3 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão no Brasil, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
A Bíblia e a escravidão
É uma acusação comum contra os cristãos: "A Bíblia defende a escravidão!" Não. A Bíblia regulamenta e humaniza temporariamente a escravidão, uma prática que nunca esteve nos planos de Deus.
As leis divinas para Israel estabeleciam regras inovadoras para a relação senhor e servos. A servidão, conforme regulamentada no Antigo Testamento, em nada se parecia com a escravidão que permeia nossa mente: navios negreiros, senzalas, açoites, estupros. Vejamos um breve resumo da legislação bíblica sobre a escravidão:
Escravidão foi a primeira lei que Deus deu aos israelitas quando eles saíram do Egito (cf. Êx 21:1-11). Na lei mosaica, sequestrar alguém para ser vendido como escravo era um crime punido com pena capital (Êx 21:16). Um escravo hebreu deveria trabalhar apenas seis anos para pagar sua dívida, sendo libertado no sétimo ano, sem pagar nada (Êx 21:2). Além disso, ele deveria receber de seu proprietário alguns animais e alimentos para recomeçar a vida (Dt 15:13, 14). Durante seu período de serviço, o(a) escravo(a) teria um dia de folga semanal, o sábado (Êx 20:10). É interessante notar que na versão dos 10 mandamentos de Deuteronômio 5, é nos dito que o sábado foi dado para que o servo e a serva “descansem como tu”, no caso, o patrão.
Biblicamente, os servos tinham direitos e deveres. E ao lermos a Bíblia inteira, percebemos um movimento social em direção à igualdade e liberdade. E se a Palavra de Deus fosse levada à sério desde o início, a escravidão não teria durado tanto tempo. O Senhor estabeleceu o Ano do Jubileu, a cada 50 anos, terras seriam restituídas, todos os escravos seriam libertos, devedores seriam perdoados, e a igualdade seria celebrada ao lado da liberdade: "Declarareis santo o quinquagésimo ano e proclamareis a libertação de todos os moradores da terra. Será para vós um jubileu: cada um de vós retornará a seu patrimônio, e cada um de vós voltará a seu clã" (Levítico 26:10).
Alguém pode questionar o motivo pelo qual Deus não aboliu a escravidão entre os israelitas. Lembre-se de que eles estavam inseridos numa cultura impregnada dessa prática. Mesmo que Deus a abolisse, isso não mudaria a forma como eles pensavam. Portanto, criticar a Bíblia afirmando que ela defende a prática da escravidão é desconhecer quase por completo o ambiente histórico no qual ela foi produzida.
Mileritas e pioneiros adventistas
Alguns dos responsáveis pelo movimento religioso arrebatador do século XIX estiveram profundamente comprometidos com a causa abolicionista, impopular para muitos à época. No mesmo sentido, o historiador Richard W. Schwarz afirma que "as convicções abolicionistas da maioria dos conferencistas mileritas os tornavam personae non grata [pessoas não bem vindas ou aceitáveis] no sul” (Portadores de Luz, p. 52) . Esse contexto de hostilidade trouxe problemas para Joseph Bates (1792-1872), que viria a ser o primeiro presidente da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Em uma ocasião, foi interrogado por um juiz sob a acusação de que "tinha vindo para levar nossos escravos" (Ibidem, p. 126). Por mais de uma vez, ele foi expulso de cidades com base na mesma acusação. Sua missão era comprometida por convicções morais e políticas.
Essa falta de receptividade por parte dos sulistas, que eram majoritariamente escravagistas, fica compreensível quando lidas as palavras de Joshua V. Himes, que não somente participou na fundação da Sociedade Antiescravista de Massachusetts, como também teve importância para a Sociedade Antiescravista da Nova Inglaterra. Sua esposa era uma das diretoras da Sociedade Feminina Antiescravista de Boston. Himes também defendeu que donos de escravos e defensores dessa prática não deveriam ser aceitos como adventistas mileritas, uma vez que eles “corromperiam a organização” (George Knight, Adventismo, p. 179).
Ellen G. White também foi comprometida com a causa da liberdade dos negros. Ciente de que o envolvimento com a causa poderia prejudicar o avanço da pregação, não deixou de dar declarações contundentes: "Deus não reconhece distinção alguma de nacionalidade, raça ou casta. É o Criador de todo homem. Todos os homens são de uma família pela criação, e todos são um pela redenção. Cristo veio para demolir toda parede de separação e abrir todos os compartimentos do templo a fim de que toda alma possa ter livre acesso a Deus. Em Cristo não há nem judeu nem grego, servo nem livre. Todos são aproximados por Seu precioso sangue. O Senhor tem olhado com tristeza para a mais deplorável de todas as cenas: a raça negra em escravidão. Ele deseja que nós, em nosso trabalho por eles, nos lembremos de seu livramento providencial da escravidão, de sua relação comum conosco pela criação e pela redenção, e de seu direito às bênçãos da liberdade. [...] O Deus do branco é o Deus do negro, e o Senhor afirma que Seu amor para com os mais pequeninos de Seus filhos supera o amor de uma mãe pelo seu filho querido. [...] Ele ama a todos, e não faz diferença alguma entre brancos e negros, a não ser no que diz respeito à piedade terna e especial que tem por aqueles que são chamados a suportar um fardo mais pesado que outros. [...] O nome do negro está escrito no livro da vida ao lado do nome do branco. Todos são um em Cristo. Nem nascimento, nem posição, nacionalidade nem cor podem elevar ou degradar as pessoas” (Mensagens Escolhidas, pp. 485-488).
Como diria Martin Luther King, eu tenho um sonho! Sonho com o dia em que todos os brasileiros, brancos ou negros, terão igualdade de direitos, sejam reconhecidos como cidadãos e possam viver em plenitude a sua existência.
Deus estabeleceu liberdade e igualdade. O homem é que não consegue implementar isso. Até hoje.
Ilustração: Francisco Rodrigues dos Santos, trabalhador rural de Roraima: condições degradantes em regime análogo à escravidão (Crédito: Mario Tama)
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