quarta-feira, 14 de agosto de 2024

MASOQUISMO RELIGIOSO

Hoje me peguei refletindo sobre o texto de Tiago 1:2, que diz:

“Meus irmãos, a vida de vocês está cheia de dificuldades e de provações? Então, considerem isso motivo de grande alegria […]”

Minha primeira reação foi: que tipo de loucura é essa ? Mas à primeira vista, parece-me mais um tipo de masoquismo religioso. Afinal, quem é o doido, esvairado, maluco, insano que sente algum prazer no sofrimento? Eu que não sou. Prefiro quando estou no conforto de uma vida que corre perfeitamente do jeito que quero. Mas provavelmente esse é o meu impostor falando, e percebi isso quando entendi algumas implicações dessa idéia. E para mim elas são três:

1. Cutucando o capiroto
Na concepção de Tiago, não há dúvida de que um verdadeiro cristão sofrerá dificuldades. A única pergunta é quando. A lógica é bem simples e tem a ver com a essência do “andar com Deus”: a vida cristã comprometida exaspera o coisa-ruim. Ele tentará qualquer coisa para distrair ou criar um brecha no relacionamento com Deus. Dificuldades e tentações são algumas das ferramentas no kit de tortura dele. Portanto, a recíproca é verdadeira: se não experimentamos dificuldades nenhuma, pode indicar que o diabo está feliz com nossa vida. E, cá entre nós, eu acho que isso é um problema, principalmente se ele não é bem aquele a quem você quer agradar. Isso não quer dizer que devamos correr atrás de problemas.

Dá pra entender o porquê do ficar alegre nas dificuldades? Encare-as de cabeça erguida, consigo imaginar Tiago dizendo, porque elas te mostram que você está no caminho certo, a ponto de chamar atenção do mal para a sua vida – tal como Jó.

2. Foco nos resultados
Como se não bastasse, as dificuldades podem fazer algo por você que os fins de semana comendo pizza e assistindo filmes não podem: tornar você um cristão pra valer.

“… porque, quando a sua fé é provada, a perseverança de vocês tem uma oportunidade de crescer. Portanto, deixem a perseverança crescer, agindo plenamente em vocês. Porque, quando a perseverança de vocês estiver afinal plenamente crescida, vocês estarão preparados para qualquer coisa, e serão fortes de caráter, íntegros, sem que lhes falte coisa alguma” (Tiago 1:3,4).

Uma dificuldade bem aproveitada faz com que você literalmente “solte” sua vida nas mãos de Deus, aconteça o que acontecer. A dependência do eu simplesmente cessa e a ansiedade, o medo e a preocupação são substituídas pela alegria, paz e esperança. É a forma de Deus responder suas orações por um caráter forte e íntegro. Nas dificuldades, alegre-se pelo resultado que Deus quer produzir em você.

Uma vez um pregador comentou que os grandes homens de Deus passaram sempre por algum “deserto” antes do clímax de sua história. José foi preso. Moisés viveu 40 anos no deserto. Daniel foi oferecido aos leões. E a lista continua. Por isso posso até repetir o clichê que minha sogra diz às vezes: “Quando estiver sofrendo, não pergunte a Deus por quê, mas para quê.”

3. Confiança na graça de Deus
Tem muita gente querendo viver esse princípio de uma forma plástica. Mas eu acredito que Tiago nunca se referiu a uma atitude superficial, a um sorriso forçado. Essa alegria não é só uma demonstração externa, antes, é uma coisa que explode de dentro, uma espécie de certeza que produz paz. Mas certeza do quê?

“E sabemos que tudo quanto nos acontece está operando para nosso próprio bem, se amarmos a Deus e estivermos ajustados aos seus planos” (Romanos 8:28).

Eu acredito que a espécie de alegria que Tiago descreve só é possível de ser experimentada quando temos a certeza que Paulo descreve no verso acima. Brennan Manning, refletindo na profundidade desse verso, cita Agostinho, que diz que TODAS as coisas servem para o nosso bem quando amamos a Deus, até mesmo nossos pecados. Opa, aí a coisa ficou perigosa. Até mesmo nossos pecados? É importante ver que essa é uma realidade de quem ama a Deus e deseja sinceramente se ajustar aos seus planos, e não de quem ama a si mesmo e deseja viver os seus próprios planos. Mas por contraste, se for verdade que até os meus pecados podem operar para o meu bem, fica fácil de acreditar que as dificuldades também o fazem.

Sinceramente, sou tentado a descrer nisso. Quer dizer, isso é quase pensar que Deus corrobora o mal. #Sóquenão

Primeiro porque Paulo não se deu ao trabalho de criar uma excepção. Ele não escreveu “Todas as coisas cooperam para o bem, exceto aquelas listadas no anexo 2, dêem uma olhada”. Acreditar nisso não é pensar que Deus “se agrada do pecado” ou que “existe algum bem no pecado”, não entenda errado. Acreditar nisso é simplesmente ter consciência da misericórdia de Deus – nada mais. É como diz Gênesis 50:20 “É bem verdade que vocês planejaram o mal contra mim, mas Deus tornou o mal em bem para que hoje fosse preservada a vida de muitas pessoas.”

Descrer nisso é quase ter uma visão “futuro do pretérito” da vida. Como assim? É sempre a conjectura de algo do tipo “Como seria se…” Mas isso não é possível. O passado é passado e a realidade é o que você tem agora nas suas mãos. E essa realidade Deus molda para que a vida de muitos seja preservada, inclusive a sua.

Quando me deparei com a história de Marcos 5:1-20, entendi um pouco melhor isso tudo.

A história começa com Jesus chegando na terra de Gadara. Assim que desce do barco, Ele se depara com um homem saindo das tumbas, pelado, sujo, machucado. Instantaneamente Ele sabe o que se passa. A presença do exército inimigo Lhe é clara. 6000 demônios, contra um só homem. Possivelmente a maior força demoníaca enfrentada por Jesus durante sua vida. Como se fizesse alguma diferença – não importa quão escura fora a noite, a luz do sol sempre espanta as trevas. E foi o que houve: espantados como um monte de filhotinhos de cães, ou porcos, melhor dizendo. E então chegamos nos versos 18–20, que dizem:

“Jesus voltou para o barco e o homem que tinha estado endemoninhado suplicou a Jesus que o deixasse ir com ele. Mas Jesus não o permitiu e disse: 'Volte para a sua casa e conte aos seus familiares as coisas maravilhosas que o Senhor fez por você; e como ele foi misericordioso.' Então o homem partiu e começou a visitar as dez cidades daquela região, e contar a todo mundo as grandes coisas que Jesus tinha feito por ele; e todos ficavam admirados.”

Existe um contraste de atitude entre essa ordem e a ordem oposta dada por Jesus aos judeus a quem ele curava. Em Decápolis, composta por dez cidades pagãs, a mensagem do Messias deveria ser espalhada aos sete ventos. Mas em Israel, que os judeus mantivessem segredo. Havia uma concepção errada entre os judeus a respeito do caráter do Messias; provavelmente Jesus evitava uma comoção pública que pudesse levar a algum tipo de revolta. Mas entre os pagãos não havia essa preocupação. Detalhes a parte, vou direto para onde quero chegar.

Como seria se aquele homem sem nome não estivesse ali? Quero dizer, imagine-se perguntando a ele:

“- Gadareno, se pudesse escolher não ter passado tanto tempo nas tumbas, possesso, vivendo como um animal, você mudaria seu passado?

– Não sei.

– Como assim não sabe ? Quer dizer que você…

– Eu não quero dizer nada. A única coisa que importa é que olhei nos olhos da Verdade. Antes que você me interprete mal, entenda o seguinte: eu não tenho orgulho da vida que vivi, nem das coisas que fiz. Mas encontrei a Jesus Cristo. Não me importa o passado. O que me importa é que estava ali quando Ele chegou e porque eu estava ali, Ele pôde me resgatar. E por isso você também O conhece hoje.

– Nunca havia pensado por esse lado.

– Eu imaginei. Mas pense só… Minha vida poderia ter sido diferente, sim. Mas então o quê? Ele teria chegado e eu poderia simplesmente ser mais um dos moradores da cidade que imploraram para ele ir embora. Poderia tê-lo rejeitado para continuar vivendo minha vida e nada mais. Portanto, não me importo com meu passado, pois não gosto nem de pensar na mínima possibilidade de não tê-lo encontrado. Ou melhor, de não ter sido encontrado por Ele. Para mim uma certeza basta: a de que sou amado e aceito, sendo o que sou, hoje. E o meu Deus, o Deus vivo terminará em mim aquilo que Ele começou.”

Vendo essa história dessa forma, só consigo pensar numa coisa: se é pra ser feliz nas dificuldades, que a minha felicidade brote da certeza de que não estou só. Da certeza de que sou amado por ser, e não por fazer. Da certeza de que, através da misericórdia de Deus, qualquer barro pode virar um vaso de dar inveja em um Qianlong chinês que custa mais de US$80 MI.

E o nome disso é graça.

E isso resume tudo. Afinal, precisa de algo mais?

PS: Se a resposta for sim, talvez sua religião seja budismo ou kardecismo, mas definitivamente não é o cristianismo.


Inspirações bibliográficas

– “O Evangelho Maltrapilho”, de Brennan Manning;

– “The Practical Christian: Mouth, Money and Mind”, de Bertram Melbourne;

– Bíblia Nova Vida;

– Comentários da Biblia de Estudo Andrews.

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