terça-feira, 16 de abril de 2019

Notre Dame: um elo entre arquitetura, religião, história e política

Difícil encontrar palavras para descrever a perda. Apesar do trabalho heroico de 400 bombeiros, toda a estatuária, a pinturas e ornamentos, a estrutura em carvalho do século XIII que sustentava o teto – tudo isso se foi. A imagem da flecha em chamas, desabando a 90 metros do solo, ficará nos livros de história.

A catedral de Nossa Senhora de Paris, no mundo todo chamada pelo nome em francês, Notre-Dame, resistiu a dilapidações e mutilações nos séculos XVII e XVIII, a tentativas de demolição no Terror da Revolução Francesa e na Comuna de Paris, à invasão nazista, a guerras e intempéries. Nunca havia sofrido incêndio de tal proporção – e não resistiu ao fogo.

As chamas destruíram dois terços do telhado e parte do edifício de 130 metros de comprimento, 48 de largura e 35 de altura, onde cabiam 6.500 pessoas e entravam quase 14 milhões de visitantes todo ano.

Os bombeiros evitaram o pior, preservando a fachada, as torres e a estrutura de pedra. Salvaram até relíquias, como a coroa de espinhos atribuída a Jesus Cristo – trazida à França por São Luís, o rei Luís IX, no século XIII – ou a túnica do próprio São Luís. Por sorte, as 16 estátuas que rodeavam a flecha foram retiradas na semana passada como parte do trabalho de restauração (um inquérito determinará a causa do incêndio).

“Esta catedral, nós a reergueremos”, declarou o presidente Emmanuel Macron, abalado, em sua primeira manifestação depois de examinar a devastação. Mesmo reconstruída, não será mesma catedral. Notre-Dame como a conhecíamos não existe mais – nem existirá. Notre-Dame será doravante outra, com as cicatrizes do incêndio que devastou uma das maiores obras arquitetônicas da humanidade, símbolo da religião católica, da cultura e da civilização francesas.

Não será, é verdade, a primeira reconstrução da catedral. A própria flecha que desabou não era a original da Idade Média, mas resultado da restauração concluída em 1864 pelo arquiteto Eugène Viollet-le-Duc, segundo sua concepção do que teria sido o edifício original.

Notre-Dame jamais foi a catedral gótica exemplar, aquela que reúne as características que definem o estilo – honra que cabe às catedrais de Reims ou Chartres, cujas carpintarias de madeira do teto original também já foram destruídas e substituídas por estruturas de metal.

Era um produto híbrido do alvorecer do estilo gótico, com elementos românicos ainda a comprovar as dores de parto, acrescido ao longo dos séculos das fantasias de vários artistas, unidas na visão da Paris poderosa do século XIX, formulada pelo urbanista George-Eugène Haussmann e executada por Viollet-le-Duc.

Era, sobretudo, a Notre-Dame imaginada por Victor Hugo no clássico Notre-Dame de Paris, de 1831. Para além da história do amor impossível conhecida de todos, entre o corcunda que tocava os sinos, Quasímodo, e a pobre boêmia Esmeralda, o romance de Victor Hugo é uma elegia à arquitetura medieval. A catedral é a personagem principal.

O próprio Hugo imaginou Notre-Dame em chamas, no momento em que o populacho tenta invadi-la. É Quasímodo quem ateia uma fogueira numa das torres para derreter chumbo, tentar impedir a invasão da malta e salvar sua amada, sem sucesso.

Notre-Dame sempre representou, para a França, o elo entre arquitetura, religião, história e política. Símbolo nacional e religioso, foi palco de momentos-chave: a convocação dos primeiros Estados Gerais em 1302, a cerimônia que marcou a aliança da coroas inglesa e francesa em 1430, a reabilitação de Joana D’Arc em 1455, todos os enterros e casamentos da realeza francesa, até a coroação de Napoleão, em 1804. Ou a missa que marcou a libertação da cidade do nazismo em 1944, em que o general De Gaulle quase sofre um atentado.

A nova Notre-Dame vislumbrada por Macron, quando concluída, será um produto do século XXI. Macron enfrenta a maior crise de seu governo, diante do movimento do “coletes amarelos”. Havia marcado para ontem um pronunciamento sobre o resultado do “grande diálogo” nacional promovido para lidar com a crise. Cancelou-o por causa do incêndio. As chamas lhe trouxeram um argumento forte de união nacional, mais forte que qualquer diálogo – ainda que, como a própria carpintaria de Notre-Dame, ele se revele vulnerável.

Helio Gurovitz (via G1)

Nota: Franceses cantando e orando enquanto a catedral de Notre-Dame ardia em chamas...

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