O feminismo deve ser entendido como um conjunto de teorias que, segundo as feministas e intelectuais, dividiram a história do movimento em três momentos: o primeiro refere-se fundamentalmente à conquista do sufrágio feminino, com movimentos preocupados principalmente com o direito da mulher ao voto. O segundo grande movimento diz respeito às ideias e ações associadas com os movimentos de liberação feminina iniciados na segunda metade da década de 1960, que lutaram pela igualdade jurídica e social das mulheres. O terceiro grande momento, iniciado na década de 1990, pode ser considerado uma continuação e uma reação às falhas do segundo movimento.
Vamos somente analisar os movimentos de emancipação feminina que compuseram a primeira onda do feminismo dos séculos 19 e 20, e também destacar a herança religiosa de alguns personagens que protagonizaram o início do feminismo nos EUA.
A primeira onda do feminismo se refere a um período extenso de atividade feminista ocorrido durante o século 19 e início do século 20, no Reino Unido e nos EUA, que tinha o foco originalmente na promoção da igualdade nos direitos contratuais e de propriedade para homens e mulheres, e na oposição de casamentos arranjados e da propriedade de mulheres casadas (e seus filhos) por seus maridos. No entanto, no fim do século 19, o ativismo passou a se focar principalmente na conquista de poder político, especialmente o direito ao sufrágio por parte das mulheres.
No Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda, as sufragistas fizeram campanha pelo voto da mulher. Em 1918, o Representation of the People Act foi aprovado, concedendo o voto às mulheres acima de 30 anos de idade que possuíssem uma ou mais casas. Em 1928, este direito foi estendido a todas as mulheres acima de vinte e um anos de idade.
Há uma inegável relação entre o desenvolvimento do feminismo e o crescimento do “cristianismo sectário” nos EUA do século 19, sendo os Quakers o grupo igualitarista mais representativo dentre os protestantes. Os Quakers são um movimento religioso de tradição protestante fundado pelo inglês George Fox em 1652. Destacaram-se como pacifistas, abolicionistas e igualitaristas de gênero. Lideraram e se envolveram em movimentos contra o tráfico de escravos e a escravidão, pela reforma das prisões, pela abolição da pena de morte e contra as guerras entre nações. Para os Quakers, a dominação masculina era uma manifestação do pecado, e a igualdade entre homens e mulheres restaurada em Cristo, que ordenou que homens e mulheres fossem anunciadores proféticos do evangelho.
Nos EUA, líderes deste movimento incluíram mulheres que haviam todas lutado pela abolição da escravidão antes de defender o direito das mulheres ao voto; todas eram influenciadas profundamente pelo pensamento Quaker, fruto de esforços e ideias cristãs. Vejamos uma lista de algumas das pioneiras mais importantes do movimento:
- Susan Brown Anthony, um dos nomes mais importantes da primeira onda do feminismo, era uma cristã Quaker. Foi presa por votar em 1872, quando não era permitido, e em 1890 organizou em Washington a primeira convenção para o voto feminino. Sua atuação foi tão destacada que a emenda permitindo o voto feminino nos Estados Unidos recebeu seu nome: Emenda Anthony.
- Sojourner Truth, ex-escrava, abolicionista e pregadora cristã. Após fugir do seu dono com a filha bebê em 1826, e deixar para trás os outros quatro filhos, ela viveu durante algum tempo com uma família Quaker que lhe deu a única educação que recebeu na vida. Foram eles que também a ajudaram a recuperar um dos seus filhos. Posteriormente ela se converteu ao cristianismo e viajou pelo país para ajudar nas causas abolicionistas e promover os direitos das mulheres.
- Abigail Quincy Smith Adams, primeira dama dos EUA (foi esposa do presidente John Adams), era de família Quaker, filha de um ministro Quaker, que posteriormente tornou-se cristã unitariana. Em 1776, através de cartas, ela pressionou seu marido, congressista na época, para a criação de leis igualitárias que beneficiassem as mulheres. Apesar de não terem dado resultado, essas cartas são um dos primeiros documentos conhecidos pedindo direitos iguais para as mulheres.
- As irmãs Sarah e Angelina Grimké foram uma das primeiras mulheres americanas a defenderem a abolição da escravatura e os direitos das mulheres no século 19, e o igualitarismo cristão Quaker foi um fator motivador essencial para elas. O livro de Sarah, Letters on the Equality of the Sexes and the Condition of Woman, publicado em 1838, foi a primeira argumentação pública de grande alcance em favor dos direitos das mulheres.
- Harriet Bishop, importante sufragista, foi missionária e professora batista.
- Lucy Stone, sufragista e defensora dos direitos femininos, era cristã fortemente influenciada pelo pensamento igualitário. Fez seu primeiro discurso feminista no púlpito da Igreja Evangélica Congregacional em 1847.
- Elizabeth Cady Stanton, uma das mulheres mais importantes da primeira onda do feminismo, era da Igreja Episcopal.
- Anna Elizabeth Dickinson, quaker, republicana, abolicionista, sufragista, foi a primeira mulher a fazer discurso político no congresso americano.
- Lucretia Mott, grande ícone do feminismo americano, era ministra Quaker ordenada (pastora).
- Outros nomes: Amélia Bloomer (episcopal), Alice Paul (quaker), Isabella Ford (quaker), Elise Boulding (quaker).
Elizabeth Cady Stanton, Amelia Bloomer, Sojourner Truth, e Harriet Ross Tubman estão no calendário de santos da Igreja Episcopal. Sim, uma igreja dedica um dia no ano (20 de junho) para homenagear como santas, pioneiras do movimento feminista.
O cristianismo dessas mulheres não é coincidência e nem um detalhe insignificante. Muitas delas agiram movidas exatamente por princípios cristãos.
Muitas mulheres sufragistas dos EUA faziam parte do grupo cristão protestante Woman's Christian Temperance Union, a primeira grande agremiação de mulheres a promover esforços organizados em prol de reformas sociais nos EUA. Esse grupo foi a maior e mais influente associação de mulheres que existira até então. A organização do grupo e a mobilização de mulheres em torno de causas sociais contribuíram para o maior envolvimento feminino na política. Ellen G. White tinha uma visão positiva do ativismo desse grupo, e escreveu algumas cartas recomendando cooperação. Vejamos alguns trechos destas cartas:
"A União de Temperança das Mulheres Cristãs é uma organização com cujos esforços para disseminação dos princípios de temperança, podemos unir-nos de boa vontade. Foi-me mostrado que não nos devemos manter afastados delas mas, conquanto não deva haver sacrifício de princípios de nossa parte, devemos o quanto possível unir-nos com elas no trabalho de reforma de temperança. [...] Foi-me mostrado que não devemos esquivar-nos às obreiras da U.T.M.C. Unindo-nos com elas em favor da abstinência total, não mudamos nossa atitude quanto à observância do sétimo dia, e podemos mostrar nossa apreciação pela atitude delas relativamente à questão da temperança. Abrindo a porta, e convidando-as a se unirem conosco no assunto da temperança, granjeamos assim sua cooperação nesse sentido; e elas, unindo-se a nós, ouvirão novas verdades que o Espírito Santo está esperando para gravar nos corações. [...] Tenho tido algumas oportunidades de ver a grande vantagem a ser obtida mediante nossa ligação com as obreiras da U.T.M.C., e ficado muito surpreendida ao ver a indiferença de muitos de nossos dirigentes para com essa organização. Convido meus irmãos a despertarem" (Temperança, p. 222-223).
"Devemos procurar ganhar a confiança das obreiras da U.F.T.C., harmonizando-nos com elas quanto possível. Este povo tem sido rico em boas obras." (Manuscrito 91, 1907)
Portanto, se faz necessário destacar claramente o background religioso do movimento feminista e reivindicar a legitimidade de sua importância histórica. Muitos precisam saber que houve influência do cristianismo no início dos movimentos pelos direitos das mulheres.
Leia também o excelente artigo Cristianismo e Feminismo podem coexistir? de Vanessa Raquel Meira, que analisa mais profundamente este tema.
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