terça-feira, 27 de outubro de 2020

Os adventistas e a dignidade humana

"Promovendo a liberdade religiosa, a vida familiar, a educação, a saúde e a ajuda mútua, e atendendo às necessidades humanas, os adventistas do sétimo dia afirmam a dignidade da pessoa humana criada à imagem de Deus".
1 - Trecho extraído da declaração feita pela Associação Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, no dia 17 de novembro de 1998, por ocasião do 50o aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Por que, como igreja, cremos na dignidade de todo ser humano e a proclamamos ao mundo? Por que o direito de cada homem e mulher à igualdade, saúde, liberdade, oportunidades pessoais e vocacionais, expressão e culto, independentemente de raça, religião, nacionalidade, idioma, cor ou tribo, é tão fundamental à visão e missão da igreja? A resposta é simples. Nossa missão em prol da dignidade humana não deriva de política, educação, sociologia ou psicologia. Ele está enraizado no compromisso de fé que temos com nosso Deus Criador.
Assim sendo, quando falamos em dignidade humana, temos de começar com o relacionamento Deus-homem e isso envolve profundas implicações teológicas e relacionais. Tal consideração leva em conta a realidade da Criação, a cruz, o Espírito Santo, a lei moral e o discipulado.

Criação e dignidade humana

O conceito adventista de dignidade humana teve sua origem na própria mente de Deus, quando Ele, em Sua infinita sabedoria, tornou a humanidade a coroa de Seu processo criativo. Quando o Criador disse: "Façamos o homem à Nossa imagem" (Gênesis 1:26),2 estava compartilhando com os seres humanos algo de Sua singularidade. O ser humano não é mera criatura. Seu lugar na criação é absolutamente singular. Foi-lhe atribuído o domínio "sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra". Foi-lhe concedida a faculdade de pensar, escolher, ser criativo e desfrutar parceria com Deus por meio de comunhão e mordomia.
Todas as demais criaturas são também "seres viventes", mas os seres humanos devem refletir a imagem de Deus e ser cumpridores da Sua vontade. Adão recebeu uma missão: gerenciar o planeta Terra. A diferença entre o conceito bíblico e as antigas tradições ou a teoria da evolução é imensa. Não somos o produto acidental de um longo e sinuoso processo evolucionário, nem a ação arbitrária de uma divindade lunática. Somos fruto do amor de Deus e parte de Seu desígnio universal. Somos chamados a ser os principais protagonistas de um extraordinário destino. Portanto, quando lidamos com seres humanos, estamos lidando com o seu Criador. É esse parentesco divino que fundamenta o conceito adventista de dignidade humana.

A cruz e a dignidade humana

O segundo fator que reforça a âncora teológica da dignidade humana, como defendido pelos adventistas, é que Deus não abandonou a raça humana à morte e destruição, mesmo após ter ela se rebelado contra a Sua vontade. Quando Adão e Eva pecaram no Jardim do Éden, revoltaram-se contra a manifesta vontade divina e se tornaram merecedores de morte. Mas Deus preferiu enfrentar o pecado de uma forma diferente. Rebeldes como fossem, Adão, Eva e seus descendentes eram ainda Sua criação, e Deus preferiu enfrentar a rebelião com redenção, a morte com vida, o ódio com amor. "Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo o que nEle crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (João 3:16). Embora sejamos pecadores e a despeito de quão longe tenhamos ido, ainda somos a preciosa propriedade de Deus. Ele nos dotou de certa dignidade. Não obstante seja firme propósito de Satanás destruir essa dignidade mediante o pecado e seus vários meios enganosos, Deus, mediante Seu Filho Jesus, revelou quão valiosos somos à Sua vista. Tanto assim que Jesus morreu na cruz por nossos pecados. Por isso, a cruz se torna a afirmação perdurável de que todo ser humano é uma pessoa de imenso valor e dignidade. De fato, Jesus de tal modo Se identificou com a humanidade, que aquilo que fazemos a uma pessoa equivale a tê-lo feito ao próprio Cristo. "Em verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes Meus pequeninos irmãos, a Mim o fizestes" (Mateus 25:40). Portanto, toda vez que alguém sofre abuso, tortura ou humilhação, Cristo é atingido. A criatura de Deus, motivo da redenção provida por Cristo, nunca deve ser tratada como um objeto comum a ser manipulado, mas como uma joia insubstituível.

A dignidade humana e o templo do Espírito Santo

Se os atos criativos e redentores de Deus propiciam o fundamento para o nosso conceito de dignidade humana, essa concepção é ainda elevada a maiores alturas pela proclamação bíblica de que somos o templo do Espírito Santo. "Não sabeis que sois santuário de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o santuário de Deus, que sois vós, é sagrado" (I Coríntios 3:16 e 17). E novamente: "Acaso não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo que está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por preço" (6:19 e 20).
Declarar que somos o templo de Deus e que nosso corpo é o lugar de habitação do Espírito Santo, é atribuir a mais elevada dignidade possível ao ser humano. Mesmo um descrente não ousaria pensar em cometer sacrilégio contra um local de adoração. Como, pois, podemos insultar nossos semelhantes, seres criados à imagem de Deus e templos em potencial do Espírito Santo? Ninguém é demasiado insignificante, pobre e indigno para ser tratado com desrespeito. E isso não é tudo. Nossa doutrina de dignidade humana chega ao ponto de requerer que tratemos nossa mente e nosso corpo com o maior cuidado, e que não permitamos estejam eles sujeitos a abuso ou maus-tratos de qualquer espécie. Assim, o apelo adventista em prol da dignidade humana procede da nossa atitude com relação a nós mesmos, para envolver toda a humanidade em escala global.

A dignidade humana e os mandamentos de Deus

Os Dez Mandamentos podem ser chamados de a primeira declaração de direitos humanos. A violação de um deles afeta diretamente a qualidade de vida, paz e dignidade humanas. Jesus sumariou os Dez Mandamentos em poucas palavras: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento... Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Mateus 22:37). Os primeiros quatro mandamentos tratam da nossa aliança com Deus, que é a origem de nossos direitos. Os últimos seis definem nosso relacionamento uns com os outros como seres humanos. Conquanto Deus permaneça como o supremo ponto de referência e definidor de nossa atitude para com outros, é nas especificações da segunda parte da lei moral que temos as relações humanas codificadas. Você acha que alguém, tendo sua bússola moral calibrada pelos Dez Mandamentos, possa mentir, matar ou manifestar desprezo e desrespeito para com seu próximo? Esse relacionamento conceitual entre a lei moral e a dignidade humana foi ampliado ainda mais por Jesus no Sermão da Montanha. Um exemplo basta: Jesus definiu o assassinato não simplesmente como o ato de tirar a vida de alguém, mas até ofato de desprezar e chamar um semelhante de louco (ver Mateus 5:21 e 22). Daí a ênfase adventista sobre a lei moral e a incorporação do amor puro e ilimitado para o qual ela aponta, constituir-se o firme e inabalável fundamento de nossa defesa da dignidade e dos direitos humanos.

Dignidade humana: Implicações no discipulado

Para os adventistas do sétimo dia, a dignidade humana não deve aparecer como algo distante e inatingível. Isolar as crenças da prática tem sido uma contínua tentação em nossa vida religiosa, e isso não se mostra mais real do que na arena das relações humanas. Quando Deus nos ordena amá-Lo com todo o nosso ser e aos nossos semelhantes como a nós mesmos, está apelando a um retorno à meta da vida como planejada originalmente por Ele. O centro da vida é o relacionamento bom e apropriado, tanto com Deus quanto com os seres humanos. O profeta Isaías declara quão inseparáveis são: "Porventura não é também este o jejum que escolhi, que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres os oprimidos e despedaces todo jugo? Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desabrigados, e se vires o nu, o cubras, e não te escondas do teu semelhante?" (Isaías 58:6 e 7.)
A religião, portanto, é mais do que uma rotina formal. É mais do que belas frases, comoventes orações, hinos inspiradores ou reuniões movimentadas num templo elegante e confortável. Não se trata de um catálogo de doutrinas, a despeito de quão importantes elas sejam. É vida real! Como declara Tiago: "A religião pura e sem mácula para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo" (Tiago 1:27). Em outras palavras, não pode haver verdadeira experiência religiosa sem respeito pela dignidade humana.
Isso explica por que os adventistas, desde o início de sua história, têm-se comprometido em defender o valor de todo ser humano. Desde o princípio foi adotada uma firme posição contra toda forma de injustiça social. Ellen White escreveu: "A escravidão, o sistema de castas, os preconceitos raciais, a opressão dos pobres, a negligência dos desventurados -- isso tudo é estabelecido como anticristão e uma séria ameaça ao bem-estar da humanidade, e como males apontados por Cristo que a Sua igreja tem o dever de vencer".3
E também: "O Senhor requer que reconheçamos os direitos de todos os homens. Os direitos sociais dos homens, e seus direitos como cristãos, devem ser tomados em consideração. Todos têm de ser tratados fina e delicadamente, como filhos e filhas de Deus".4
Como resultado, nossa igreja desenvolveu um ministério de restauração e respeito pela dignidade humana. Mediante um sistema global de igrejas, escolas, hospitais, serviços comunitários e a Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA), os adventistas difundem a mensagem de preocupação e cuidado para com toda a humanidade em 203 dentre 208 países reconhecidos pelas Nações Unidas. Entre as igrejas cristãs, assumimos um papel de liderança na promoção da liberdade religiosa para todos. Através da pena e da voz, de missão e ministério, não somente suscitamos mais tentamos oferecer uma resposta significativa a perguntas como: De que forma estamos defendendo e promovendo os direitos humanos? Que deve ser feito quanto às várias formas de discriminação em diferentes países? Como nos relacionamos com políticas que tratam de guerra e terror? Que dizer de sistemas e estruturas políticas que podem afetar a vida das pessoas, gerar fome, refugiados e campos de concentração? Como devemos reagir à tragédia humana da AIDS? Que dizer da exploração do trabalho infantil, da escravidão e da condição da mulher?
Não pretendemos ter todas as respostas ou soluções eficazes para todos os problemas. Mas levantar tais indagações e agir em cooperação com outras agências na promoção dos valores humanos são, por si só, tarefas necessárias. Não podemos de forma alguma dar-nos ao luxo de permanecer em silencio no que se refere à violação do ser humano.

Margem alguma para o silêncio

Em 1988, Zdravko Plantak publicou um livro corajoso sobre nossa igreja e os direitos humanos. O título por si só é eloquente: The Silent Church [A Igreja Silenciosa]. Ele escreveu: "Os adventistas precisam começar a envolver-se (no mundo) porque o seu Deus Se interessa nisso e deseja que eles cuidem uns dos outros. Identificar-se com Jesus significa identificar-se com pobres, oprimidos e aqueles a quem têm sido negados os direitos e liberdades básicos. Não é suficiente cuidar da pessoa e deixar de preocupar-se com as leis que afetam a vida dela na sociedade".5
Os pioneiros adventistas entendiam isso perfeitamente. Ellen White pode não ter promovido uma melhoria das condições dos escravos, mas condenou a escravidão em termos bem vigorosos: "A instituição da escravatura... permite [o homem] exercer sobre seu semelhante um poder que Deus nunca lhe conferiu, e que pertence somente ao Senhor".6Ela prosseguiu condenando a política escravagista como "um insulto a Jeová".7
Tiago White escreveu que o cristão "tem realmente tanto interesse neste velho mundo quanto qualquer outro homem. Aqui ele deve permanecer e fazer sua parte até que o Príncipe da Paz venha para reinar".8
Essa visão dos pioneiros, de que o cristão deve ir além da metodologia tradicional de assistência social, até os problemas da dignidade e valor humanos, refletiu-se na resolução da Associação Geral de 1865: "Resolvido que, a nosso ver, o ato de votar quando exercido em benefício da justiça, humanidade e direito, é em si mesmo correto e pode às vezes ser altamente apropriado; mas a admissão de tais crimes como intemperança, insurreição e escravidão, consideramos como altamente condenáveis à vista do Céu".9
Essa resolução apelava à promoção e defesa da dignidade humana mediante "o ato de votar" para mudar a lei. Contudo, os pioneiros estabeleceram um limite: "Mas devemos reprovar qualquer participação no espírito de disputa partidária".10

A dignidade humana: Um valor central

Assim, para os adventistas, a dignidade humana é um valor essencial. Não devemos apoiar de modo algum uma política ou atitude que negue a dignidade de qualquer segmento da humanidade. Como igreja, devemos ser prudentes e sábios ao falarmos oficialmente, mas ser uma igreja silenciosa sobre questões vitais é envergonhar-se de Jesus, nosso Salvador e de Deus, nosso Criador. Como membros da igreja, não devemos tomar parte em nenhum empreendimento que transforme alguém feito à imagem de Deus em uma coisa ou objeto. A questão não tem a ver somente com coerência, mas também com testemunho. Nunca devemos nos esquecer de que somos embaixadores do reino de Deus na Terra, e arautos de uma nova criação que restaura e estabelece para sempre a dignidade humana. Só então, "romperá a tua luz como a alva, a tua cura brotará sem detença, a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do Senhor será a tua retaguarda" (Isaías 58:8).
John Graz (via Diálogo Universitário)

Notas e referências:

  1. Declarações de Igreja, 1a. ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2003), p. 59.
  2. Todas as referências bíblicas deste artigo foram extraídas da Versão Almeida revista e atualizada no Brasil.
  3. Ellen G. White, Life Sketches of Ellen G. White (Mountain View, Calif.: Pacific Press Publ. Assn., 1943), p. 473.
  4. __________, Obreiros Evangélicos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1993), p. 123.
  5. Zdravko Plantak, The Silent Church (Nova York: St. Martin's Press, Inc., 1998), p. 48.
  6. Ellen White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2000), vol. 1, p. 358.
  7. Ver Douglas Morgan, Adventists and the American Republic (Knoxville: The University of Tennessee Press, 2001), p. 31.
  8. Tiago White, citado por Morgan, p. 34.
  9. "Report on the Third Annual Session of the General Conference", p. 197; citado por Morgan, pp. 36 e 37.
  10. Ibidem.

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