quarta-feira, 14 de junho de 2023

MÁRTIRES

O significado bíblico de martírio tem sua raiz no substantivo grego martys, “testemunha”. Outras formas do termo são o verbo martyreo, “dar testemunho”, e o substantivo martyria que denota o conteúdo do testemunho dado.

No Novo Testamento, martys designa uma testemunha (Mateus 18:16; Lucas 24:48; Atos 1:8), que pode ou não morrer por aquele testemunho (Atos 22:20; Apocalipse 2:13; 17:6). A igreja primitiva reconhecia tanto mártires vivos quanto mortos, acrescentando assim uma segunda dimensão à definição de mártir. Apocalipse 12:10 descreve como mártires aqueles que “conquistaram” Satanás “por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho (martyria) que deram, e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida”. A atitude de “não amar a própria vida” ecoa as palavras de Jesus: “Se alguém vem a Mim, e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser Meu discípulo” (Lucas 14:26). Assim o Novo Testamento descreve como mártires pessoas para as quais testemunhar do poder de Jesus era a primeira prioridade — mesmo com risco de vida.

O significado de martys como testemunha gradualmente transformou-se no significado de alguém que morreu pelo testemunho dado. Daí a definição: mártires cristãos são crentes em Cristo que perdem a vida prematuramente, em situações de testemunho, como resultado de hostilidade humana.

Na igreja primitiva, a morte era muitas vezes o resultado do testemunho. Dos 11 discípulos, todos — menos João — tiveram a morte de mártir. João também foi tratado como mártir. O Imperador Domiciano ordenou que ele fosse atirado num caldeirão de óleo fervendo. Algo não funcionou, contudo. O corpo de João não reagiu à imersão em óleo quente como as leis da física indicavam que reagisse. Frustrado, o imperador baniu-o para Patmos — “por causa da palavra de Deus e do testemunho [martyria] de Jesus” (Apocalipse 1:9).

Assim a definição do Novo Testamento enfatiza a qualidade da devoção absoluta de um cristão aos reclamos de Jesus. Desta definição podemos aprender muito sobre martírio, não somente daqueles que morreram como testemunhas, mas também daqueles que estavam dispostos a morrer, mas que, como João em seu batismo de óleo, sobreviveram — não por ceder às exigências dos perseguidores, mas por alguma forma de proteção ou intervenção divina.

Jesus e os mártires cristãos
Muitos textos do Novo Testamento descrevem a conexão íntima entre os sofrimentos de Cristo e os de crentes nEle. Martys com seus cognatos é aplicado não somente a crentes que testemunham a favor de Jesus, mas a Jesus mesmo. Apocalipse 1:5 chama Jesus “a fiel testemunha [martys], o primogênito dos mortos” (ver também Apocalipse 3:14). Os cristãos primitivos consideravam a morte de Jesus como um martírio. Em 1 Timóteo 6:12 e 13, Paulo exorta seu jovem discípulo a ser uma testemunha fiel (martys), não importando as consequências, justamente como Jesus tinha sido. Timóteo foi de fato martirizado em 97 d.C., depois de ter corajosamente denunciado as festividades orgíacas da deusa Diana em Éfeso.

Esta conexão entre o martírio de Jesus e o martírio de crentes fornece três significados vitais: 

- O martírio constitui uma representação dramática da cruz, “levantando” (João 12:32) e “expondo” (Gálatas 3:1) a um novo público o sofrimento e morte de Jesus. Cristo é crucificado novamente na perseguição ao Seu povo. Assim os cristãos, por seu sofrimento, testemunham da eficácia do sacrifício de Cristo a um novo público. 

- O martírio é um dos exemplos mais completos de discipulado. Paulo louvou os cristãos de Tessalônica por se tornarem “imitadores nossos e do Senhor”, ao receberem a palavra “em meio de muita tribulação” (1 Tessalonicenses 1:6). Pedro, que negou ter conhecido a Jesus, mais tarde chegou a uma compreensão diferente. “Amados”, escreveu ele aos cristãos perseguidos, “não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos estivesse acontecendo; pelo contrário, alegrai-vos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de Cristo, para que também na revelação de sua glória vos alegreis exultando” (1 Pedro 4:12, 13).

- O martírio desmascara o poder destrutivo do mal satânico num mundo aparentemente civilizado sob outros aspectos. Satanás esconde tão bem seu verdadeiro caráter e métodos que quando o martírio ocorre, nos inclinamos a culpar o sistema político totalitário, uma religião rival intolerante ou um indivíduo perverso, perdendo de vista que nosso verdadeiro adversário não é outro senão Satanás mesmo (ver Efésios 6:12). Este reconhecimento de que o verdadeiro inimigo é Satanás devia levar-nos a mostrar aos perseguidores o amor de Cristo por eles e sua necessidade de salvação mediante o evangelho.

O significado mais profundo de martírio e perseguição
Para muitos cristãos modernos, o martírio parece uma anomalia cruel e injusta. Não veio Cristo trazer vida mais abundante (João 10:10)? Então como pode o martírio ser parte do propósito de Deus, e ainda “benéfico” para os cristãos? Paulo, entretanto, via o martírio como uma participação nos sofrimentos de Cristo para o benefício da igreja. “Agora me regozijo nos meus sofrimentos”, diz ele, porque “preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor de seu corpo, que é a igreja” (Colossenses 1:24). 

O Novo Testamento revela diversas maneiras através das quais o martírio e a perseguição beneficiam a igreja:

- Embora o Novo Testamento ensine que os crentes podem “saber” que têm vida eterna (1 João 5:13) e que os crentes têm em si mesmos o testemunho do Espírito (Romanos 8:16), a realidade do combate da fé é que frequentemente “nosso coração nos acusa” (1 João 3:20), privando-nos de segurança absoluta. Tanto Jesus (Mateus 7:21-23) como Paulo (1 Coríntios 13:3) advertem do perigo de um serviço religioso ou martírio falsamente motivado, e portanto sem valor. Não obstante, as promessas mais fortes de salvação no Novo Testamento são aquelas que se aplicam mais diretamente a testemunhas perseguidas. “Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus” (Mateus 5:12). “Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida” (Apocalipse 2:10).

- O martírio frequentemente leva a novas conversões. “O sangue dos cristãos é semente” da igreja, escreveu Tertuliano, um antigo apologista cristão. Quão verdadeiro tem sido isso! Na morte de um mártir cristão, Jesus é elevado, e as pessoas são atraídas a Ele. A perseguição frequentemente resulta em dispersar as testemunhas, de modo que a semente do evangelho é espalhada mais amplamente. Começando com a igreja apostólica (Atos 8:1, 4-6) até nossos dias, a história é testemunha de que a perseguição tem levado a conversões notáveis, pregação poderosa e o estabelecimento de novas igrejas. 

- A perseguição purifica a igreja, eliminando os insinceros e hipócritas.

- A perseguição unifica a igreja. A ação reflexa da sacudidura e do peneiramento que purificam a igreja, é que os fiéis que permanecem são levados mais perto uns dos outros e de seu Redentor pelos próprios sofrimentos que suportavam.

- Perseverança em meio à perseguição fortalece a outros com menos poder de suportá-la. Deus muitas vezes usou cristãos mais fortes para fortalecer a outros. 

- Mediante provas e perseguição a glória — o caráter — de Deus se revela em Seus escolhidos. 

- Na morte de uma testemunha fiel, Satanás é derrotado, embora para olhos limitados por esta terra o mártir pareça morrer sozinho, sem amigos e abandonado. A morte coloca o vencedor eternamente além do alcance do maligno. O fato de que um dos grandes objetivos do testemunho é a derrota de Satanás, lembra-nos que perseguição e martírio só podem ser compreendidos adequadamente do ponto de vista da grande controvérsia entre Cristo e Satanás. Testemunhar de Jesus e de Seu caráter é o ponto focal desta controvérsia.

O valor dos mártires
Desde o início, os seguidores de Cristo sofreram humilhação, sofrimento e perseguição. Procurando prepará-los, Jesus advertiu: "Se o mundo odeia vocês, saibam que, antes de odiar vocês, odiou a mim. Se vocês fossem do mundo, o mundo amaria o que era seu; mas vocês não são do mundo... o mundo odeia vocês. Lembrem-se da palavra que eu disse a vocês: O servo não é maior do que seu senhor. Se perseguiram a mim, também perseguirão vocês; se guardaram a minha palavra, também guardarão a de vocês" (João 15:18-20).

Por algum tempo, os seguidores de Cristo passaram por sofrimentos terríveis. Eles foram despojados de seus bens e expulsos de suas casas. Isto foi seguido por severa perseguição, começando sob Nero, na época do martírio de Paulo, e continuou por séculos.

Ellen G. White diz: “Os cristãos eram falsamente acusados dos mais hediondos crimes e tidos como a causa das grandes calamidades… Tornando-se eles objeto do ódio e suspeita popular, prontificaram-se denunciantes, por amor ao ganho, a trair os inocentes. Eram condenados como rebeldes ao império, como inimigos da religião e peste da sociedade. Grande número deles eram lançados às feras ou queimados vivos nos anfiteatros. Alguns eram crucificados, outros cobertos com peles de animais bravios e lançados à arena para serem despedaçados pelos cães. De seu sofrimento muitas vezes se fazia a principal diversão nas festas públicas. Vastas multidões reuniam-se para gozar do espetáculo e saudavam os transes de sua agonia com riso e aplauso" (O Grande Conflito, p. 40).

No entanto, apesar desta intensa perseguição, o número de cristãos aumentou continuamente. Visto que Satanás não estava conseguindo exterminar os seguidores de Cristo por meio de brutal perseguição, tentou uma abordagem diferente e mais enganosa. Ellen G. White escreve: "Se os seguidores de Cristo pudessem ser enganados e levados a desagradar a Deus, falhariam então sua força, poder e firmeza, e eles cairiam como presa fácil. Cessou a perseguição, e em seu lugar foi posta a perigosa sedução da prosperidade temporal e honra mundana. Levavam-se idólatras a receber parte da fé cristã, enquanto rejeitavam outras verdades essenciais. Professavam aceitar a Jesus como o Filho de Deus e crer em Sua morte e ressurreição; mas não tinham a convicção do pecado e não sentiam necessidade de arrependimento ou de uma mudança de coração" (Idem, p. 42).

E foi assim que o compromisso entrou na Igreja; e com o compromisso veio a corrupção: "Enganos e abominações que se disfarçavam sob as vestes sacerdotais e se introduziram na igreja. A Escritura Sagrada não era aceita como a norma de fé. A doutrina da liberdade religiosa era chamada heresia, sendo odiados" (Idem, p. 45).

No entanto, Deus ainda tinha aqueles que não transigiriam em nenhuma circunstância. Embora ridicularizados e marginalizados por sua fidelidade, esses primeiros cristãos permaneceram firmes nos ensinamentos de Cristo e de Seus discípulos.

Comentando sobre a importância da fidelidade hoje, Ellen G. White escreve: "Bom seria à igreja e ao mundo se os princípios que atuavam naquelas almas inabaláveis revivessem no coração do professo povo de Deus. Há alarmante indiferença em relação às doutrinas que são as colunas da fé cristã. Ganha terreno a opinião de que, em última análise, não são de importância vital. Esta degenerescência está fortalecendo as mãos dos agentes de Satanás, de modo que falsas teorias e enganos fatais, que os fiéis dos séculos passados expunham e combatiam com riscos da própria vida, são hoje considerados com favor por milhares que pretendem ser seguidores de Cristo" (Idem, p. 46).

Ilustração: Os Mártires Cristãos (1871) de Gustave Doré

[Com informações de Diálogo e ASN]

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