sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

AINDA ESTAMOS AQUI

O Oscar 2025 acontece neste domingo (2) e pode dar a primeira estatueta dourada para uma produção brasileira. Indicado em três categorias, Melhor Filme, Melhor Atriz (Fernanda Torres) e Melhor Filme Internacional, o filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, é um dos principais títulos celebrados na cerimônia deste ano.

O filme é adaptado do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, e acompanha uma família de classe média do Rio de Janeiro durante a ditadura militar, nos anos 1970. A família vive em paz até que Rubens Paiva (Selton Mello), o marido de Eunice, é levado por militares e desaparece. A história do filme conta como Eunice Paiva enfrenta o estado autoritário em busca de respostas sobre o paradeiro do marido. Ela se tornou uma advogada respeitada no meio, envolvendo-se em lutas sociais e políticas.

O título do filme Ainda Estou Aqui além de fazer referência à luta da personagem Eunice para descobrir a verdade sobre o desaparecimento do marido, também pode ser interpretado como uma forma dela lembrar a si mesma e à família de que, apesar da doença, ela ainda estava ali. Aos 89 anos, Eunice faleceu com demência de Alzheimer, doença que lhe foi diagnosticada aos 72 anos.

A história de Eunice Paiva me fez lembrar do apóstolo Paulo. Em sua carta aos Romanos, ele descreveu um processo através do qual as tribulações humanas são convertidas em fontes de esperança. Ele mesmo experimentou isso em sua vida: “E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações, sabendo que a tribulação produz perseverança, a perseverança produz experiência e a experiência produz esperança. Ora, a esperança não nos deixa decepcionados, porque o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi dado” (Rm 5:3-5).

Ao comentar esse texto em Carta aos Romanos (Fonte Editorial, 2009, p. 245), o teólogo suíço Karl Barth afirmou que “a perspectiva espiritual muda o sinal matemático inscrito na frente da nossa tribulação. O que parece ser mero sofrimento humano transforma-se em obra de Deus. Os empecilhos da vida transformam-se em degraus para a vitória; o derribar dá lugar à nova edificação; a desilusão e o revés aguçam a esperança e o anseio pela volta do Senhor”.

Tomara que as lágrimas nos olhos daqueles que perderam entes queridos, assim como Eunice Paiva, sejam secadas pela esperança de dias melhores, pela esperança de superação da dor e da angústia, pela esperança de reconstrução. Essa resiliência que vem do interior é formidável, mas a que vem de cima é inquebrantável. Deus é nossa fortaleza.

A chave para lidar com a incerteza está em aprender a confiar em Deus, independentemente de quanto possa parecer ruim a situação. Lembre-se de que Deus não permite nada que não possamos suportar (1Co 10:13) e que Ele está cuidando de nós o tempo todo, seja nos guiando em abundância e tranquilidade ou nos ajudando a atravessar os vales mais escuros (Sl 23). Ellen G. White diz: "Nos dias mais sombrios, quando as aparências se mostram mais adversas, tende fé em Deus. Ele está cumprindo Sua vontade, fazendo todo o bem em auxílio de Seu povo. A força dos que O amam e servem será renovada dia após dia. Pode e quer conceder a Seus servos todo o socorro de que carecem. Dar-lhes-á a sabedoria que suas variadas necessidades requerem" (A Ciência do Bom Viver, p. 482).

Para refletirmos, deixo aqui um inspirador texto escrito por um jovem pastor cristão no Zimbabwe, África. Foi encontrado em seu escritório, pouco depois de ele haver sido martirizado por causa de sua fé em Jesus. Está citado no livro O Evangelho Maltrapilho de Brennan Manning, na página 28:
“Sou parte da fraternidade dos que não se envergonham. Tenho o poder do Espírito Santo. A sorte foi lançada. Transpus a linha. A decisão foi tomada. Sou um discípulo dEle. Não olharei para trás, não pararei, não diminuirei o ritmo, não retrocederei e não ficarei parado.

Meu passado está redimido, meu presente faz sentido, e meu futuro está seguro. Já coloquei um basta na vida vulgar, no andar pela vista, nos joelhos frouxos, nos sonhos sem cor, nas imagens sem vida do futuro, no falar mundano, no doar pouco, nos alvos pequenos.

Já não preciso mais de preeminência, de prosperidade, posição, promoções, aplausos ou popularidade. Não tenho de estar certo, de ser o primeiro, de estar por cima, de ser reconhecido, elogiado, considerado ou recompensado. Agora vivo pela fé, me apoio em Sua presença, ando pela paciência, sou edificado pela oração, e trabalho com poder.

Estou decidido, meu passo é rápido, meu alvo é o Céu, minha estrada é estreita, meu caminho é acidentado, meus companheiros são poucos, meu Guia é confiável, e minha missão é clara. Não posso ser comprado, dissuadido, desviado, atraído para outra coisa, impelido a voltar atrás, iludido ou atrasado. Não recuarei em face do sacrifício, não hesitarei em presença do inimigo, não ficarei tentando entrar no poço da popularidade, nem ficarei dando voltas no labirinto da mediocridade.

Não desistirei, não me calarei, não me deterei até ter ido até o fim em permanecer firme, em acumular, em orar, em pagar, em pregar pela causa de Cristo. Sou um discípulo de Jesus. Preciso prosseguir até que Ele venha, doar-me até minhas forças se esgotarem, pregar até que todos saibam, e trabalhar até que Ele me detenha. E, quando Ele vier para os Seus, não terá problemas para me reconhecer. Minha bandeira estará clara!”
O apóstolo Paulo escreveu: “De todos os lados somos pressionados, mas não desanimados; ficamos perplexos, mas não desesperados; somos perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não destruídos” (2Co 4:8, 9). Perseverar é continuar na jornada, não importa o que aconteça.

Ainda estamos aqui. Como povo de Deus, aguardamos a vinda do Senhor nas nuvens do céu, com poder e grande glória. A vitória está garantida aos que não desistirem: “Aquele, porém, que perseverar até o fim será salvo” (Mc 13:13). A espera pode ser difícil e desanimadora. No entanto, Deus quer nos conceder a perseverança dos santos. Ainda estamos aqui, e enquanto esperamos, somos chamados a examinar secretamente nosso coração e, em seguida, pôr as mãos na massa. Sim, Jesus em breve voltará. Sim, Ele está buscando um povo totalmente comprometido com a sua causa. Ainda estamos aqui, mas, enquanto esperamos, que sirvamos a Ele onde estivermos, de todo o coração.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

LIBERDADE DE EXPRESSÃO

“Pensai por conta própria e deixai que os demais desfrutem do direito de fazer o mesmo” (Voltaire).

Um dos pilares da democracia é a liberdade de expressão. Qualquer tipo de censura é contrário ao espírito democrático. Parafraseando Voltaire, ainda que eu não concorde com as ideias de alguém, devo defender o seu sagrado direito de expressá-las. Se impedirmos que as pessoas se expressem livremente, jamais saberemos o que há em seu coração. Sobre isso, Jesus disse:
“Ou fazei a árvore boa e o seu fruto bom, ou fazei a árvore má e o seu fruto mau, pois pelo fruto se conhece a árvore. Raça de víboras, como podeis vós dizer boas coisas, sendo maus? Pois do que está cheio o coração, disso fala a boca. O homem bom tira boas coisas do seu bom tesouro, e o homem mau do mau tesouro tira coisas más. Mas eu vos digo que de toda palavra frívola que os homens proferirem hão de dar conta no dia do juízo” (Mateus 12:33-36).
Liberdade de expressar suas ideias, opiniões, dúvidas, anseios e temores, é condição sine qua non para que o ser humano desfrute de saúde emocional. Entretanto, deve-se tomar cuidado para que tal liberdade não esbarre no bom senso, possibilitando difamar pessoas e instituições, insuflando a sociedade a cometer injustiças. Como disse o escritor e médico americano Oliver Wendell Holmes, "liberdade de expressão não dá direito a alguém de gritar 'Fogo' em um teatro lotado".

A liberdade de expressão, como todo poder, demanda responsabilidade. Não se trata de censura, ou de algum tipo de mordaça, mas de responsabilidade. Quem quer desfrutar de plena liberdade de expressão, tem que estar disposto a arcar com a responsabilidade sobre aquilo que diz e faz. Por isso, Jesus diz que o homem deve dar conta de tudo quanto diz, mesmo que em tom jocoso.

Todo ser humano tem o direito de discordar, questionar, argumentar e defender suas ideias. Ninguém deve ser privado desse direito, nem mesmo no ambiente político ou eclesiástico. Porém, a partir do momento em que sua fala configure crime, deve ser judicialmente implicado, arcando com as suas consequências.

Não se pode, em nome da liberdade de expressão, discriminar, fomentar preconceitos, disseminar ódio, promover práticas nocivas à sociedade ou ao indivíduo, como tortura, pedofilia, racismo, xenofobia, etc. Nem tampouco se pode usar desta liberdade para se locupletar da ingenuidade e da boa fé alheias. O apóstolo Paulo denuncia os que ele chama de “faladores vãos e enganadores”, e diz que “é preciso tapar-lhes a boca, porque arruínam casas inteiras ensinando o que não convém, por pura ganância” (Tito 1:10-11).

Devo concordar com o escritor e filósofo italiano Umberto Eco, um crítico do papel das novas tecnologias no processo de disseminação de informação, ao afirmar que as redes sociais dão o direito à palavra a uma "legião de imbecis" que antes falavam apenas "em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade."

A liberdade de expressão irrestrita, como prevista na Primeira Emenda da Constituição dos EUA, é uma das bandeiras do presidente republicano Donald Trump e as chamadas big techs são tidas como apoiadoras da Casa Branca. Na semana passada, o bilionário Elon Musk, dono do X e chefe do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), teve sua rede social multada em R$8 milhões por desrespeitar decisões do ministro do STF Alexandre de Moraes de retirar do ar conteúdos considerados como desinformação. E na sexta-feira passada, a rede Rumble foi bloqueada em território brasileiro por se recusar a constituir representação legal no país e não cumprir com ordens de excluir páginas de usuários da direita brasileira, como o blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, radicado nos EUA.

O artigo 19 da Declaração dos Direitos Humanos, documento datado de 1948, diz que “todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Já a Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada em 1969 na Costa Rica, vai um pouco mais além e determina, no seu artigo 13, que “o exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores (posteriores), que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas”.

Ou seja, apesar de muitas opiniões divergentes, é impensável falar em censura prévia à liberdade de um ser humano se expressar sobre o que pensa, assim como é igualmente impensável imaginar liberdade de expressão sem qualquer responsabilidade. Dessa maneira, quem se expressa deve estar atento para evitar abusos no desfrute da plenitude de sua liberdade de expressão. 

Portanto, devemos ser defensores da liberdade de expressão, mas também reconhecendo que com grande poder vem grande responsabilidade. Nossa missão é utilizar a liberdade que temos para espalhar o amor, a verdade e a justiça, sempre à luz dos ensinamentos de Cristo. Assim, ao abordarmos temas como a liberdade de expressão, devemos fazê-lo com uma compreensão profunda dos princípios bíblicos, assegurando que nossas palavras e ações reflitam a luz de Cristo em um mundo que muitas vezes se encontra em trevas. 

Ilustração: Armandinho via facebook

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

BELEZA QUE ENGANA

“Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu” (Gênesis 3:6).

Talvez o que mais irrite os consumidores sejam as propagandas enganosas. Você vê o produto na ilustração da caixa ou dentro da embalagem, no comercial da TV ou no anúncio na internet, e se deslumbra. Mas a decepção fica na mesma altura que o estímulo proporcionado pela imagem chamativa. Aposto que não estou sozinho e que você já teve uma experiência chata como essa. Estou errado?

Todavia, é pior quando a beleza e a atratividade podem ser fatais. É o caso de uma flor nativa dos Estados Unidos, conhecida na linguagem popular como Louro-da-Montanha (Kalmia latifolia) que produz delicadas flores brancas e rosadas no fim da primavera, as quais possuem inúmeras manchas que parecem formar padrões geométricos definidos. É uma planta belíssima, mas por baixo daquele exterior simpático bate o coração de um assassino.

A Kalmia latifolia está na lista das plantas mais perigosas aos seres humanos e outros animais. Sua estrutura delicada reserva duas toxinas letais: a andromedotoxina e o alburtin; porém a primeira é a mais tóxica. Na ingestão de pequenas doses da flor, o quadro clínico pode apresentar respiração irregular, salivação abundante, perda da coordenação motora, vômitos, diarreia, fraqueza muscular e convulsões. Já se for em grandes quantias, pode provocar um ataque cardíaco e levar à morte em até seis horas após a ingestão.

Não suficiente, você nem precisa encontrar um Louro-da-Montanha para ter um encontro fatal com esse coquetel de toxinas, pois o mel produzido pelas abelhas que visitaram a Kalmia latifolia contém todas as propriedades tóxicas da própria flor. Os gregos já sabiam desse produto muito antes de Jesus vir à Terra e o chamavam de “mel furioso”; inclusive foi isso que eles usaram para derrotar Xenofonte de Atenas, por volta de 400 a.C.

A beleza dessa espécie de flor engana muito bem. No passado, Satanás propagandeou ao ser humano poderes inescrutáveis com seus discursos empolgantes e omitiu a verdade acerca das coisas. Aliás, ele vive mentindo desde o princípio (João 8:44), tanto que nenhum dos atrativos oferecidos pelo diabo de fato aconteceu. Contrário a isso, a raça humana ficou numa situação muito pior do que quando fazia a vontade do Criador dos céus e da Terra.

Ao ser iniciada a leitura de Gênesis 3, o destaque fica por conta da sagacidade da serpente em seu diálogo com a mulher. O animal em si era inofensivo. Porém, o autor do Gênesis descreve a malignidade do diabo ao se apossar de uma criatura com propósito bem definido: destruir a felicidade da família humana.

Ellen White descreve a serpente desta forma: "A fim de realizar a sua obra sem que fosse percebido, Satanás preferiu fazer uso da serpente como médium, disfarce este bem adaptado ao seu propósito de enganar. A serpente era então uma das mais prudentes e belas criaturas da Terra. Tinha asas, e enquanto voava pelos ares apresentava uma aparência de brilho deslumbrante, tendo a cor e o brilho de ouro polido" (A Verdade sobre os Anjos, p. 53).

Por ocasião do lançamento do filme A Paixão de Cristo, Mel Gibson esteve presente a uma grande concentração de pastores na cidade de Chicago. Perguntaram-lhe por que tinha colocado uma mulher com véu para representar o mal. “O mal toma a forma de beleza, é quase bonito... ele se disfarça e se mascara, mas se as antenas de vocês estiverem ligadas, vão identificá-lo.”

Ellen White assim descreve o disfarce do mal: "Com palavras suaves e melodiosas, e com voz musical, [Satanás] dirigiu-se à maravilhada Eva. Ela se sobressaltou ao ouvir uma serpente falar. Esta exaltava a beleza e excessivo encanto [da mulher], o que não desagradou a Eva. Eva sentiu-se encantada, lisonjeada, bajulada" (A Verdade sobre os Anjos, p. 53).

Depois de atender à voz da serpente e comer do fruto proibido, o ser humano trouxe para si consequências irreversíveis, dentre as quais a pior é a morte. O custo da desobediência a Deus foi letal, pois o pecado, antes prazeroso, trouxe consigo o dano da morte (Romanos 6:23).

Ellen White afirma: "Adão e Eva persuadiram-se de que, de questão tão insignificante como fosse comer do fruto proibido, não poderiam resultar tão terríveis consequências como as de que Deus os avisara. Mas essa questão insignificante constituía uma transgressão da imutável e santa lei divina, e separou o homem de Deus, abrindo os diques da morte e trazendo sobre o mundo misérias indizíveis. Século após século tem subido da Terra um contínuo grito de lamento, e toda criação geme aflita, em resultado da desobediência do homem. O próprio Céu sentiu os efeitos de sua rebelião contra Deus. O Calvário aí está como um monumento do estupendo sacrifício exigido para expiar a transgressão da lei divina. Não consideremos o pecado coisa trivial" (Caminho a Cristo, p. 33).

Hoje, Satanás tem utilizado as mesmas estratégias do passado para vender um produto podre numa embalagem cativante. Ellen White diz que "o pecado torna-se atrativo pela cobertura de luz de que Satanás o reveste" (Mensagens aos Jovens, p. 237). O pecado pode até parecer atrativo, mas não se esqueça: ele é igualmente mortal! Jesus pagou o preço da falha humana na cruz, e hoje está intercedendo por aqueles que são vítimas da tentação (Hebreus 2:18). Somente Ele pode lhe ajudar a vencer o diabo. Peça apoio lá do Alto para resistir aos apelos do inimigo e inibir para sempre o domínio da morte em sua vida.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

LÚCIFER, REGENTE DO CORO CELESTIAL?

O uso incorreto dos escritos de Ellen White tem dado origem a muitas lendas e mitos adventistas. A maneira como isso ocorre é semelhante à brincadeira do telefone sem fio. Você sabe como é o jogo, a simples frase “Maria foi nadar na piscina” torna-se no fim da roda em “Azarias não jogou nada na latrina”.

Tenho aprendido que o problema não está com certas declarações de Ellen White e sim com a maneira em que seus escritos são lidos, descontextualizados e abusados. Uma das interpretações que tem se tornado quase proverbial em nosso meio é a ideia de que Lúcifer era “regente do coro celeste”. A ideia é baseada na seguinte citação de Ellen White:

“Satanás tinha dirigido o coro celestial. Tinha ferido a primeira nota; então todo o exército angelical havia-se unido a ele, e gloriosos acordes musicais haviam ressoado através do Céu em honra a Deus e Seu amado Filho. Mas agora, em vez de suaves notas musicais, palavras de discórdia e ira caíam aos ouvidos do grande líder rebelde” (História da Redenção, p. 25).

Primeiramente, é importante ressaltar que a revelação bíblica, a luz maior, em nenhum momento retrata Lúcifer como regente do coro celeste. Isso já seria razão suficiente para sermos cautelosos ao fazer afirmações categóricas sobre as atividades de Lúcifer no céu antes de sua queda.

Mas alguns textos bíblicos são usados para provar a ideia de que Satanás era músico; veja Ezequiel 28:13-15:

“Estiveste no Éden, jardim de Deus; cobrias-te de toda pedra preciosa: a cornalina, o topázio, o ônix, a crisólita, o berilo, o jaspe, a safira, a granada, a esmeralda e o ouro. Em ti se faziam os teus tambores e os teus pífaros; no dia em que foste criado foram preparados. Eu te coloquei com o querubim da guarda; estiveste sobre o monte santo de Deus; andaste no meio das pedras afogueadas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que em ti se achou iniquidade.”

A passagem acima faz parte de um juízo proferido sobre o rei de Tiro, portanto, a intenção original de Ezequiel não é tratar de Lúcifer em seu estado não caído e por isso, precisamos respeitar o contexto. Mesmo que haja certos paralelos entre a altivez do rei de Tiro e Lúcifer, a linguagem não trata deles de forma literal. Por exemplo, porque o texto trata de instrumentos musicais, alguns concluem que isso se refere ao dom musical de Lúcifer no céu, enquanto outros até vêem aí uma prova de que havia “tambores” no céu. Mas a linguagem aqui é poética, simbólica e metafórica e o hebraico é de difícil tradução e inconclusivo ao falar de instrumentos, é necessária cautela.

Podemos, no entanto, aplicar os princípios da queda do rei de Tiro como símbolo da queda de Lúcifer, já que há alguns paralelos óbvios, tais como “eras o selo da perfeição, cheio de sabedoria e perfeito em formosura” (v. 12). Mas ao mesmo tempo em que há paralelos, há também disparidades entre os dois personagens que nos impedem de criar um paralelo literal entre cada elemento do texto de Ezequiel com Lúcifer. Assim, tentar literalizar a passagem de Ezequiel nos traz dificuldades já que se Lúcifer era músico e tocava “tambores e pífaros” (v. 13) no céu, então ele também era coberto de jóias preciosas literalmente, se engajou em “comércio” lá (v. 16, 18), profanou os seus próprios “santuários” (v. 18) e Deus o expulsou em direção à “terra” (que supostamente ainda não havia sido criada!) e o expôs perante “reis” (v. 16, 17). O disparate exegético deveria ser óbvio.

Concluir, portanto, que Lúcifer era regente do coro celestial ou até mesmo músico com base nos instrumentos citados na passagem de Ezequiel é forçar o texto bíblico. Isso não quer dizer necessariamente que Lúcifer não era músico no céu, a Bíblia contém muitas cenas de louvor oferecido pelos anjos a Deus. Mas querer precisar que função Lúcifer tinha no céu é ir além da revelação.

O outro texto citado é Jó 38:4-7, que mostra que fala do “coro celestial”:

“Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? ... quando juntas cantavam as estrelas da manhã, e todos os filhos de Deus bradavam de júbilo?”

O texto pode estar se referindo a um coro de anjos cantando nas eras sem fim da eternidade, mas não trata de Lúcifer em específico. Acima de tudo, assim como Ezequiel, o texto de Jó é poético e simbólico.

Pessoalmente, não tenho nenhum problema a priori com a ideia de que Lúcifer possa ter sido "regente do coro celestial", assim como não teria problema com a ideia de que ele possa ter sido compositor, pintor, escultor ou mesmo arquiteto das cortes celestiais. O problema é ter base escriturística para fundamentar tais afirmações.

É interessante notar que a ideia de que Lúcifer tivera posição de líder dos anjos não é original de Ellen White. Esse conceito parece ter se tornado parte da tradição cristã e era ideia comum para alguns autores no tempo de Ellen White.[1] Ela estaria apenas refletindo uma ideia periférica da sua época neste ponto (como fez em muitos outros[2]) para expressar um ponto mais importante sobre a atuação de Lúcifer.

Com esse breve pano de fundo bíblico e histórico, voltemos então à passagem de Ellen White. Uma leitura mais cuidadosa da passagem indica que Ellen White não pretendeu fazer uma declaração sobre a posição de regente musical de Lúcifer. Ela escreveu que “Satanás tinha dirigido o coro celestial. Tinha ferido a primeira nota,” o que expressa uma ação pontiliar num passado distante e não uma ação constante necessariamente. Note que a conclusão que Satanás tinha a posição estabelecida de “regente do coro” não está no texto. Essa nuance é importante para o entendimento da intenção de Ellen White.

Ela claramente não está fazendo uma declaração sobre a função de músico de Lúcifer ou como a música é executada nas cortes celestiais, mas está ressaltando sua posição em relação aos anjos: ele era o anjo mais exaltado, tinha primazia em termos de criação e função.

Lúcifer é retratado aqui como aquele que, dentre os anjos, primeiro sentiu em seu coração o desejo de louvar a Deus, ele iniciou o louvor, feriu a "primeira nota" e os anjos seguiram. Assim, a metáfora da música celestial é usada por Ellen White para criar um forte contraste entre a submissão de Lúcifer a Deus ao alçar louvores a Ele e a rebelião que começava a surgir em seu coração através da discórida e desarmonia. Veja que ela continua dizendo... “mas agora, em vez de suaves notas musicais, palavras de discórdia e ira caíam aos ouvidos do grande líder rebelde.” Aqui Lúcifer abandonara o desejo de louvar a Deus. Dessa forma, a metáfora musical é usada para fins primordialmente homiléticos, para expressar um ponto mais importante, a saber, a exaltação de Lúcifer perante os anjos e sua repentina queda.

O detalhe musical sobre Lúcifer é informação periférica, é como a moldura de um quadro, que se for retirada, não impacta a apreciação da arte. Em outras palavras, Ellen White poderia ter dito, "Lúcifer foi o primeiro anjo a apreciar a beleza do céu, seguido pelos outros anjos. Mas agora, em vez de apreciar a beleza do céu, ele começou a criticar tudo".

O ponto central é o mesmo: Lúcifer foi privilegiado, mas caiu pelo orgulho ou arrogância. O objetivo de Ellen White aqui não é descrever a posição musical de Lúcifer e sim traçar um contraste entre sua posição de fidelidade a Deus e sua subsequente atitude de rebelião.

Além da precariedade do argumento do ponto de vista bíblico e o fato de que Ellen White não disse que Satanás era "regente" do coro celeste, a ideia de que Lúcifer tinha esse função específica também esbarra em problemas lógicos. O primeiro deles é o tamanho do coro celeste; se houvesse mesmo a necessidade de um regente, deveria haver milhares de sub-regentes para um coro de milhares, milhões ou bilhões de anjos, como ocorre com grandes corais aqui. O problema é que a necessidade de um regente nos moldes de um diretor de coral terrestre fere o conceito bíblico de que os anjos são perfeitos em todos os sentidos e superiores ao homem (Salmo 8:5; Heb 2:7). Por quê?

Anjos perfeitos em poder não devem necessitar de um regente que indique o compasso, mudanças de dinâmica, cadência, rallentandos, pianissimos ou mezzo fortes, se é que a música celeste sequer pode ser descrita nos moldes terrestres!

Nem mesmo deve ser necessário que alguém lhes dê a “primeira nota” nos padrões de um regente terrestre, como se os anjos precisassem disso para se manterem no tom. Existem seres humanos que possuem o que chamamos de “ouvido absoluto”, ou seja, não precisam que ninguém lhes toque ao piano ou sopre num diapasão um Dó ou Fá, eles ouvem a nota automaticamente em seu ouvido e cantam no tom. Quanto mais os anjos que foram criados de forma superior ao homem! E até mesmo em nossa esfera decaída, há muito coral profissional por aí que não necessita de regente. Creio que deu para entender os problemas com uma leitura rígida da passagem em questão.

Em conclusão, nosso estudo revela que Ellen White se valeu de certa forma de uma ideia comum em seu tempo, a saber, de que Lúcifer era líder do anjos, inclusive nos louvores, para ilustrar um ponto mais importante, o da sua posição elevada e repentina queda. Também não há nada na passagem que indique que esse conceito fora parte de uma revelação especial a Ellen White.

Se Lúcifer era ou não "regente do coro celestial" é irrelevante, já que ele não caiu de sua elevada posição por rebelião ao governo de Deus em questões musicais. Assim, devemos ler a passagem sobre Lúcifer e o coro celeste mais por sua força retórica sobre a exaltação e subsequente queda de Lúcifer, e não como uma declaração de qual função musical ele exercia no céu ou como é realizada a música celeste

Cabe aqui também uma palavra de exortação. Infelizmente, a intenção de muitos que usam a passagem de Satanás como suposto “regente do coro celeste” é quase sempre demonizar (literalmente) a música sacra contemporânea. Ouvem-se afirmações do tipo “Satanás é músico, temos que ter cuidado com avanços na música adventista.” Assim, cria-se um espantalho ao redor da música adventista para coibir, oprimir e ostracizar músicos. Nossos músicos não têm liberdade para trabalhar porque sempre correm o risco de se tornar culpados por associação com Lúcifer, o músico par excellence, o “regente do coro celeste”.

Com certeza Satanás deve ter um vasto conhecimento da música celeste e bem como da terrestre, mas ele não foi originador da música, Deus o é. Não entreguemos a Satanás algo que pertence a Deus, o dom da música, e não façamos os músicos da Igreja culpados por associação porque um suposto “regente do coro celeste” caiu em rebelião.

E, ironicamente, Satanás sempre alcança seu objetivo de espalhar desarmonia na igreja quando, no afã de evitar o complexo do “regente Lúcifer”, caímos em extremos na questão da música sacra, julgando a intenção dos nossos irmãos, impondo nossas ideias pessoais do que Deus aceita ou não ("Se eu não gosto, Deus não gosta também"), criticando e condenando.

No fim das contas, o maior problema dos músicos e adoradores adventistas não é tanto “musical” e sim “relacional”, seja no relacionamento com Deus ou com nosso próximo, como foi para Lúcifer. Cultive relacionamentos saudáveis na questão da música sacra para não cair no mesmo problema daquele anjo caído.

André Reis (via Adventismo Hoje)

[1] Veja, por exemplo, John Milton, Paradise Lost (Londres: 1674), Livro IV, 600-605; ibid., Livro VII, 130; Daniel Defoe, The Political History of the Devil (1726), p. 49, ibid., The Life and Adventures of Robinson Crusoe (1800), p. 119, Emily Percival, The Token of Friendship (1852), que usa linguagem bem semelhante à de Ellen White: “Lúcifer pode haver sido o líder daquele coro celeste” (p. 26).

[2] Como por exemplo, 6.000 anos para a idade da terra, ideia comum no século 19 hoje questionada por cientistas criacionistas e arqueólogos adventistas. A história da civilização humana tem pouco mais de 6 mil anos, talvez 10 mil. Ellen White nunca procurou estabelecer a idade da terra, ela usou o cômputo para ressaltar um ponto mais importante, a saber, a longa odisséia do pecado na terra.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

JOIO OU TRIGO?

O texto para a mensagem de hoje, está no Evangelho segundo Mateus 13:24-30:
“Outra parábola lhes propôs, dizendo: O reino dos céus é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo; mas, enquanto os homens dormiam, veio o inimigo dele, semeou joio no meio do trigo, e retirou-se. E, quando a erva cresceu e produziu fruto, apareceu também o joio. Então, vindo os servos do dono da casa, lhe disseram: Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Donde vem, pois, o joio? Ele, porém, lhes respondeu: Um inimigo fez isso. Mas os servos lhe perguntaram: Queres que vamos e arranquemos o joio? Não! replicou ele, para que, ao separar o joio, não arranqueis também com ele o trigo. Deixai-os crescer juntos até à colheita, e, no tempo da colheita, direi aos ceifeiros: Ajuntai primeiro o joio, atai-o em feixes para ser queimado; mas trigo, recolhei-o no meu celeiro.”
O primeiro ano do ministério de Jesus nesta terra foi marcado por uma curiosidade extraordinária por parte do povo. Os milagres, as curas, os atos prodigiosos que Jesus fazia, despertavam a admiração do povo e de certa maneira, despertavam também o carinho. O povo seguia ao Senhor Jesus, com muito entusiasmo. Poderíamos dizer que o primeiro ano do Seu ministério nesta Terra foi um ano de popularidade.

No segundo ano, os líderes religiosos daquele tempo se encarregaram de colocar o povo contra o ministério do Senhor Jesus. Os fariseus observavam atentamente o que Ele falava, para depois “torcer” tudo o que Jesus dizia. Queriam acusá-Lo de blasfêmia, de falsidade ideológica, de rebeldia contra a doutrina estabelecida pela Igreja daqueles tempos. Então andavam vigiando o Senhor Jesus, passo a passo, tentando achar um erro nos Seus ensinamentos. É por isso que no terceiro ano de Seu ministério aqui na Terra, Jesus começou a usar, em Seus discursos e ensinamentos, aquilo que chamamos de parábola.

No Sermão da Montanha, pronunciado no início do Seu ministério, o Senhor Jesus disse as coisas de maneira clara, sem rodeios, mas como os inimigos agora tentavam encontrar erros em tudo que Ele dizia, Jesus passou a trabalhar com sabedoria e prudência. Por isso Ele começou a usar as parábolas. Mas o que são as parábolas? São ensinamentos paralelos a uma lição principal. Quando Jesus queria ensinar uma lição básica, Ele usava um ensinamento paralelo tomando figuras, quadros, idéias, maneiras de pensar do povo para que, a partir daquilo que o povo conhecia, Ele pudesse ensinar a verdade que queria fixar na mente das pessoas. É por isso que no último ano do Seu ministério, encontramos muitas parábolas. Uma delas é a parábola do trigo e do joio. A semente boa e a semente má.

Nesta parábola encontramos dois senhores: o proprietário, dono da terra, e o inimigo do proprietário. O proprietário, que simboliza Deus, semeia de dia. Deus sempre apresenta às coisas claras. Com Deus não existe penumbra, nem sombras, nem trevas. O que Ele faz, faz na luz do dia. Com Deus não existe mentira, nem falsidade, nem coisas dúbias. Com Deus, tudo é claro como a luz do dia. E Ele diz: “… a vereda dos justos é como a luz da aurora que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito” (Provérbios 4:18).

O outro personagem da parábola é o inimigo do proprietário. Este, simboliza o diabo. De acordo com a parábola, este semeia à noite. Oculto nas trevas, escondido. Ele é o pai da mentira e o pai da falsidade. Ele anda com rodeios, com meia-verdades. Nunca apresenta uma mensagem clara. Esconde-se é astuto.

Você vê? Dois senhores: Deus trabalhando na luz do dia; e o diabo trabalhando nas trevas da noite. Deus semeando trigo bom; o diabo semeando joio mau. Deus, semeando para colher; o diabo semeando para confundir. O fim também é completamente diferente. O trigo bom é colhido para o celeiro e o joio é jogado ao fogo.

Na interpretação da parábola, o Senhor Jesus diz assim: “O campo é o mundo” (Mateus 13:38).

E sabe? Todos nós habitamos neste mundo. Isto quer dizer que ninguém aqui pode ficar no terreno neutro ou dizer: “Hoje eu não vou me comprometer”. Porque naquele campo, que representa o mundo, só existe trigo e joio. Apenas dois grupos: semente boa ou semente má. Não existe um terceiro grupo, daqueles que estão pensando se serão bons ou serão maus. Somente dois grupos.

O que Deus está tentando nos dizer é que, nós só temos dois caminhos, dois destinos: ou seguimos a Deus, ou seguimos o Seu inimigo. Ficar no terreno neutro, já é seguir o inimigo de Deus. Você se compromete ou não. Você segue ou foge. Você aceita ou rejeita. Essa é uma das lições que a parábola do trigo nos ensina.

Seguindo a parábola, nós percebemos que o inimigo semeia uma planta que é muito parecida com o trigo. As duas plantas, trigo e joio, são tão parecidas, que quando os empregados dizem ao patrão: “… queres que vamos e arranquemos o joio? (o patrão diz:) Não! … deixai-os crescer juntos até a colheita…” (Mateus 13:28-30). Ou seja: “Deixem o trigo e o joio crescerem, porque se nós começarmos a tirar agora o joio corremos o perigo de, tentando tirar a erva má, tirar por aí um trigo bom, deixem que as plantas amadureçam. Um dia, quando a colheita chegar, aí sim, o trigo e o joio terão destinos diferentes.”

Esta é uma lição básica que precisamos aprender. Por mais doloroso que pareça, entre nós há trigo bom, plantado pelo Senhor Jesus. E também há joio plantado pelo inimigo de Jesus. Quem é trigo bom e quem é joio? Isso, ninguém pode saber agora. Por favor, não me digam que podemos saber pelos frutos. Porque os frutos que hoje mostramos, não são provas que determinam quem é “joio” e quem é “trigo”. Hoje, comissão nenhuma de Igreja, pode determinar quem é “trigo” e quem é “joio”. Pastor nenhum pode fazê-lo. Líder nenhum, membro de Igreja nenhum e nenhum cristão pode determinar quem é “trigo” e quem é “joio”. Hoje, com as nossas limitações humanas, não podemos fazê-lo. Mas, uma coisa é verdade: em toda a Igreja hoje há trigo e joio. Mais ainda: entre os líderes da Igreja, hoje, há trigo e joio! Entre os oficiais de igreja local, diáconos, diaconisas, diretores de jovens, há “trigo” e “joio”.

Sabem qual é um dos grandes perigos que corremos hoje? De começar a determinar se a Igreja é a Igreja de Deus ou não, por causa do joio que possamos achar. Deus tem Sua Igreja nesta Terra. O campo também é o reino de Deus porque a semente “são os filhos do reino”. Jesus planta trigo bom, mas o inimigo vem à noite, amparado pelas trevas e planta joio mau. Trigo e joio têm que crescer juntos, dentro do ministério, dentro do magistério, dentro do campo da música e entre os membros da Igreja. Trigo e joio têm que crescer juntos até o dia da vinda de Cristo. Esta é uma lei da vida. Queiramos ou não, aceitemos ou não, esta é uma lei da vida.

Agora vem a pergunta: “Pastor, ninguém pode saber quem é trigo e quem é joio?” Pode sim. Só eu e Deus podemos saber se eu sou o trigo ou joio. Vocês não. Minha esposa não. Meus filhos não. Só Deus e eu sabemos se eu sou trigo ou joio. Só Deus e você sabem se você é trigo ou joio. Eu sou incapaz de olhar para os meus irmãos e dizer: “Este é trigo e este é joio.” Porque nós, seres humanos, podemos ver apenas o que está diante dos nossos olhos. Deus, porém, vê o coração. Eu posso enganar as pessoas, mas eu não posso enganar a Deus e nem posso enganar a mim mesmo. Nas horas de solidão eu sei quem eu sou e não posso enganar a meu Deus.

O plano de Deus é que todos na Sua Igreja sejam trigo e Ele está trabalhando para isso. Ele veio a este mundo para reproduzir, em cada cristão, o Seu caráter maravilhoso. Para fazer-nos crescer e produzir frutos.

E agora, um conselho a muita gente sincera que está entrando na Igreja: se você pensa que vai encontrar um “Clube de Anjinhos” que nunca erra, está enganado. A verdade é que você vai encontrar muita gente sincera, que escolheu e aceitou Jesus; e que apesar das suas imperfeições, está crescendo na experiência cristã. Mas, é verdade também que, você vai encontrar muita gente que somente veste a camisa da religião. O grande erro de muitas pessoas é que quando descobrem na Igreja, uma planta igual ao joio, dizem assim: “Esta não é a Igreja de Deus. Vou embora, aqui todo mundo é hipócrita, é mentiroso. Aqui ninguém vive o que prega. Esta não pode ser a Igreja de Deus.”

Meu amigo, eu levanto a Palavra de Deus, para dizer: “Deus tem uma Igreja nesta Terra”, mas o Seu Reino é semelhante a um campo onde há trigo bom e infelizmente, também há joio. Agora, me diga: há quanto tempo você está fora da Igreja só porque encontrou uma planta semelhante ao joio no meio do campo? Há quanto tempo você anda longe de Deus, sofrendo, se consumindo nas horas de solidão, lutando contra o Espírito de Deus, só porque você encontrou uma planta semelhante ao joio na Igreja? Em que parte da Bíblia você encontra uma Igreja onde todos são “trigos maravilhosos”? Teremos que conviver juntos, sem tentar arrancar o joio.

Estarei falando neste momento para alguém que sentiu-se frustrado pela vida errada de um pastor? Sabe? Nós pastores, somos homens sinceros que, decidimos um dia servir ao Senhor Jesus. Mas tenho que reconhecer que no mundo dos pastores, também há trigo e joio. Esta é uma lei da vida. É isso que a Palavra de Deus diz. Agora, você tem motivo para estar longe de Deus só porque, um dia, um líder da Igreja mentiu pra você? Porque existe racismo dentro da Igreja? Porque um dia você viu preferências por um e desrespeito para com outro?

Um dia, todos nós, líderes e liderados, teremos que dar conta de como administramos a vida. Um dia, finalmente, o trigo será separado para ser guardado no celeiro de Deus e infelizmente, o joio será arrancado para ser queimado no fogo. Sempre peço a Deus que me ajude a ser trigo. Quantas vezes, descubro que sou joio e tenho que cair aos pés de Jesus e dizer: “Senhor, não quero ser joio. Quero ser trigo. Reproduz o Teu caráter na minha vida.”

Ah, querido, gostaria de falar de coração a coração com você. Como tem sido sua vida? Você é alguém que não consegue perdoar ao seu próximo? Alguém o ofendeu, magoou-lhe? Já se passaram anos anos e você não consegue perdoar? Mas, você está na Igreja, cantando, estudando a Bíblia e orando. Por favor, diga-me, para onde você está indo? O que é que você quer? O que você acha da vida? Você é trigo ou joio? Se estou falando para alguém que vive escravizado a algum vício, amarrado a algum pecado que ninguém conhece, ninguém sabe. Mas, você continua na Igreja, cantando, participando, trabalhando, por favor, em nome de Deus eu pergunto-lhe: O que é que e você acha que está fazendo? Para onde você acha que está indo? Você acha que sua presença na Igreja está garantindo sua salvação? Se você é daqueles que andam brigando, disseminando discórdia, criticando, julgando, mas está aí na Igreja, criando divisão e mal-estar? Diga-me: algum dia, você tem que acordar, ficar sozinho e dizer: “Meu Deus, o que aconteceu comigo? É este o trigo bom que Tu tens em Tua Igreja? É este o trigo bom que Tu queres que eu seja?”

Jesus não veio a este mundo somente para trazer pessoas para uma determinada Igreja. Jesus veio a este mundo para reproduzir o Seu caráter maravilhoso em sua vida e na minha. Mas para que isso aconteça, um dia, temos que ir a Ele e dizer: “Senhor, eu não sou ninguém, eu não posso, eu já tentei, já me esforcei. Senhor Jesus, se Tu me pedes que eu me esforce pra vencer, eu estou perdido porque eu não tenho forças. Embora eu saiba que Tu respeitas a minha vontade, eu Te entrego a minha vontade. Faz por mim o que eu não posso fazer por mim mesmo.”

Ao longo da minha vida tenho visto tanta gente ir a Jesus do jeito que está. Tenho visto tanta gente chorar aos pés da cruz. Prostitutas, marginais, invejosos, orgulhosos, rancorosos, cobiçosos. Pessoas que um dia caíram aos pés de Cristo dizendo: “Senhor, eu não tenho forças, eu não posso, mas sei que Tu podes.”

Jesus está desejoso de operar milagres na vida das pessoas. Você pode experimentar as maravilhas do Evangelho em sua vida, transformando seu coração e ajudando-lhe a entender que na Igreja de Deus, o trigo e o joio têm que crescer juntos. Ajudando-lhe a entender que a Igreja apesar das imperfeições, continua sendo a Igreja de Deus. Imperfeições humanas não são justificativas para o erro. Mas, querido, deixe que cada um fique frente a frente com Jesus Cristo, por ocasião da Sua segunda vinda. Não tente julgar o outro por maior mal que lhe tenha feito. Deixe que ele acerte as contas com Jesus.

Um dia Ele voltará e, se encontrar você desesperado e perdido, pode lhe perguntar: “Filho, por que você não esteve comigo?” Se você disser: “Senhor, na Tua Igreja havia muitos hipócritas.” Essa não será a desculpa. Ele lhe dirá: “Filho, trigo e joio tinham que crescer juntos. Você nunca leu isso na Minha Palavra?”

Se estou falando para alguém que está fora da Igreja por essas coisas da vida, diga, em seu coração: “Senhor Jesus, eu não tenho forças para retornar. Ajuda-me. Eu não tenho forças para voltar pelos meus próprios meios. Atrai-me à Tua cruz. Toma a decisão por mim, porque eu não sou capaz.” Deixe o Espírito de Deus trabalhar em sua vida.

ORAÇÃO
Querido Pai, às vezes é difícil aceitar que em meio de Tua Igreja existe gente que não vive as maravilhas de Teu Evangelho. Mas hoje vimos que é preciso que trigo e joio cresçam juntos. Ajuda-nos, Senhor, a ser trigo bom e a ser sempre uma fonte de inspiração para outros. Em nome de Jesus, amém.

Alejandro Bullón (via Sétimo Dia)

"Na parábola de Cristo não nos é ensinado que julguemos e condenemos a outros, antes sejamos humildes e desconfiemos do eu. Nem tudo que é semeado no campo é bom trigo. O estarem os homens na igreja não prova que são cristãos. Pecadores que pretendem ser piedosos confundem-se por algum tempo com os verdadeiros seguidores de Cristo, e a aparência de cristianismo tende a enganar a muitos; mas não haverá, na sega do mundo, semelhança entre os bons e os maus. Então, serão manifestos aqueles que se ligaram à igreja, mas não a Cristo" (Ellen G. White - Parábolas de Jesus, p. 74).

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

A VISÃO DO LENÇOL DE ATOS 10

Não sei se você já assistiu a alguma discussão sobre a Bíblia, entre pessoas de diferentes crenças. Eu já...

Numa dessas, vi um homem, aparentemente muito sincero, defendendo sua fé em Deus e em sua Palavra, como norma de conduta, até ser interrompido pelo "oponente". Meio sarcástico, este segundo questionou certos hábitos alimentares, sustentados pelo primeiro, como sendo contrários à nova ordem bíblica. "E a visão do lençol de Atos 10? Como você me explica?", disparou.

Sua referência era às palavras dadas por Deus a Pedro, um dos doze discípulos, em visão. Um grande lençol branco desceu do Céu, contendo animais considerados impuros nas leis levíticas (Levíticos 11). Do céu, uma voz disse: "Pedro, mate e coma", ao que ele respondeu negativamente. A visão e as palavras se repetiram três vezes, como que indicando a importância da mensagem dada no fim: "Não chame impuro ao que Deus purificou" (Atos 10:15).

Muitos pseudo-exegetas, nesse ponto do texto, fecham sua Bíblia e abrem um gostoso sorriso... e passam a ensinar o que, para eles, parece muito claro: naquele dia Deus declarou puros todos os alimentos. Será? O problema é que desconsideram a parte mais bonita do texto e alguns detalhes não menos importantes: primeiro, em nenhum momento a Bíblia declara que Pedro de fato comeu os alimentos expostos no lençol ou que tenha passado a comer algo semelhante, a partir da visão. Alguém aí pode dizer que ele era teimoso mesmo... mas isso não vem ao caso. E segundo, diferente de outros intérpretes - apressados - das palavras divinas, Pedro se demorou "pensando na visão" e "refletindo no significado" da mesma (versos 17 e 19).

Não foi preciso muito tempo para que o grande apóstolo entendesse o propósito divino com a estranha visão. Ao receber a visita dos enviados de Cornélio, um homem não-judeu, porém temente a Deus, a ficha caiu para Pedro. Deus utilizou uma imagem intrigante e até mesmo detestável para abrir os olhos do discípulo para uma realidade igualmente detestável ao Céu. A conclusão foi expressa em palavras claras, vindas dos lábios de alguém que buscou revelações em Deus: "Vocês sabem muito bem que é contra a nossa lei um judeu associar-se a um gentio (não-judeu) ou mesmo visitá-lo. Mas Deus me mostrou que eu não deveria chamar impuro ou imundo (e por um acaso você lembra dessas palavras?) a homem nenhum. Por isso, quando fui procurado, vim sem qualquer objeção" (versos 28-29).

Atos 10 não trata de distinção de alimentos (isso é assunto de outras páginas), mas de distinção de pessoas. Desta última, Deus não se agrada nem um pouco.

Se isto é novo para você, agora não há escusa. Devemos parar de olhar para o próprio umbigo (próprio estômago) e olhar para as pessoas à nossa volta. Devemos deixar de torcer o texto bíblico para atender às nossas predileções de sabores ou comodismo, para alcançar pessoas, iguais a nós, que não conhecem a salvação.

Parece que o lençol que revelou estas grandes verdades a Pedro é hoje usado para impedir a visão de muitos. Não permita que algo assim aconteça com você! Passe tempo diante de Deus, com coração humilde e sincero e Ele trará respostas.

Em Atos 10 existe mais...

[via blog de Cândido Gomes]

"Quão cuidadosamente agiu o Senhor para vencer o preconceito contra os gentios, que tão firmemente se fixara na mente de Pedro pela sua educação judaica! Pela visão do lençol e seu conteúdo, procurou Ele despir o espírito do apóstolo deste preconceito, e ensinar a importante verdade de que no Céu não há acepção de pessoas; que judeus e gentios são igualmente preciosos à vista de Deus; que por meio de Cristo os pagãos podem ser participantes das bênçãos e privilégios do evangelho" (Ellen G. White - Ato dos Apóstolos, p. 74).

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

A ORAÇÃO-MODELO

Uma dúvida frequente entre os recém-convertidos é como orar, especialmente para aqueles que vêm de religiões ou denominações cristãs nas quais a prece consiste, basicamente, em repetir palavras. Muitos se frustram ao descobrir que a Bíblia não prescreve nenhuma lista de “rezas”. De fato, a maior parte das orações encontradas nas Escrituras, sobretudo nos Salmos, são espontâneas, fruto do extravasar sincero do coração perante Deus. Contudo, embora a Bíblia não determine nenhuma prece em particular, Cristo nos deixou um modelo de oração, o qual deve inspirar nossas conversas com o Criador.

A chamada Oração do Senhor, ou Pai Nosso, está registrada em Mateus e Lucas (Mt 6:9-13; Lc 11:2-4). A forma mais conhecida é a do evangelho de Mateus. Essa preciosa e bela oração nos ensina alguns princípios muito importantes para nossa vida devocional. O primeiro deles é derivado da própria estrutura da oração, composta por seis petições divididas em duas partes: os interesses do reino de Deus (Mt 6:9, 10) e os nossos interesses (v. 11-13). Em outras palavras, os temas relativos ao Reino devem sempre ser prioridade em nossas orações.

A oração-modelo de Jesus começa chamando Deus de Pai (v. 9), o que sublinha a importância de cultivarmos intimidade com o Senhor. No entanto, essa intimidade não implica irreverência, pois, em seguida, pede-se que Seu nome seja santificado, ou honrado. Pede-se também que o reino de Deus venha (v. 10a), súplica que se torna incoerente se não estamos envolvidos com a pregação do evangelho e o estabelecimento do Reino (Mt 14:14). Junto a essa petição, solicita-se que seja feita a vontade de Deus, “assim na Terra como no Céu” (v. 10b). Isso demanda renúncia de nossa parte e a disposição, por vezes difícil, de trocar nossa vontade pela vontade do Senhor. Com isso, encerra-se o primeiro bloco do Pai Nosso.

O segundo bloco começa com um pedido pelo “pão nosso de cada dia” (v. 11). Essa petição nos lembra que somente Deus pode suprir nossas necessidades – não apenas de alimento, mas de todo tipo. É importante ressaltar também que o “pão” que Deus nos dá deve ser compartilhado, pois ele é “nosso” e não apenas “meu”, assim como o Pai é nosso (v. 9). Isso nos move à solidariedade. Em seguida, Jesus nos ensina a pedir perdão pelos nossos pecados (“nossas dívidas”); porém, o recebimento do perdão divino é proporcional ao perdão que concedemos aos outros (v. 12). Nesta parte da oração, somos convidados a nos reconciliar e a nos reconectar com o nosso próximo (ver Mt 5:23, 24). Por fim, o Salvador nos incentiva a pedir que Deus nos livre do mal e nos dê vitória sobre a tentação (v. 13). O Senhor não nos livrará dos convites de Satanás ao pecado, mas Ele pode nos fortalecer para que não caiamos nas armadilhas que o inimigo coloca em nosso caminho (ver 1Co 10:13).

Em várias traduções da Bíblia consta uma doxologia ao final do Pai Nosso (v. 13b: “pois Teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Amém”). Embora essa nota de louvor provavelmente não estivesse presente no texto original (por isso, geralmente fica entre colchetes), tendo sido uma adição posterior inserida como parte da tradição litúrgica cristã, ela reflete bem o espírito da oração como um todo e aponta para o seu começo: a realidade de um Pai soberano, que reina sobre todo o Universo, mas está atento às nossas necessidades e deseja atendê-las com indescritível amor.

Eduardo Rueda Neto (Revista Adventista)

"Deus fala-nos constantemente através da Natureza, através da Escritura, e através das Suas muitas interacções providenciais. Mas isso não basta para nos manter em íntima relação com Ele. Também precisamos de falar com Ele. Orar é abrir os nossos corações a Deus, como fazemos a um amigo. A oração não traz Deus até nós; ela eleva-nos até Ele. Quando Jesus viveu aqui na Terra, ensinou os Seus discípulos a orar. Disse-lhes que contassem a Deus as suas necessidades e que partilhassem com Ele as suas lutas e dificuldades. Jesus falava por experiência. Tudo o que Ele suportava dia após dia, rodeado pelo pecado, partilhava com o Seu Pai. Era assim que Ele encontrava conforto e forças para continuar. Se Jesus sentia necessidade de orar regularmente, constantemente, quanto mais necessitamos nós de fazer o mesmo. A oração diária contínua mantém as nossas vidas unidas a Deus, por isso nunca devemos permitir que nada interrompa essa ligação através da oração. Orem com outras pessoas, orem com a família, mas, acima de tudo, tomem tempo para a oração privada, pessoal, porque ela constitui a verdadeira corrente de vida da vossa alma. Nunca sejam relutantes em orar, porque a oração é a chave na mão da fé para abrir o tesouro do Céu. Sem oração regular corremos o risco de crescermos descuidadamente e de nos perdermos" (Ellen G. White - Um Convite à Diferença, pp. 36-37).

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

PREDESTINAÇÃO OU LIBERDADE DE ESCOLHA?

O Senhor e Salvador Jesus Cristo fez com que o povo deixasse as tradições para se voltar às Escrituras - à Lei e os Profetas (João 7:16; Mateus 4:4, 10; 5:18; 15:1-9; Lucas 24:27, 44). Seus apóstolos assim também procederam (Atos 3:24; 24:14; 26:27; Romanos 3:21; 2 Timóteo 3:16). Eles pregaram o evangelho bíblico e eterno, pois qualquer outro é “anátema” (Apocalipse 14:6; Gálatas 1:8, 9). Mas falsos ensinos penetraram no cristianismo a partir da Patrística, período após a morte dos apóstolos, cujos ensinadores têm sido denominados “Pais da Igreja”. Esses teólogos, e também os medievais, “olhavam geralmente para a filosofia e para a literatura grega como precursores, preparadores e pronunciadores da teologia cristã”.[1]

Assim, a teologia bíblica foi negligenciada. A propósito, “o grande erro da Igreja Católica reside no fato de que a Bíblia é interpretada à luz das opiniões dos ‘pais’".[2] Já os reformadores do século XVI adotaram a Sola Scriptura, tomando “a Sagrada Escritura como fonte única para julgar a ortodoxia da fé”.[3] Logo, “enquanto a igreja medieval se baseava nos escritos dos “pais da igreja e dos concílios", os reformadores adotaram os escritos dos “apóstolos e profetas”.[4]

Lutero “atacava a incredulidade especulativa dos escolásticos, e opunha-se à filosofia e teologia que durante tanto tempo mantiveram sobre o povo a influência dominante.”[5] Mas a despeito da Reforma Protestante trazer o povo de volta à Bíblia, erros filosóficos da Patrística influenciaram reformadores como Lutero e Calvino. Por exemplo, Agostinho de Hipona (354 d.C.-430 d.C.), por meio de especulação filosófica, apegara-se ao conceito grego da atemporalidade do ser mantido por Parmênides (50-470 a.C.), e Platão (427-347 a.C.).[6]

Os gregos identificavam “a eternidade com a atemporalidade”[7], e concebiam o ser verdadeiro “como algo que existe em um eterno presente, sem passado, e sem futuro, sem ontem e sem amanhã”.[8] Para aqueles filósofos, “a verdadeira realidade é aquela que existe toda junta, sem sucessão nem mudança”.[9] Agostinho, baseado na filosofia grega, afirmou em Confissões que a eternidade é “imutável”, “imóvel”, “nada passa, pois o todo é plenamente presente”.[10] Sobre os anos de Deus, Agostinho também escreveu: “Teus anos permanecem juntos, são imóveis... Teus anos são um dia, e o Teu dia não segue em repetição, é sempre hoje, pois o Teu hoje não dá lugar para o amanhã, nem substitui o ontem. O Teu hoje é Eternidade.”[11]

Além do tempo
As Escrituras, porém, afirmam a temporalidade de Deus, declarando que antes da criação da Terra havia tempo, dias e anos (Jó 36:26; Daniel 7:9, 13; Miqueias 5:2; Tito 1:2; Hebreus 1:10-12). “A temporalidade de Deus significa, que em sua eternidade, a vida e a ação de Deus acontece na ordem da sucessão de passado, presente e futuro”.[12] Aqueles que se apegam à visão filosófica grega da atemporalidade torcem 2 Pedro 3:8, pois o apóstolo Pedro não ensina esse falso conceito. O apóstolo simplesmente afirma o mesmo que Eliú. O número dos anos de Deus “não se pode calcular” (Jó 36:26), isto é, o “caráter infindável do tempo de Deus”.[13] Deus vive no tempo como nós, seres criados. A diferença é que enquanto somos mortais e passageiros, Deus sempre foi e sempre será eterno e imortal (1 Timóteo 1:17).

A propósito, Canale fez uma investigação exaustiva do paralelismo de Êxodo 3:14, 15, em que o “Ser de Deus aparece em extensão temporal nos três modos de tempo (passado, presente, e futuro)”.[14] Ele afirma corretamente: “Um Deus atemporal é um Deus impotente, que não pode agir historicamente dentro do movimento da história”.[15] Em acordo, Gulley lembra que Deus é um ser relacional (1 João 4:8), e que “um Deus relacional não é um Deus atemporal”.[16]

Pelo conceito de que a divindade habitaria em eterna atemporalidade, Agostinho influenciou a teologia romana, pois, “de acordo com a teologia católica romana, o ser de Deus é atemporal e não espacial (eterno e espiritual)”.[17] Agostinho também preparou o caminho para a doutrina protestante de que por um decreto na eternidade atemporal e imutável, Deus justificou e predestinou de modo eterno e imutável um indivíduo para a salvação.

A propósito, “Lutero entendeu a realidade de Deus seguindo a filosofia grega. Deus não vive ou atua na sequência de passado, presente e futuro”, mas em um “momento” atemporal “instantâneo”.[18] Lutero cria firmemente na ideia da predestinação ao ponto de falar da justificação como um evento terminado.[19] E Calvino ensinou predestinação dupla, para a salvação ou para perdição, afirmando que Deus “designou de uma vez para sempre, em seu eterno e imutável desígnio, àqueles que ele quer que se salvem, e também aqueles que quer que se percam”.[20]

Decisões e consequências
Para John Wesley, esta doutrina destrói todos os atributos de Deus, pois “subverte a sua justiça, a misericórdia e a verdade; sim, ela representa o mais santo Deus como pior do que o demônio, mais falso, mais cruel e mais injusto”.[21] De fato, esta visão catastrófica de determinismo divino “insiste em que Deus é a causa final que determina as ações humanas”.[22] Ela destrói o livre arbítrio e a responsabilidade humana. Enquanto muitos rejeitam um Deus assim, multidões se entregam a uma fatal ilusão presunçosa de “total segurança da salvação final. A pessoa predestinada pelo decreto soberano de Deus não podia perder-se”.[23]

A Bíblia, porém, afirma claramente que Deus “não faz acepção de pessoas” (Atos 10:34). Ele deseja que “todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade”, inclusive o “principal dos pecadores” (1 Timóteo 2:4; 1:15). Ele “não quer que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2 Pedro 3:9). Cristo, em sacrifício voluntário, “a si mesmo se deu em resgate por todos” (1 Timóteo 2:6), provando “a morte por todo homem” (Hebreus 2:9). Com certeza Ele “pode salvar totalmente os que por Ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hebreus 7:25). Por isso, comissionou Seus discípulos a irem “por todo o mundo” pregar “o evangelho a toda criatura” (Marcos 16:15).

Liberdade de escolha
Ao estudar predestinação, deve-se incluir a presciência divina, a providência do evangelho eterno, o livre arbítrio humano, e as consequências de suas escolhas. Presciência, ou conhecimento antecipado, não é o mesmo que predestinação ou predeterminismo (Isaías 46:9, 10; 44:6-8; Atos 2:23; Romanos 11:2). No sentido bíblico, a predestinação se refere especificamente ao plano divino da salvação estabelecido antes da fundação do mundo[24] (1 Pedro 1:18-20; Romanos 16:25, 26; Apocalipse 14:6). “Deus escolhe os eleitos em sua providência, não em sua predestinação”[25] (Efésios 1:11, 12), pois predestinou apenas a missão de Cristo, não causando os acontecimentos conhecidos em Sua presciência.[26] Segundo a doutrina bíblica do santuário, “Deus não realiza a salvação de indivíduos na eternidade antes da fundação do mundo, mas “através da mediação histórica de Cristo”[27] (Hebreus 8, 9).

Ele não força a vontade, mas permite nossas escolhas (Salmo 37:5; Provérbios 23:26; Isaías 1:19; 55:1; Apocalipse 3:20). A Bíblia declara várias vezes que foi Faraó que endureceu seu próprio coração (Êxodo 7:22; 8:15, 19; 9:35), o que também pagãos reconheceram (1 Samuel 6:6). Mas por que a Bíblia diz que Deus endureceu o coração de Faraó, enquanto diz que ele mesmo se endureceu, não obstante as provas de que Deus realmente falara a ele? (Êxodo 9:12; 10:1, 20, 27). “Deus deixa que os que se rebelam colham as consequências de suas ações. Deus poderia haver intervido, de modo que as consequências nunca seriam manifestadas, mas não fez. Nesse sentido, o Senhor era responsável por elas”.[28]

Assim foi o caso de Caim, Balaão, Esaú, Saul, Judas. O fogo eterno foi preparado para o diabo e seus anjos (Mateus 25:41). Infelizmente, seres humanos serão destruídos, porque assim como os habitantes de Sodoma, escolhem “viver impiamente” (2 Pedro 2:6, Judas 7; Apocalipse 21:8). Algumas citações: “Não é que Deus mande um decreto para que o homem não se salve. Mas o homem resiste a princípio a um movimento do Espírito de Deus e, havendo uma vez resistido, é menos difícil assim fazer pela segunda vez, menos a terceira, e muito menos a quarta. Então vem a colheita a ser ceifada, da semente de incredulidade e resistência”.[29] “Sob a influência do Espírito de Deus, o homem é deixado livre para escolher a quem há de servir”.[30] “Deus elegeu um caráter de acordo com Sua lei, e qualquer que atinja a norma que Ele exige, terá entrada no reino de glória”.[31] “Não há eleição senão a própria, pela qual alguém possa perecer”.[32] “As providências tomadas para a redenção são franqueadas a todos; os resultados da redenção serão desfrutados por aqueles que satisfizeram as condições”.[33]

Conclui-se que o ensino da predestinação divina de seres humanos para a salvação, ou para a perdição, é falso e está em frontal oposição às Escrituras Sagradas. "Cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus" (Romanos 14:12)”. Portanto, “temos liberdade para escolher ser polidos ou permanecer sem polimento”.[34] “Assim, pois, como diz o Espírito Santo: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração” (Hebreus 3:7,8). “Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da vida” (Apocalipse 2:10), pois “Aquele, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mateus 24:13).

Wilson Borba (via Notícias Adventistas)

Referências:
[1]E. E. Zinke, Abordagens da teologia e dos estudos bíblicos, Brasília: Divisão Sul-Americana, 1979, p. 5.
[2]Ellen G. White, Fundamentos da educação cristã, 1ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013, p. 308.
[3]Josef Lenzenweger; Karl Amon Stockmeier; Rudolf Zinnhobler, Historia de la iglesia católica, Barcelona: Editorial Herder, 1989, p. 374.
[4]Ellen G. White, O grande conflito, 43ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013, p. 208.
[5]Ibidem, p. 126.
[6]Raúl Kerbs, El problema de la identidade bíblica del cristianismo, 1ª ed. Libertador San Martin, Argentina: Universidad Adventista del Plata, 2014, p. 79, 102, 105, 106.
[7]Ibidem, p. 655.
[8]Ibidem.
[9]Ibidem.
[10]Agostinho, Confissões, 1ª ed. Jandira, SP: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda, 2019, capítulo XI, p. 221.
[11]Ibidem, capítulo XIII, p. 222.
[12]Fernando Canale, Princípios elementares da teologia cristã, 1ª ed. Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2018, p. 80. A seguir: Canale, Princípios elementares da teologia cristã.
[13]Oscar Culmann, Christ and time: the primitive christian conception of time and history. Philadelphia: Westminster Press, 1964, p. 69.
[14]Fernando Luis Canale, Toward a Criticism of Theological Reason: Time and Timelessness as Primordial Presuppositions, Tese PhD, Andrews University, (1983), p. 362.
[15]Canale, Princípios elementares da teologia cristã, p. 81.
[16]Norman R. Gulley, Sistematic theology God as Trinity, Berrien Springs, MI: Andrews University, 2011, v. II, p. 177.
[17]Fernando Canale, ¿Adventismo secular?, 1ª ed. Lima: Universidad Peruana Unión, 2012, p. 38.
[18]Ibidem, p. 39.
[19]Raoul Dederen, ed. Tratado de teología adventista, 1ª ed. Buenos Aires: Casa Editora Sul-Americana, 2009, p. 346. A seguir: Tratado de teologia adventista.
[20]Agostinho, Livro III, capítulo 21, p. 393.
[21]John Wesley, Coletânea da teologia de João Wesley, compilado por Robert W. Burtner e Robert E. Chiles, 2ª ed., Rio de Janeiro: Instituto Metodista Bennett, 1995, p. 46.
[22]Norman Geisler, Enciclopédia de apologética, São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 253.
[23]Tratado de teología adventista, p. 346.
[24]Canale, Princípios elementares da teologia cristã, p. 146.
[25]Ibidem, p. 154.
[26]Ibidem, p. 151.
[27]Ibidem, p. 155.
[28]George R. Knight, Por la ruta de romanos. Nampa, ID: Pacific Press Publishing Association, 2003, p. 237.
[29]Ellen G. White, Testemunhos para a igreja, 1ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013, vol. 5, p. 120.
[30]________, O Desejado de Todas as Nações, 22ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013, p. 466.
[31]_______, Patriarcas e profetas, 16ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013, p. 207.
[32]Ibidem.
[33]Ibidem, p. 208.
[34]Ellen G. White, O cuidado de Deus: Meditação Matinal. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1995, p. 130.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

O DIA EM QUE O SOL PAROU NO CÉU

Existem momentos na história da humanidade, relatados na Bíblia, que nos deixam perplexos, nos fazem questionar os limites do possível e nos lembram da grandiosidade de Deus. Um desses momentos está escrito no livro de Josué, capítulo 10, quando o Sol, em seu trajeto pelo céu, simplesmente parou por ordem divina. Esta é uma história que transcende o entendimento humano e nos convida a refletir sobre a magnitude do poder de Deus e Sua dedicação aos Seus filhos.

No contexto desse evento, Josué, o líder escolhido por Deus para suceder Moisés, estava liderando os israelitas na conquista da Terra Prometida. Eles enfrentaram várias batalhas, e a notícia de sua chegada havia se espalhado rapidamente entre os povos. Os amorreus, uma coalizão de reinos locais, se uniram para resistir à invasão israelita. Foi nesse cenário que ocorreu o evento descrito em Josué 10.

A Oração de Josué
Josué e seu exército estavam envolvidos em uma batalha feroz contra os amorreus. A luta estava prestes a se estender até a noite, o que teria colocado os israelitas em grande desvantagem. Nesse momento crítico, Josué fez algo que é um exemplo de fé. Ele orou a Deus e fez um pedido: “Sol, pare sobre Gibeom; e tu, lua, sobre o vale de Aijalom” (Josué 10:12). Esse pedido pode parecer impossível e extraordinário, mas Josué estava confiante na fidelidade de Deus e na Sua capacidade de intervir de maneira sobrenatural.

O Sol parou no céu
Em resposta à oração de Josué, a Bíblia nos diz que “o Sol se deteve no meio do céu e por quase um dia inteiro não se apressou a pôr-se” (Josué 10:13). Isso significa que o ciclo natural do dia foi suspenso. O Sol ficou parado no céu, proporcionando aos israelitas a luz e o tempo adicionais de que precisavam para alcançar a vitória na batalha.

Este milagre é uma prova vívida do poder de Deus e de Sua vontade de intervir em favor de Seu povo. Mostra-nos que, quando confiamos em Deus e O buscamos com sinceridade, Ele pode realizar o impossível em nosso favor. Deus estava disposto a deter o movimento do Sol para proteger e abençoar Seus filhos.

A perspectiva astronômica
Do ponto de vista científico, a descrição do dia em que o sol parou levanta questões sobre a compreensão da astronomia. A ciência moderna entende que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário. Portanto, a ideia de que o sol “parou” pode ser vista como uma descrição fenomenológica, isto é, a maneira como o evento foi percebido pelos observadores na época. A linguagem bíblica, ao descrever o sol parando, reflete a perspectiva visual das pessoas e não necessariamente uma alteração real no movimento astronômico.

Marcos Natal de Souza, doutor em Geologia e presidente da Sociedade Criacionista Brasileira, diz: "Alguma coisa sobrenatural realmente aconteceu. Do ponto de vista de um observador na Terra, o Sol realmente se deteve e voltou a se movimentar lentamente até o fim do dia, o que sugere uma visão de mundo geocêntrica. Se não foi o Sol que parou, foi a Terra que deixou de girar. Se isso acontecesse naturalmente, ou seja, se a Terra parasse de girar de forma repentina, é provável que toda a vida teria sido extinta. Afinal, a velocidade de rotação, por exemplo, em Brasília, é da ordem de 1.600 km/h. Qualquer pessoa ou coisa nesse paralelo seria arremessada tangencialmente para a atmosfera a essa velocidade. Uma catástrofe sem dimensões! Nesse caso, prefiro aceitar pela fé que Deus operou um grande milagre, como tantos outros.” 

Eduardo Lütz, astrofísico e engenheiro de softwares diz: “A rigor, se a Terra para de girar, é tecnicamente correto dizer que o Sol para no céu. Se frearmos um carro bruscamente, sentimos os efeitos da aceleração. Se o carro bater, a aceleração (taxa de alteração de velocidade) é tão alta que tem efeitos catastróficos. Mas, se pararmos um carro por meio de um campo gravitacional, ninguém nota. Se Deus parou a rotação da Terra por meio de um campo gravitacional bem planejado, isso não causaria qualquer efeito observável na Terra. Em suma, quando Josué diz que o Sol parou, está tecnicamente correto, pois o referencial usado era obviamente o do ambiente dele, ou seja, da superfície da Terra.” 

Confiança em Deus
A história de Josué 10 não é apenas um relato antigo, mas uma lição atemporal sobre a confiança em Deus. Ela nos lembra que, independentemente dos desafios que enfrentamos, podemos confiar no poder e na fidelidade de Deus. Ele está disposto a fazer o que for necessário para cumprir Seus propósitos em nossas vidas.

Quando nos encontrarmos diante de circunstâncias aparentemente impossíveis, devemos lembrar que o mesmo Deus que parou o Sol por Seus filhos no passado ainda está no controle hoje. Nossa fé e oração podem abrir caminhos onde não há caminhos visíveis, e Deus pode realizar milagres em nossa jornada.

Deus é capaz de parar o Sol por Seus filhos quando eles confiam n’Ele. Experimente pedir para que Ele realize o extraordinário em sua vida.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

NACIONALISMO CRISTÃO

O nacionalismo é uma característica da história humana. Muito antes de emergir como a força marcante do mundo moderno, ele existia no coração de comunidades mesmo em tempos remotos. Quando os discípulos perguntaram a Jesus justamente antes da ascensão: "Será este o tempo em que restaures o reino a Israel?" (Atos 1:6), estavam refletindo a esperança nacionalista de sua época.

Notamos, mais uma vez, que até os cristãos tendem a cair na armadilha da sedução das ideologias, apesar do seu suposto compromisso exclusivo com os ditames do evangelho. Não surpreende, portanto, que muitos crentes te­nham deliberadamente adotado o nacionalismo. Além disso, alguns acaba­ram ligando sua fé ao nacionalismo a tal ponto que as duas coisas passaram a ser uma só na sua mente.

Portanto, nacionalismo cristão é uma tentativa de associar o cristianismo à identidade nacional. Ou seja, para ser realmente patriota, é preciso também ser cristão. O nacionalismo cristão ganha força a partir da crença de que forças hostis estão atacando uma nação até então cristã. Diante disso, supostamente os cristãos seriam chamados a reconquistar o território que sua religião perdeu. A questão se complica quando verificamos que na ideologia do nacionalismo cristão há espaço para discursos de ódio, como o racismo e a hostilidade contra minorias étnicas e religiosas.

Um exemplo disto, foi o fato ocorrido no Café da Manhã Nacional de Oração no Capitólio, realizado em Washington no último dia 06, onde o presidente Trump afagou o público do nacionalismo cristão ao anunciar que determinará a criação de um "escritório da fé" na Casa Branca e uma força-tarefa para erradicar o preconceito anticristão. Segundo ele, há atualmente nos Estados Unidos “violência e vandalismo anticristão” passível de criminalização. "É a política dos Estados Unidos, e o propósito desta ordem, proteger as liberdades religiosas dos americanos e acabar com o aparelhamento anticristão do governo", diz o texto do decreto.

"Em vez de proteger as crenças religiosas, esta força-tarefa usará indevidamente a liberdade religiosa para justificar intolerância, discriminação e a subversão de nossas leis de direitos civis", disse Rachel Laser, presidente da organização Americanos Unidos pela Separação entre Igreja e Estado, em uma declaração. "Se Trump realmente se importasse com a liberdade religiosa e o fim da perseguição religiosa, ele estaria abordando o antissemitismo em seu círculo interno, a intolerância antimuçulmana, os crimes de ódio contra pessoas de cor e outras minorias religiosas".

Bettina Krause, assessora de comunicação do Departamento de Relações Públicas e Liberdade Religiosa da sede mundial adventista, disse na Revista Adventista de março de 2021 que "a Igreja Adventista do Sétimo Dia é absolutamente contrária ao nacionalismo cristão, pois essa ideologia confronta nossa teologia, crenças e história. Às vezes, a igreja fala publicamente sobre suas ideias e toma uma posição a respeito de alguma política pública que se harmoniza com nossos princípios. A liberdade religiosa, por exemplo, é uma área em que a igreja constantemente toma posições públicas. Trabalhamos intensamente para defender o direito que cada pessoa tem de seguir o que diz sua consciência. No entanto, contribuir para o debate público sobre questões específicas é radicalmente diferente das ambições do nacionalismo cristão".

Sendo assim, não devemos tentar usar o poder político para criar uma esfera pública exclusivamente cristã. Por quê? Nossa compreensão bíblica e dos escritos de Ellen White nos leva a afirmar, inequivocamente, que os esforços para legislar em favor da própria fé estão em completa oposição à natureza da verdadeira religião e à vontade de Deus. Em qualquer de suas formas e variantes, o nacionalismo cristão sempre prejudicará o testemunho do evangelho.

Ellen G. White diz: "Deus não reconhece distinção alguma de nacionalidade, etnia ou classe social. É o Criador de todo homem. As paredes do sectarismo e do nacionalismo cairão quando o verdadeiro espírito missionário penetrar no coração dos homens" (Mensagens Escolhidas 2, p. 486).

O nacionalismo cristão é também sedutor para muitos pastores e líderes da igreja. Afinal, é uma forma de exercer poder. Mas, como todo tipo de poder, está envolto em vários perigos:

1) Falta de humildade: geralmente produz arrogância e superioridade religiosa, contrária aos ensinamentos bíblicos de humildade e amor ao próximo.

2) Desvio da missão: desvia a missão cristã e da mensagem do Evangelho a todas as pessoas e foca na defesa de interesses nacionais e eleitorais.

3) A polarização: leva a uma polarização religiosa e política na sociedade, prejudica a unidade e o diálogo entre diferentes grupos. Além disso, a polarização namora as obras da carne ao cultivar dissensão, ira e sectarismo.

4) Foco na política em vez da espiritualidade: o radicalismo leva os evangélicos a se concentrarem mais na política e no poder terreno do que na vida espiritual e no amor ao próximo. É excessivamente ativista e pouco piedoso; é engajado, mas nada generoso; é transtornador, mas nada transformador.

5) Perigo de misturar religião e política: leva a conflitos e violência, e que os evangélicos devem se concentrar em praticar sua fé de forma pacífica e respeitosa. Embora seja impossível cultivar uma religião neutra politicamente, é necessário separar Igreja e Estado, fé e política. Separar não é divorciar completamente, mas é saber discernir quando a aproximação é saudável ou não.

6) Dependência da cultura do medo e teorias conspiratórias: o nacionalismo cristão, como todo nacionalismo, precisa de inimigos, nem que sejam inimigos imaginários inventados em teorias conspiratórias. Em sua guerra cultural, os nacionalistas respiram ameaças e vivem em um mundo binário de constante estado de conflito.

Quando o evangelho cristão é nacionalizado e se torna um instrumento cultural para governar, perde seu poder para produzir liberdade e salvação. Esse nacionalismo cristão não tem nada a ver com o universo evangélico, não tem Bíblia, não importa o que os evangelhos possam dizer. É supremacia e força, a religião como política.