Muitos anos se passaram e a história de Joana D’Arc, heroína que garantiu substanciais vitórias ao exército francês durante a Guerra dos Cem Anos (1337 – 1453), foi revisitada, reconsiderada e, hoje, ela é tida como a Santa Padroeira da França.
Abaixo, reunimos em lista fatos sobre a trajetória desta lenda que mescla realidade histórica com fantasia e misticismo:
Nascimento
Joana D’Arc nasceu na comuna de Domrémy (que posteriormente foi nomeada de Domrémy-la-Pucelle em homenagem ao epíteto que a guerreira usava), na região de Lorena, na França.
Não se sabe ao certo a data de seu nascimento, visto que naquela época as pessoas não contavam exatamente as idades. Há uma estimativa de que ela tenha vindo ao mundo em 1412, segundo seu depoimento no julgamento. “Tenho 19 anos, mais ou menos”, revelou ela em 1431.
A garota era a caçula entre quatro filhos do casal de agricultores e artesãos Jacques d’Arc e Isabelle Romée. A família era muito religiosa, inclusive Joana, que frequentava a Igreja com regularidade.
Infância e a Guerra
A infância e pré-adolescência de D’Arc foram marcadas pelo evento histórico conhecido por Guerra dos Cem Anos (1337 – 1453), conjunto de batalhas travadas entre os reinos francês e inglês pela conquista da França.
Tudo começou em 1328, quando rei francês Carlos IV morreu sem deixar herdeiros direitos. Diante a situação, o rei inglês, Eduardo III, afirmou que a posição deveria ser sua, já que ele era sobrinho do falecido monarca. No entanto, a realeza da França não gostou muito da ideia e empossou o conde Felipe VI.
O impasse político e a disputa por territórios entre os dois reinos resultou em sangrentas batalhas e na divisão das duas populações. A Inglaterra não parava de conquistar novos territórios franceses, enquanto o governo da França não conseguia estabilidade: a coroa transitou entre Felipe VI, Carlos V, Carlos VI e Carlos VII.
Ao mesmo tempo em que Carlos VII tentava se impor contra o reino inglês e os borguinhões, parcela de franceses do condado da Borgonha que apoiava os rivais, D’Arc era somente uma criança. Mas isso não a impedia de vivenciar a guerra.
Como contou em seu julgamento, o lugar em que ela cresceu era marcado por crianças brigando entre si e algumas ganhavam até feridas e machucados ensanguentados. Em certa ocasião, seu vilarejo foi até incendiado. É importante lembrar que o conceito de "infância" e "adolescência" sequer existia no século 15. Os jovens eram tratados como adultos em miniatura.
Vozes do além
Aos 13 anos de idade, D’Arc revelou ter ouvido vozes e ter tido visões pela primeira vez. A garota estava no jardim de seu pai e recebeu aparições do que acreditou ser o arcanjo São Miguel, a Santa Catarina de Alexandria e a Santa Margarida de Antioquia, figuras que vieram lhe dizer que ela deveria integrar o exército francês e ajudar o rei Carlos VII na luta contra a Inglaterra.
Com o tempo, esses episódios foram ficando mais claros e frequentes, e D’Arc foi acreditando que se tratavam de mensagens divinas – apesar de médicos especularem hoje em dia que a garota sofria de alguma condição médica, como esquizofrenia ou epilepsia.
Aos 16 anos, D’Arc pediu a uma parente para leva-la até a cidade de Vaucouleurs, onde conversou com o funcionário local do reino francês, Robert de Baudricourt. Lá pediu que o funcionário a levasse até à corte real francesa, em Chinon.
Baudricourt foi sarcástico e não atendeu ao pedido da adolescente, mas isso não a deteve. D’Arc continuou a visitá-lo, até que ganhou aprovação popular e, em 1429, Baudricourt aceitou o pedido, cedendo a ela um cavalo e a proteção de diversos militares que a escoltariam pelo caminho.
Antes de partir para visitar o rei Carlos VII, porém, D’Arc cortou seu cabelo curto e vestiu-se como um homem. Após 11 dias de viagem, a jovem chegou até o reino francês.
O encontro com o rei
Um dos maiores mistérios da história é tentar entender como Carlos VII, o líder máximo da França, aceitou receber uma adolescente analfabeta que alegava receber mensagens divinas em seu gabinete. E mais ainda: como um monarca daquela magnitude acreditaria nas palavras da menina e permitiria que ela liderasse parte de seu exército em uma guerra sangrenta.
“Nós nunca saberemos o que aconteceu em Chinon. Esse é um dos maiores mistérios da história”, escreveu a historiadora Marina Warner, professora da Universidade de Essex (Reino Unido) em sua obra
Joan of Arc: The Image of Female Heroism (1981), sem tradução para o português.
É válido mencionar que durante o posterior julgamento de D’Arc, quando ela foi capturada pelos borguinhões, ela recusou contar o que aconteceu em Chinon e apenas disse que o rei Carlos VII havia recebido um sinal para entender que a história que ela contava era verdadeira.
Há fontes que dizem que D’Arc foi capaz de identificar o rei vestido como um simples nobre diante uma multidão, o que garantiu que ele confiasse na palavra da garota.
A situação precária e as constantes derrotas do exército francês também foram uma razão para que o rei e toda a realeza confiassem nas palavras da menina. É isso que sustenta o historiador Stephen W. Richey, autor do livro
Joan of Arc: The Warrior Saint (2003), sem tradução para o português, no trecho abaixo:
“Depois de anos de humilhação e de derrotas uma atrás da outra, o exército e a liderança civil da França estavam desmoralizados e em descrédito. Quando Carlos atendeu ao pedido de equipar Joana para a guerra e colocá-la à frente de seu exército, sua decisão deve ter tido como base que todos os ortodoxos e todas as opções racionais haviam sido testadas, mas haviam falhado. Somente um regime em seus últimos momentos de desespero poderia prestar atenção em uma garota analfabeta que alegava ouvir a voz de Deus instruindo-a a tomar conta do exército de seu país e leva-lo à vitória.”
De qualquer forma, D’Arc foi avaliada em diversos aspectos para que suas palavras viessem a ser consideradas pelo rei, tal como ser interrogada por clérigos e ter que realizar exame para confirmar sua virgindade.
Liderando o exército
Depois da conversa com o rei, D’Arc – já com 17 anos – conseguiu a autorização real para integrar o exército, recebeu doações de equipamentos, artigos de proteção e alguns soldados para aliviar a tensão com os ingleses na região de Orleães, na região norte-central da França.
Apesar de existir a crença popular de que D’Arc comandou o exército francês, esse é um assunto incerto que segue sendo debatido por historiadores. Há quem diga que a garota nunca matou nenhum inimigo e que sua presença durante as batalhas eram mais figurativas. Mas também há quem acredite que ela tenha surtido um efeito profundo nas decisões do exército. Ou seja, que seus conselhos eram aceitos e tidos como divinos.
Apesar da imprecisão, todos concordam que a força armada francesa gozou de notável sucesso durante o período em que D’Arc o integrou.
De acordo com a filósofa Siobhan Nash-Marshall, autora do livro
Joan of Arc: A Spiritual Biography (1999), sem tradução para o português, na primeira batalha que D’Arc participou, na região de Orleães, ela forneceu impulso moral aos civis e soldados franceses: “A moral francesa era tão baixa antes de ela aparecer que os franceses até perdiam as lutas em que eram maiores em exército do que os anglo-borgonheses. Normalmente, eles preferiam simplesmente ficar fora do campo de batalha”, escreve a pensadora.
Com os esforços do exército, a região de Orleães foi garantida pelos franceses, em contrapartida do recuo dos ingleses. Outras batalhas pontuais pela região da França foram repetindo o mesmo padrão.
Para os ingleses, as vitórias dos inimigos e o poderio da jovem camponesa indicavam que ela era, na realidade, uma bruxa possuída pelo diabo. A ideia de que Deus estaria apoiando a França em detrimento deles não era nenhum pouco atraente.
Com as seguintes vitórias franceses, havia chegado o momento ideal para coroar e consagrar a realeza de Carlos VII. A cerimônia aconteceu em 17 de julho de 1429 na cidade de Reims, que estava há pouco sob controle dos anglo-borgonheses e agora, graças aos esforços do exército e de D’Arc, havia voltado a integrar o reino da França.
Esse foi o auge militar e a síntese do objetivo inicial da camponesa.
Em seu posterior julgamento, D’Arc revelou que abraçou o rei recém-coroado aos seus pés e lhe disse: “Gentil rei, agora foi executada a vontade de Deus, que desejava que os cercos de Orleães fossem levantados e que você fosse trazido à Reims para receber sua sagrada consagração, mostrando, assim, que você é um rei de verdade e a quem o reino da França pertence”.
Derrocada e captura
Para legitimar a coroação de Carlos VII, o rei deveria marchar até Paris, a capital da França.
D’Arc e os militares acreditavam que seria melhor uma marcha rápida de Reims até Paris para evitar investidas inimigas, mas a corte real preferiu apostar em uma trégua de batalhas com os borgonheses para o percurso ser mais seguro.
No entanto, o duque de Borgonha, aproveitou o acordo e reforçou a defesa da capital e em outras cidades, pegando de surpresa os franceses pelo caminho.
Sem muitas opções, o exército da França aceitou a rendição em várias cidades sem nem mesmo lutar. Quando chegaram à Paris, em setembro, foram atacados. Foi a partir desse episódio que todo o esforço e luta de D’Arc começaram a falhar.
O governo real decidiu dissolver o exército e iniciou uma campanha em busca de diplomacia e consolidação de seus ganhos anteriores. Com essa nova medida, D’Arc já não tinha mais apoio para empreender sua luta: nem armamento, equipamento e, muito menos, homens. Sem o suporte do rei, ela continuou a participar de batalhas por conta própria com pouquíssimos militares.
Em maio de 1430, a cidade de Compiégne foi tomada pelos inimigos e ela decidiu ir – mesmo já tendo recebido os avisos divinos de que ela seria capturada pelos ingleses. Como era de se esperar, a força do exército anglo-borgonhês era muito maior do que a sua. Em 23 de maio, ela foi capturada pelas tropas de borgonhesas.
Por um valor de 10 mil libras, D’Arc foi vendida ao exército da Inglaterra. Há fontes que dizem que quando a garota soube que iria para as mãos dos inimigos, ela se jogou da torre em que estava presa. No entanto, sua tentativa de suicídio não funcionou.
Em 1431, D’Arc foi levada para julgamento e as acusações que pairavam sobre si eram todas de ordem religiosa. Ela foi chamada de bruxa, herege, possuída pelo demônio, entre outros. Sua virgindade foi questionada e até o fato de ela utilizar roupas masculinas foi uma alegação que os anglo-borgonheses utilizaram para descreditar a camponesa.
Enquanto ela era julgada, o rei Carlos VII não fez nenhum esforço para recuperá-la. “Isso sugere que, por mais difícil que pareça, Carlos e seus conselheiros estavam desiludidos o suficiente para tolerar a condenação dela como herege”, escreve a historiadora Warner.
Em 30 de maio de 1431, Joana D’Arc foi levada para a fogueira. Enquanto o fogo se espalhava por seu corpo e a plateia a chamava de “bruxa”, “mentirosa” e “blasfema", ela pronunciava suas últimas palavras, “Jesus! Jesus! Jesus”, até não conseguir dizer nada mais.
Canonização
Apesar de ter morrido como herege e bruxa, nos séculos seguintes, a história de D’Arc foi revisitada.
Durante a década de 1456, a camponesa foi considerada inocente pelo Papa Calisto III. Em 1909, cinco séculos depois, a Igreja Católica autorizou a beatificação da moça. Em 1920, ela é finalmente canonizada pelo Papa Bento XV.
Hoje, ela é considerada um ícone sagrado na França e também está sincretizada em religiões afro-brasileiras, como a orixá Obá.
Adaptação na mídia
Joana D'Arc foi e ainda é uma figura bastante adaptada em livros, filmes, músicas e outras peças de entretenimento. Em 1899, Georges Méliès digiriu o primeiro filme sobre a heroína, de nome homômimo. Porém, o mais famoso (e mais recente) é o Joana D'Arc (1999), de Luc Besson.
Na literatura, o gaúcho Érico Veríssimo escreveu a biografia romanceada A vida de Joana d'Arc (1935), além das mais variadas biografias elaboradas por historiadores.
No campo musical, a banda Arcade Fire produziu a música "
Joan of Arc".
Há até um game que revisita a história da guerreira francesa: Wars & Warriors: Joan of Arc (2004), lançado pela desenvolvedora Enlight Software, além da menção da heroína nos jogos Perfect Dark (2000) e Age of Empires II (1999).
Ilustração: Joana D'Arc em gravura de Albert Lynch, de 1903