O título era longo: Cantae ao Senhor – Psalmos e Hymnos para Cultos e Solemnidades Religiosas. A publicação foi da Sociedade Internacional de Tratados, precursora da Casa Publicadora Brasileira (CPB), cuja sede era na Estação de São Bernardo (atual Santo André, SP), em propriedade que ficou conhecida por anos como “Chácara dos Alemães”. Desde então, o material teve mais três edições no Brasil: “Himnario Adventista” (1933), o primeiro com música; “Cantai ao Senhor” (1963); e o “Hinário Adventista do Sétimo Dia”, (1996), o bisneto da edição pioneira.
Para homenagear o hinário centenário, o 20º Encontro de Músicos dedicou uma noite para refletir sobre o papel, importância e perspectiva do hinário no louvor congregacional. O evento aconteceu de 14 a 18 de janeiro, no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), campus Engenheiro Coelho, SP.
O pré-lançamento do atual hinário aconteceu durante a Comissão Diretiva da Divisão Sul-Americana de fim de ano, em dezembro de 1995. Na ocasião, cantou-se o hino “Vencendo Vem Jesus” (no. 152), o tradicional “Glória, Glória, Aleluia”. Representando os integrantes da Comissão Revisora do Hinário, o maestro José Newton da Silva Júnior, atual diretor do MusiCasa, regeu o público e o compositor Lineu Soares, acompanhou ao piano. Em sua fase final, a comissão funcionou com Rubens Lessa, presidente, Tércio Sarli, vice-presidente, Leni Azevedo (secretária) e mais 13 componentes.
Segundo José Newton, a “caixa com o novo hinário chegara à reunião momentos antes. Ao pegar o primeiro exemplar, eu fiquei emocionado. Tudo cheirava novo”, disse. Semanas depois, o hino “Tu És Fiel, Senhor” (no. 35) foi cantado na CPB, inaugurando assim, a nova fase de cultos com o novo lançamento.
Tudo em Alemão
No Brasil, os cultos adventistas a partir do fim da década de 1890 e início do século XX se desenvolviam em colônias rurais alemãs, no sul do país, Espírito Santo e São Paulo. Os hinos eram cantados em alemão, usando-se o volumoso “Zions Lieder”, hinário com 945 hinos, em sua primeira edição. Isto trazia alguns problemas. Primeiro, o repertório era inspirado em versificações métricas de Calvino e melodias corais do tempo da Reforma de Lutero. Embora Guilherme Stein Jr. traduzisse alguns hinos para o português[1] , todavia, o material não respondia mais às necessidades da comunidade adventista que crescia por todo o país.
Segundo, doutrinas distintivas como o sábado, santuário celestial e a iminente volta de Cristo demandavam por hinos mais focados nestes temas. Por esta época, circulavam no Brasil vários hinários protestantes: “Salmos e Hinos”[2] , de 1861, o primeiro hinário evangélico com 18 salmos e 32 hinos; e o “Cantor Cristão”, de 1891, contendo 18 hinos.
Estes hinários usados por “empréstimo” tinham ênfase apenas na teologia do “amor de Deus”, penitência e confissão de pecados, dos movimentos reavivamentistas da segunda metade do século XIX. Em contrapartida, já o hinário “Hinos e Salmos”, segundo análise feita por Mendonça (1995, p. 223)[3] , relata que o “tema da ressurreição ocupava um espaço relativamente pequeno, cerca de dez cânticos. [Além disso], nota-se, um extremo individualismo nos cânticos, escritos quase sempre na primeira pessoa do singular”.
Solução
Na América do Norte, para superar estes desafios, pioneiros do Movimento Adventista começaram a escrever e adaptar hinos com ênfase na verdade presente: Saúde, as Mensagens Angélicas, o Sábado e o Segundo Advento. Com base nesta visão doutrinária distintiva, em 1849, Tiago White publica “Hymns for God’s Peculiar People That Keep the Commandments of God and The Faith of Jesus” (Hinos para o Povo Peculiar de Deus que Guarda os Mandamentos de Deus e a Fé de Jesus). Embora a música destes hinos derivasse de melodias protestantes, todavia, o conteúdo poético era notadamente doutrinário.
Até 1863, Tiago White editou mais cinco hinários e quatro suplementos, todos sem música, com participação de sua irmã, Anna White, cuja contribuição foi compilar Hymns for the Youth and Children, (Hinos para Jovens e Crianças), em 1854. No Simpósio sobre Música Adventista promovida pelo Centro White (Brasil), em 2005, Warren Judd citou em palestra que outros dois irmãos, “Uriah Smith e Annie Smith, escreveram e cantaram músicas evangélicas, todavia, as letras se referiam ao Advento e as doutrinas únicas”. Ele também citou que James Nix relatou que “alguns desses hinos tiveram que ter textos alterados para se ajustar às novas crenças da Igreja Adventista” .
Deus à Frente
A manifestação de louvor entre os Adventistas do Sétimo Dia é fruto da certeza de que Deus está à frente de Sua Igreja. A expressão “vamos cantar um hino”, tão comum nas reuniões da igreja, deve ser fruto de uma convicção pessoal, oferecida pelo Espírito Santo, de que Deus sempre teve um “povo remanescente”. A ideia de remanescente não deve ser vista por um exclusivismo institucional, mas, pelo exclusivismo da aliança feita por Deus, que através da ressurreição de Jesus Cristo, somos regenerados para uma viva esperança. E Cristo fez mais. A primeira carta de Pedro diz que os eleitos receberam uma “herança, incorruptível, sem mácula, imarcescível, pela qual estão guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para a salvação”. E o apóstolo Pedro conclui: “Nisso vocês devem exultar”. (I Pedro 1: 3-6).
A eleição em Cristo e o convite para pertencer ao “povo exclusivo de Deus” (I Pedro 2: 8), deve fazer a Igreja, no centenário do Hinário Adventista, louvar em duas cadências: primeiro, viver em santidade e amor, afim de “proclamar as virtudes dAquele que nos chamou das trevas para a maravilhosa luz” (I Pedro 1: 13-25; 2: 1-17), certeza alcançada pelo ministério intercessório de Cristo no Santuário Celestial (Hebreus 4: 14-16; 10: 19-25); e segundo, esperar, apressar e aguardar a vinda de Cristo, visto que, a nossa “Pátria não é aqui” (Filipenses 3: 20-21), pois, “aguardamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça” (II Pedro 3: 13). Nisto consiste o nosso cantar!
Historicamente, além de conteúdo, os hinários adventistas têm uma distinção: a marca da esperança. Toda formação de um hinário passa evidentemente por um processo de seleção, escolha, viés cultural para viabilizar intencionalidades, ideologias e modo de pensar. Isto está fartamente documentado em estudos acadêmicos. Não só Calvino, Lutero, Watts, Wesley, metrificaram salmos, vernacularizaram corais, popularizaram hinos; e mais tarde, Sankey, Bliss, Crosby, adaptaram letras às melodias folclóricas, mas nesta trajetória histórica, Deus conduziu os pioneiros adventistas como os Whites, Annie R. Smith (1831–1855), Roswell F. Cottrell (1814–1892) e Frank E. Belden (1858–1945) [5] a adaptarem o material hinológico e a organizarem hinários para que os Adventistas cantassem enquanto aguardam a volta de Cristo.
No Brasil, isto aconteceu em 1933, quando, pela primeira vez, publicou-se o Hinário Adventista com música, com 333 hinos, organizados em 24 seções e índices em alemão e inglês. A Revista Adventista publicou o preço: 12$000. E, completou: “será excelente companheiro para vossa Bíblia”. Em 1943 uma nova edição surgiu e ampliou os hinos para 350. Ao iniciar-se a década de 1960, a Igreja Adventista clamava por um novo hinário. Novos hinários não podiam ser publicados, porque, como a produção era tipográfica, todos os tipos estavam gastos. Após o trabalho de uma comissão especial, no 1º. sábado de 1963, o hinário “Cantai ao Senhor” foi usado pela primeira vez nos cultos das Igrejas de Santo André, SP, e na Igreja do IAE, (hoje Unasp, campus São Paulo).
Por detrás da história do Hinário Adventista existe a história de um povo, de uma igreja, de pessoas que são movidas pela esperança. Nos momentos de tristeza, nos funerais e nas unções, o hinário é aberto para confortar corações. Nas apresentações de crianças, nos cultos de 15 anos, nas celebrações, o hinário é aberto para louvar a Deus. Nos cultos de adoração, nos batismos, nos evangelismos, nos pequenos grupos, o hinário é aberto para expressar a voz daqueles que caminham com os olhos fitos nos céus. Escreve Ellen White: “Até aqui nos ajudou o Senhor. Confiai na proteção de Deus. Sua Igreja débil e defeituosa como possa ser, é ela o objeto de Seu supremo cuidado” [6].
É certo que um hinário tem vida útil, devido à necessidade de se atualizar linguagens (musical, poética, estilística), o que deve acontecer em algum momento com o atual Hinário Adventista, mas, também é certo que sem hinários a vida cristã se perde em queixumes. Não importa se projetados em multimídia, adaptados para celulares, tabletes ou disponíveis no formato para download, faça do hinário sua motivação para louvar a Deus por todos os benefícios espirituais recebidos.
[1] O pesquisador e musicólogo Jetro de Oliveira ao escrever para Centro de Memória Adventista, do Centro Ellen White (Brasil), afirma que a partir de 1900, Guilherme Stein Jr, o primeiro adventista batizado no Brasil, traduziu para o português 10 a 15 hinos. Nesta ocasião, ele atuava como redator da iniciante Casa Publicadora Brasileira. Em 1910, há o registro de que circulava pelas igrejas, uma coletânea com 70 hinos, sem música.
[2] “Salmos e Hinos”, editado por Robert Reid Kalley e sua esposa Sarah Pou Hon Kalley, foi o primeiro hinário protestante que circulou no Brasil. Ele era médico, nascido na Escócia em 8 de setembro de 1809. Converteu-se ao protestantismo e estudou teologia. Em novembro de 1837 iniciou seu trabalho missionário na China. Em uma passagem pelos EUA em 1853 Dr. Robert, por intermédio da Sociedade Bíblica Americana, tomou conhecimento da necessidade de missionários o Brasil. Tendo desenvolvido atividades missionárias na Ilha da Madeira e dominando a língua, Kalley embarcou para o Brasil com a sua segunda esposa, Sarah Kalley (1825-1907), em 1855.
[3] MENDONÇA, Antonio G. O Celeste Porvir: Inserção do Protestantismo no Brasil. São Paulo: Aste, 1995. p. 223.
[4] JUDD, Warren. D. A Brief History of SDA Church Music. Manuscrito da palestra proferida em 8 de novembro de 2005, durante Simpósio sobre Música Adventista. Arquivo Centro White. Engenheiro Coelho, SP, p. 7.
[5] SPALDING, Arthur W. “Origin & History of Seventh-day Adventists”, R & H Publishing Association, 1962, p.137
[6] WHITE, E. G. “A Igreja Remanescente”. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010. P. 53-54.